Tribuna

Milk, Eduardo Leite e a saída do armário

Sim, o armário é regulador das vidas LGBTQIA+. Mas também é uma arma toda vez que declaramos que a “saída” dele só é digna quando feita por alguém que esteja nas nossas expectativas morais e políticas

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, em evento em março.Itamar Aguiar (Governo do RS)
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Ainda que me entenda como gay há mais tempo, gay “assumido” sou, pelas minhas contas inexatas, há mais de 20 anos. Não sei precisar o “marco zero”. Tornei-me assumido quando contei ao parente mais próximo “sou gay” (hoje, rio quando me lembro, eu anunciando solenemente e ele respondendo “ah, era isso que você tinha pra dizer, mas eu já sabia”)? Quando ouvi de uma amiga, pela primeira vez, andando na rua que eu não era “o primeiro amigo gay” dela (estamos falando dos anos 90), e o simples fato de não precisar retrucar, mas seguir em frente, era um silêncio-declaração? Ou bem antes, quando minha avó, comentando algo sobre Maria Bethânia enquanto ouvíamos o disco de regravações das canções do Roberto Carlos (era 1993, tinha 15 anos) numas férias no interior da Bahia, parou para dizer “ela gosta de mulheres, mas saiba que não há nada de errado com isso”, e eu sabia que ela falava não só da cantora, e eu senti alívio e medo (fui descoberto?) e acolhimento e susto tudo ao mesmo tempo?

Lembrei dessas cenas agora, acompanhando a “saída do armário” do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB). Confesso que, no meu círculo privado, há tempos que falávamos disso: “Pegaria ou não pegaria?”, “Ele é mesmo bicha ou não?” “Gato ou só padrão?”. Em nosso grupo de WhatsApp, ganhou o apelido de Dudu Milk, que soa mais... gay.

Claro que uma saída de armário não diz respeito apenas ao fator “surpresa”, ainda que muita gente, incluindo aí parte de seus eleitores gaúchos, tenha de fato se surpreendido com a declaração pública. Diz respeito a uma conjunção de fatores, que vai da posição institucional que ocupa ao meio escolhido para revelação (neste caso, um programa televisivo). O “armário” implica, sempre em graus variados, um rearranjo do que entendemos e do que os outros entendem como o que seria privado e o que seria público. E sempre envolve, igualmente, negociações. Da pessoa com ela mesmo, com seus familiares, com seus amigos, com seus colegas de trabalho, com seus eleitores.

Li, nessas últimas horas, manifestações de pessoas solidárias ao gesto. Muitas destacavam positivamente o peso da declaração. Outras tantas questionavam a legitimidade daquele “assumir-se”. “Como pode, se ele apoiou Bolsonaro?”, “Fez isso agora por quê?”. “Ah, que novidade, mais um branco rico saindo do armário...”.

Não me interessam as motivações de Leite. Ele pode estar apaixonado, pode ter se cansado de manter isso em privado, pode ter calculado que era a hora política mais oportuna. Posso ser otimista mas, se no Brasil de 2021 um candidato que eventualmente busque disputar uma eleição concorrendo contra Bolsonaro ano que vem entende que se assumir gay é um ativo eleitoral, e não algo a tirar votos (e eu teria minhas dúvidas sobre isso), parabenizo o risco.

Mas me interessa outra coisa. Por interesse pessoal ou acadêmico, ando sempre às voltas com o armário. Três pílulas do que li nessas últimas décadas:

1) O sociólogo Georg Simmel, ao discorrer sobre segredo, lembra que as sociedades modernas baseiam-se numa “economia de crédito”, de confiança. No plano individual, lembra que “uma vez que devemos formar uma unidade pessoal dos fragmentos de outra pessoa que chegam até nós, a unidade que se forma depende necessariamente daquela porção do outro que o nosso ponto de observação nos permite visualizar”;

2) Partindo de uma metáfora da vida como teatro, o também sociólogo Erving Goffman nos fala da construção de papéis como uma das características do sujeito social. Assim, “a forma de controle sobre o papel do indivíduo [...] monta o palco para um tipo de jogo de informação, um ciclo potencialmente infinito de encobrimento, descobrimento, revelações falsas e redescobertas”;

3) Eve K. Sedgwick, crítica literária, discutindo o que classifica como “epistemologia do armário”, alerta que, mesmo para um gay assumido, cada novo encontro social esbarra na possibilidade de novos armários e muros serem levantados. Isto exigiria, “pelo menos das pessoas gays, novos levantamentos, novos cálculos, novos esquemas e demandas de sigilo ou revelação. Mesmo uma pessoa gay assumida lida diariamente com interlocutores que ela não sabe se eles sabem ou não; é igualmente difícil adivinhar, para cada interlocutor se, no caso deste saber, tal conhecimento seria realmente importante”.

Enfim, mais do que conversa acadêmica, esses trechos permitem pensar o armário como algo traçado (e retraçado) em dinâmicas sociais continuamente oscilantes entre o saber e o não-saber, entre o dito e o não-dito, entre o oculto e o revelado. Conhecer a complexidade desse jogo é, antes de tudo, uma estratégia essencial para dessencializá-lo, compreendê-lo (e superá-lo) como um regime. Sempre que penso no armário, me vem a imagem de um cachorro a correr eternamente atrás do próprio rabo. Sim, o armário é regulador das vidas LGBTQIA+s (e das vidas heterossexuais também, por conseguinte). Um controle de uma heterossexualidade normativa sobre outras sexualidades. Mas também se torna uma arma, um dispositivo de vigilância que apontamos para nós mesmos, LGBTQIA+s, toda vez que o restituímos para declarar que tal “homossexualidade” seria honesta, coerente ou verdadeira, e que sua “saída” só é digna quando feita por alguém que se enquadre no nosso padrão ou expectativas morais e políticas.

Assim, não é o fato de um gay branco, rico, “padrão” como Eduardo Leite vir a público, em um programa de TV, que deveria ser objeto de crítica. O que nossa crítica não deveria perder de vista é que a política institucional, notadamente a exercida em altos cargos do Executivo, ainda impõe o segredo de ser gay como um alto custo, uma barreira a mais a ser superada. Seu gesto, pessoalmente interessado ou não, é um passo adiante para a luta contra isso. Não diminui o esforço de todas e todos que foram, muitas vezes somente com a cara e a coragem e em condições bem mais adversas, buscar a política como modo de intervir no mundo. Não invalida, igualmente, os questionamentos legítimos ao seu apoio recente a um candidato abertamente homofóbico, hoje presidente. E, mais importante, não lhe dá um salvo-conduto para que não seja cobrado futuramente. Mas a sua “saída do armário” soma, não diminui, para falar em português direto.

Lembrei-me, por último, do famoso “discurso da esperança” proferido por Harvey Milk. Outros tempos, claro. Mas este que foi um dos pioneiros políticos abertamente gays, nos Estados Unidos da década de 1970, deu a dica de como era importante termos políticos “que sejam gays, estejam orgulhosos de sê-lo e que não tenham que permanecer no armário”. “Se uma pessoa gay pode ser eleita”, dizia, “isso é uma luz verde”. Que o gesto do governador gaúcho, mesmo que não seja inédito, mesmo que atravessado por incoerências ou contradições (qual saída do armário, em maior ou menor dimensão, não é?) possa se multiplicar, não como um farol, pois disso não precisamos nem de Leites bons nem de Leites maus, mas um ponto verde a mais em nosso caleidoscópio. Bem-vindo, Dudu.

Ricardo Sabóia é professor do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE/CAA) e pesquisa atualmente as políticas de visibilidade, incluindo a “saída do armário”, na imprensa LGBT+ brasileira dos anos 1990.

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