Passar a boiada não é uma opção

A Constituição concebe os processos de demarcação não como um favor aos indígenas e sim como um reconhecimento de direitos. Alterar esse princípio significa legitimar uma violência histórica

Indígenas protestam em frente ao Congresso, em Brasília, contra o PL 490, na última terça.Joédson Alves (EFE)
Laura Trajber Waisbich Ilona Szabó
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Na semana passada, bombas de gás lacrimogêneo e flechas se encontraram no gramado da Esplanada dos Ministérios. Representantes de povos indígenas de todo o Brasil, protestando contra projetos anti-indígenas tramitando no Congresso, foram duramente repreendidos por forças de segurança.

Não é de hoje que os povos indígenas encontram a face repressiva do Estado. Não seria exagero dizer que os desencontros têm mais de 500 anos. Mas há algo de novo e preocupante nos dias de hoje. A expansão da proteção do Estado aos povos originários tem sofrido grandes reveses nos últimos anos. Trata-se de uma antipolítica: uma rede de atos de cunho legislativo ou administrativo que desmantelam o arcabouço desenhado ao longo das últimas três décadas para garantir a igualdade formal e material dos povos indígenas no Brasil.

Da parte do Executivo federal, tem-se um discurso anti-indigenista, ações concretas de subfinanciamento do sistema de saúde indígena e o enfraquecimento da própria Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Soma-se a isso um conjunto de ações, no Legislativo, que visam alterar as regras do jogo e o padrão de relacionamento entre o Estado, a sociedade e os povos originários.

O Projeto de Lei (PL) 490/2007, em tramitação na Câmara dos Deputados, é um dos piores exemplos. O PL busca alterar o processo de demarcação de terras indígenas, limitando esse reconhecimento àquelas terras que já estavam em posse desses povos em 1988, quando da promulgação da Constituição. O projeto traz ainda outras flexibilizações e retira o usufruto exclusivo de indígenas em suas terras, abrindo-as à exploração mineral e outras atividades econômicas por parte de outros atores. Nesse sentido, converge com outros projetos, por exemplo, com o PL 191/2020 e o Projeto de Decreto Legislativo 177/2021, que buscam “um melhor aproveitamento econômico” de territórios indígenas.

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Essas propostas no Legislativo são sumamente problemáticas, devem ser rejeitadas pela sociedade e, em última instância, pelo poder judiciário. A ideia do “marco temporal”, tal como formulada no PL 490, desvirtua o espírito da Constituição. Ela concebe os processos de demarcação não como um favor aos indígenas e sim como um reconhecimento de direitos já existentes de posse dos povos originários sobre suas terras. Alterar esse princípio significa ainda legitimar a violência histórica cometida contra os indígenas, expulsos de suas terras por sucessivos projetos coloniais.

Em agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) irá se pronunciar sobre o Recurso Extraordinário 1.017.365 a respeito do povo Xokleng, justamente sobre o argumento de marco temporal. Trata-se de um caso de repercussão geral cuja decisão afetará o futuro de terras indígenas no Brasil. Em seu voto, o relator Edson Fachin já qualificou o “marco temporal” como inconstitucional, apontando judicializações, caso o Congresso siga em frente e aprove o PL 490.

Esta não é a primeira vez que setores do Governo e da sociedade se valem do argumento de um “marco temporal” para flexibilizar garantias e proteções ambientais e de direitos humanos, abrindo terras protegidas para a exploração econômica. No entanto, nem os povos indígenas nem o Brasil podem se dar o luxo de esperar as Cortes se pronunciarem. É mais do que sabido que os indígenas brasileiros são os guardiões da floresta em pé e dos serviços ecossistêmicos. Não por acaso, terras indígenas sofrendo invasões de garimpagem e grilagem são aquelas onde a perda de cobertura vegetal é a mais acentuada. Em tempos de emergência climática, passar essa boiada não é uma opção.

Laura Trajber Waisbich e Ilona Szabó fazem parte do Instituto Igarapé.

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