Os sistemas de saúde latino-americanos estão preparados para o coronavírus?
Brasil, único país no mundo com mais de 100 milhões de habitantes a oferecer assistência de saúde gratuita, gasta 3,8% do PIB em saúde pública. Itália, por sua vez, 6,8%
A América Latina foi até o momento uma das regiões menos afetadas pela Covid-19. O primeiro caso foi detectado em 26 de fevereiro no Brasil, a primeira morte no dia 8 de março na Argentina. O vírus chegou por aqui quando a Itália já vivia um colapso hospitalar sem precedentes. O fato de um país europeu, com um sistema de saúde público e universal sólido, ...
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A América Latina foi até o momento uma das regiões menos afetadas pela Covid-19. O primeiro caso foi detectado em 26 de fevereiro no Brasil, a primeira morte no dia 8 de março na Argentina. O vírus chegou por aqui quando a Itália já vivia um colapso hospitalar sem precedentes. O fato de um país europeu, com um sistema de saúde público e universal sólido, sofresse tão penosamente os efeitos da pandemia, levantou um questionamento extremamente pertinente sobre a resiliência de países em desenvolvimento. Se por um lado problemas crônicos persistem nos sistemas de saúde desses países, por outro, a demora da chegada do vírus pode representar uma vantagem. Nesse sentido, cabe perguntar se a América Latina está preparada para a crise de saúde do coronavírus?
Apesar de ostentar o título de região mais desigual do planeta, na maioria dos países da América Latina, a saúde é um direito social para todos os cidadãos. É o caso de países como o México, o Peru, a Bolívia, entre outros. Alguns inclusive determinam em sua Constituição que a saúde é um direito de todos os cidadãos e provê-la é um dever do Estado. É o caso de países como a Venezuela, o Brasil e o Equador. No entanto, as garantias legais e constitucionais não se traduzem na realidade do financiamento dos sistemas públicos de saúde. O Brasil, único país no mundo com mais de 100 milhões de habitantes a oferecer assistência de saúde gratuita para todos os seus cidadãos, gasta 3,8% do PIB em saúde pública. Em geral, sistemas universais são caros e demandam um esforço maior de investimento, como é o caso do Reino Unido —que apesar de ter uma população três vezes menor— gasta 7,9% do PIB no seu National Health Service. Até mesmo a Itália, que nesse momento é o palco das maiores tragédias do Covid-19, destina 6,8% de seu PIB para a saúde pública.
A média latino-americana é de 3,7% do PIB e o valor per capita investido em saúde (se somados o público e o privado) é inferior ao da média de países do Oriente Médio. A contradição entre direito social e priorização de gasto público, que atravessa a região, não poderia encontrar melhor ilustração do que a Venezuela, onde apesar das garantias constitucionais, se gasta apenas 1,7% do PIB em saúde pública.
Apesar do baixo investimento, não faltam problemas de saúde para uma região que apresenta um panorama epidemiológico mais complexo do que outras partes do mundo. Países desenvolvidos lidam com a prevalência de doenças crônicas não transmissíveis (cânceres, diabetes, cardiovasculares). Países em desenvolvimento lidam com a prevalência de doenças infecciosas (tuberculose, dengue, zika, etc). Os países latino-americanos lidam com ambas realidades, o que requer um leque de ações de saúde diverso. Some-se a isso, a carga suplementar nos sistemas de saúde ocasionada a uma particularidade própria da região: a violência.
Apesar de representar apenas 8% da população mundial, 33% do total de homicídios ocorrem na região. Portanto, os sistemas de saúde latino-americanos devem simultaneamente acompanhar continuamente casos de diabetes, enfrentar surtos de dengue —que diga-se de passagem atingiu seu recorde histórico de 1.501 mortes em 2019— e atender nas urgências pessoas baleadas, vítimas da intensa violência urbana.
Diante de uma demanda tão complexa, e do baixo nível de financiamento público, a oferta de serviços de saúde se apresenta como limitada e distribuída de maneira desigual. Se tomarmos o exemplo do Brasil, é possível ver que 56% da população vive em regiões onde a quantidade de leitos de UTI é inferior ao mínimo necessário para atender a demanda já existente, sendo que quase 15% da população que depende exclusivamente do sistema público de saúde vive em regiões onde sequer há leitos. Se a oferta de serviços já não é capaz de dar conta da demanda por saúde existente, como será então em face da pandemia de Coronavírus?
Um estudo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) estima que a cada 1% da população infectada, será necessário quase um bilhão de reais de gasto suplementar —apenas em hospitalizações— por parte do Governo brasileiro. Isso significa que se 20% da população for infectada pelo Covid-19, serão necessários quase 19 bilhões de reais adicionais, o que praticamente equivale ao total gasto pelo Governo brasileiro em internações no ano de 2019. No entanto, aumentar a capacidade hospitalar de um país não se faz da noite para o dia, como tampouco se fabricarão os testes, EPIs (equipamentos de proteção individual), respiradores, que estão em falta na região. Se o sistema público brasileiro, considerado o mais resiliente da região, não é capaz de lidar com o coronavírus, dificilmente outros serão.
Dada a deficiência dos sistemas de saúde, é fundamental que se achate a curva da epidemia, evitando ao máximo a possibilidade de propagação. Vários países do continente, conscientes dos problemas crônicos de seus sistemas, aproveitaram a demora prolongada da chegada do vírus, para tomar medidas drásticas. A Argentina decretou quarentena total após a confirmação da quarta morte por Covid-19, a Venezuela, a partir de vinte casos confirmados. El Salvador seguiu a mesma linha. O Peru se antecipou a todos e, a despeito de não ter sequer um falecimento, anunciou quarentena geral e obrigatória para todo o território nacional no dia 15 de março. Coincidentemente, nesse mesmo dia, a Espanha que já estava acometida pelo vírus, com o falecimento confirmado de quase trezentas pessoas, anunciava as mesmas medidas. O Equador e a Bolívia suspenderam todas as atividades não essenciais na semana passada. O Panamá, a Colômbia e o Chile fecharam suas fronteiras, inclusive para voos internacionais.
De todos os países, apenas Brasil e México ainda não tomaram medidas substanciais e consistentes. Em que pese os esforços de Governos locais [estaduais e municipais], os presidentes de ambos os países adotaram uma postura pouco condizente com a gravidade do momento, ora indo ao encontro da população nas ruas, como foi o caso de Jair Bolsonaro e Andrés Manuel López Obrador, ora por chamar o Covid-19 de “gripezinha” e incentivar as pessoas a irem trabalhar, como fez Bolsonaro. Juntos, os países somam a metade da população total do continente.
Conter a propagação do vírus nessa etapa inicial é a grande aposta que os governos deveriam fazer para que a América Latina não se torne um retrato ainda mais trágico do que estamos assistindo hoje na Europa. O fato da região ser a mais desigual do mundo deve ser levado em consideração no desenho das políticas de contenção, que, para serem efetivas precisarão ser acompanhadas de um suporte financeiro para as camadas mais vulneráveis da população.
Miguel Lago é diretor executivo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS). Artigo elaborado pela Agenda Pública para o EL PAÍS.
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