Jesus é a bandeira antibolsonarista
Cristo não era um super-herói. Ele se comovia com a dor alheia. Não mandava matar. Ressuscitava os mortos. O Jesus verdadeiro, não aquele que ressoa na boca de Bolsonaro e seus motoqueiros, é o símbolo da vida
Já antecipo que esta não é uma coluna de humor, mas uma reflexão irônica sobre o uso e o abuso que o presidente Bolsonaro está fazendo de Jesus. A marcha motorizada deste sábado em São Paulo, batizada por parte dos apoiadores de “Acelera para Cristo com Bolsonaro”, para a qual os evangélicos foram convidados, me lembrou do realismo mágico do escritor ...
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Já antecipo que esta não é uma coluna de humor, mas uma reflexão irônica sobre o uso e o abuso que o presidente Bolsonaro está fazendo de Jesus. A marcha motorizada deste sábado em São Paulo, batizada por parte dos apoiadores de “Acelera para Cristo com Bolsonaro”, para a qual os evangélicos foram convidados, me lembrou do realismo mágico do escritor García Márquez. Algo irreal que revela como Jesus se tornou entre os bolsonaristas negacionistas um fetiche para tudo, exceto para o consolo dos que choram e morrem sozinhos e esquecidos.
Jesus, o verdadeiro, não aquele que ressoa na boca de Bolsonaro e seus motoqueiros, é o símbolo da vida e não da morte, da verdade e não da mentira. É o Jesus dos sem-teto e sem comida. O dos esquecidos e desprezados. É o símbolo do silêncio que cura e não do ruído que mata.
O Cristo da marcha ruidosa dos motociclistas de Bolsonaro é uma fake news das que o capitão machista e suas tropas armadas tanto gostam. O Jesus da marcha desapareceu de repente. Deram-se conta quando, na ausência do general Pazuello para convidá-lo a subir ao palco, Bolsonaro chamou Jesus. Sua surpresa foi que ele havia desaparecido.
O capitão reformado convocou seu enxame de policiais para que fossem procurá-lo. Onde poderia estar? Em algum bairro nobre da rica São Paulo? Em alguma favela? Em algum templo evangélico?
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Clique aquiNem mesmo a poderosa polícia de Bolsonaro conseguia encontrar Jesus. Até mobilizaram a polícia secreta. Nada. Perguntaram até aos mendigos. Ninguém o tinha visto.
De repente, espalhou-se a notícia de que Jesus havia aparecido. Acabara de ser encontrado por um médico em um hospital do SUS na periferia pobre de São Paulo. Estivera à cabeceira de uma mulher negra, intubada e amarrada à cama por falta de oxigênio.
Bolsonaro imediatamente quis saber mais detalhes sobre como Jesus a havia curado, se tinha sido com cloroquina. O médico e as enfermeiras juraram que Jesus não tinha dado nenhum remédio à doente, que segurou a cabeça dela nas mãos e lhe deu um beijo na testa, dizendo: “Mulher levanta-te e anda”. E a mulher ficou curada.
Bolsonaro insistiu em saber o que Jesus havia dado à mulher intubada. Uma enfermeira, falando quase sem abrir a boca, com medo, sussurrou: “Ele a curou com um gesto de amor”. Bolsonaro se irritou e comentou: “Não conheço esse remédio do amor. Com certeza ele lhe deu o que combate os piolhos”. E perguntou ainda se Jesus usava máscara. Disseram-lhe que sim e, então, fazendo uma de suas caretas típicas, ele afirmou, taxativo: “Então não era Jesus. Ele não é covarde. É macho”. Jesus era um profeta destemido. Chamou de “raposa” o imperador Herodes, que tentou impedi-lo de pregar para seu exército de doentes, leprosos, cegos e mendigos. Mas Jesus não era um valentão. Andava desarmado e a pé. Suou sangue quando soube que iriam crucificá-lo.
Já agonizando, queixou-se a Deus: “Por que me abandonastes?”, Jesus não era um super-herói. Ele se comovia com a dor alheia. Não mandava matar. Ressuscitava os mortos. “Curava todos”, escreve Lucas em seu evangelho. Não cultivava a violência nem a morte. Por isso fugiu da marcha para ir curar a mulher negra intubada e sem oxigênio.
Jesus é a bandeira antibolsonarista.
Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse grande desconhecido’, ‘José Saramago: o amor possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
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