SUS foi essencial para tratar o sofrimento em Brumadinho
Apesar da situação de caos, o serviço de Saúde Mental de Brumadinho consegue responder rápida e prontamente às necessidades
A barragem do Córrego do Feijão se rompeu às 12:28 do dia 25 de janeiro de 2019. Sem sirene ou qualquer tipo de alerta. A onda de lama e rejeitos de minérios atingiu, em poucos segundos, o restaurante, a área administrativa, comunidades vizinhas à mineradora e invadiu o leito do Rio Paraopeba. Em aproximadamente dois minutos, tínhamos 272 mortos. A maioria funcionários em seu local de trabalho. Destruição de plantações, moradias, modos de vida, cultura, vínculos afetivos e sociais.
O estudo e proposição de cuidados em saúde mental a populações impactadas por grandes desastres já existe há algum tempo no mundo. Há protocolos de diversas linhas de cuidados, alguns referendados mundialmente. E o Brasil é signatário do Marco de Sendai. Os países participantes da Terceira Conferência Mundial da ONU para a Redução de Riscos de Desastres em Sendai (Japão) adotaram o Marco para a Redução de Riscos de Desastres 2015-2030. Esse marco tem como objetivos: “Redução substancial nos riscos de desastres e nas perdas de vidas, meios de subsistência e saúde, bem como de ativos econômicos, físicos, sociais, culturais e ambientais de pessoas, empresas, comunidades e países”. Por ser um dos signatários do Marco de Sendai, e com uma série de grandes tragédias recentes, é de se supor que o Brasil, Estados, municípios e suas grandes empresas, tivessem adotado as políticas preventivas aos grandes desastres e montado uma infraestrutura de preparo para respostas imediatas, caso acontecessem as tragédias.
Mas que nada. Como foi dito em algum momento, “Mariana foi a sirene que Brumadinho não ouviu”. Tocou com quatro anos de antecedência, e governantes, empresários, técnicos da área desconheceram solenemente. Brumadinho repetiu Mariana, dentro da mesma linha de tragédias, preveníveis, evitáveis, de riscos e vulnerabilidades conhecidas: o rompimento de barragens. Não se tratam de desastres naturais, como tsunamis, furações ou uma grande enchente. Ao longo do tempo sinais constantes e evidentes do que estava por vir, foram ignorados e medidas de segurança não foram tomadas. A tragédia poderia ter sido evitada, sem mortes ou danos ambientais.
Apesar do Marco de Sendai, no Brasil as avaliações de possíveis eventos causadores das tragédias, de impactos sociais, culturais, ambientais e outros, sempre foram negligenciados, em especial para encobrir quaisquer responsabilizações. Assim, as ações e respostas aos atingidos sempre foram de pequenas reparações no campo do direito, também pequenas as reparações materiais e as de chorar os mortos. Ademais, poucos cuidados referentes aos adoecidos, aos adoecimentos futuros decorrentes da tragédia. Os atingidos de Mariana continuam até hoje, passados quatro anos, pagando alto preço dos adoecimentos mentais, sem direito a retornarem às suas casas, sem convívio com seus vizinhos e amigos, sem suas plantações, sem as escolas e as igrejas locais.
Até pouco tempo atrás, a política de saúde mental brasileira não se debruçava efetivamente sobre os cuidados aos atingidos por desastres. De maneira geral, as avaliações oficiais, ou dos campos assistenciais filantrópicos (ou mesmo privados) refletiam a postura das classes dominantes, que localizavam as tragédias no campo do imponderável, dos incidentes, das coisas da natureza. Mesmo aquelas com comprovadas evidências de descaso do poder público, ou das empresas responsáveis pelos empreendimentos; as responsabilidades são minimizadas e transferidas aos atingidos. Assim, nos grandes deslizamentos e inundações na região serrana do Rio ouviu-se muito: “Por que foram morar ali, no morro? Sabiam que podia deslizar!”; “Quem vai prever ou segurar tanta chuva? Só Deus!”
A partir das proposições do Sistema Único de Saúde (SUS), de trabalhos em rede, de urgências, de atenção psicossocial, de Atenção Básica e de Vigilância em Saúde, os cuidados se dão em outro patamar. Apesar da situação de caos, o serviço de Saúde Mental de Brumadinho consegue responder rápida e prontamente às necessidades. Brumadinho teve capacidade para uma resposta por ter 100% de cobertura do SUS, ter um serviço de Saúde Mental bem estruturado há anos e conseguir acionar parceiros rapidamente.
Enquanto trabalhadores do SUS, da saúde pública, nossa linha de cuidados é o campo psicossocial. A prática multiprofissional está no nosso cotidiano, e o trabalho territorial, junto à comunidade, fazemos respeitando seus valores (religiosos, culturais, crenças). Trabalhamos em Brumadinho seguindo as orientações do SUS da OMS e que são linhas de ações propostas também pelos Conselhos Federais e Regionais de Psicologia.
Recebemos a nossa população adoecida e que ainda necessita de cuidados. O trabalho é cuidar destas pessoas, muitas vezes deprimidas, em quadros graves de ansiedade, vivenciando um luto, uma relação de perda de pessoas queridas que adoece, em razão do absurdo do crime, da ausência de corpos, do não reconhecimento do ultraje e do desrespeito às famílias, e de se saber que “isto estava para acontecer a qualquer momento”.
Passado este primeiro ano, confirmamos em nossa prática clínica cotidiana que os dados de pesquisadores e estudos de situações similares, de grandes desastres, com grande número de mortos (no Brasil ou em outras partes do mundo) geram impactos profundos sobre a saúde mental das pessoas envolvidas. A Vale anuncia que uma das suas principais preocupações é a saúde emocional dos trabalhadores, dos familiares e da população de Brumadinho. Por isso, a empresa assinou acordos de cooperação para repasses que “já totalizam R$ 32 milhões destinados, exclusivamente, à ampliação de assistência de saúde e psicossocial” no município.
Nossa população atingida vive o luto, o desamparo e uma grande angustia sobre o porvir, sobre as possibilidades de reconstrução de uma vida que se aproxime da anterior, de afetos, de relações sociais, de trabalho. Luto e desamparo atravessados por uma monetarização do sofrimento, uma política da Vale e dos setores do capital que entendem que é possível suprimir a dor, fechar o sentimento do luto por corpos despedaçados com um auxílio emergencial, com “reparações financeiras”. Transfere ainda para a população uma responsabilidade impossível e contrária ao que é o seu direito de uma reparação: deve comprovar legalmente seu sofrimento, sua dor, seu adoecimento. E isto provoca uma nova corrida aos serviços de saúde em busca de um atestado da dor. As reparações morais, financeiras, ambientais devem ser tratadas como direitos absolutos, sem exigências de relatórios. Os danos afetivos, de perdas culturais, imateriais, são irreparáveis. Cuidamos do que nos toca. O sofrimento mental.
Rodrigo Chaves Nogueira é psicólogo da Equipe de Saúde mental de Brumadinho