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Tensão aumenta nas trincheiras da guerra da Ucrânia enquanto a Rússia mostra poderio militar

Alarme no Ocidente cresce diante de uma possível invasão russa no começo do ano. Enquanto a retórica de Putin fica mais ameaçadora, os EUA e a OTAN alertam o Kremlin contra outra agressão a Kiev

Soldados ucranianos no front de batalha na cidade de Pisky, na região do Donnbass (Ucrania).
Soldados ucranianos no front de batalha na cidade de Pisky, na região do Donnbass (Ucrania).CARLOS ROSILLO

Quando explode o ruído seco e intenso dos disparos, o comandante Rostislav Kasyanenko apoia o joelho no chão e se agacha atrás de uma pequeno monte de terra lamacenta. “É fogo de metralhadora”, indica em um sussurro seu colega do Exército ucraniano Serguei Bodnar. Perto, ônibus calcinados e oxidados mostram as cicatrizes do que em outra vida foi a estação de ônibus da próspera Pisky, a poucos quilômetros da cidade de Donetsk, controlada pelos separatistas pró-russos. “Essa é uma das zonas mais perigosas dessa área do front. Às vezes são somente 20 a 60 metros até as posições inimigas”, recita em voz baixa Kasyanenko recolocando o fuzil AK 47, antes de começar a correr para se proteger através das ruínas da cidade, completamente destruída na guerra do Donbass.

O conflito do leste da Ucrânia entre as tropas de Kiev e os separatistas pró-russos apoiados política e militarmente pelo Kremlin vai completar oito anos. Apesar dos acordos de paz de Minsk de 2015, a última guerra da Europa não parou e esteve sendo cozida em fogo lento. É um barril de pólvora que só precisa de uma faísca para acabar em novas hostilidades abertas. Nesses dias de inverno, nas labirínticas trincheiras de Pisky e nos quartéis e destacamentos do Exército ucraniano, ao longo dos 450 quilômetros da linha do front, a tensão disparou pelo acúmulo de tropas russas nas fronteiras. A ideia de que o conflito, que já causou 14.000 mortes, segundo estimativas das Nações Unidas, possa estar entrando em uma nova fase, e o temor de outra guerra quente e maior, paira por cima de tudo.

O Ocidente permanece em alerta máximo pelos movimentos de Moscou. Um documento da inteligência norte-americana alerta que o Kremlin pode estar preparando as bases para uma nova invasão da Ucrânia —“o mais tardar no começo de 2022″. A informação, corroborada por um porta-voz da Casa Branca e que inclui fotos de satélites dos últimos dias, detalha a posição do que os serviços secretos indicam como grupos táticos de uma centena de batalhões, blindagem pesada, artilharia e outros equipamentos militares perto da fronteira oriental da Ucrânia. O Ministério das Relações Exteriores russo negou nesse sábado o conteúdo do relatório e acusou Washington de tentar agravar a situação e de culpabilizar Moscou.

O contingente russo pode ser formado por até 175.000 soldados, diz o inquietante relatório revelado pelo The Washington Post, que se soma aos crescentes e cada vez mais sonoros avisos de funcionários ucranianos e ocidentais de que a Rússia pode organizar uma invasão em escala maior do que a de 2014, quando após as mobilizações pró-europeias que estabeleceram a guinada ocidental da antiga república soviética que o Kremlin mantinha sob sua órbita, dezenas de homens vestidos de verde —militares russos com uniformes sem identificação— entraram na Crimeia e junto com emissários de Moscou e do FSB (os serviços secretos russos, herdeiros da KGB) desenvolveram a operação de anexação da estratégica península ucraniana à Rússia, que foi coroada com um referendo considerado ilegal pela comunidade internacional; uma manobra que causou mobilizações dos independentistas pró-russos no Leste, alimentados por Moscou, na declaração das autodenominadas “repúblicas populares” de Lugansk e Donetsk, e na guerra do Donbass.

Rostislav Kasyanenko, comandante de uma brigada motorizada do Exército ucraniano, em uma área da cidade fantasma de Pisky, na região de Donetsk.
Rostislav Kasyanenko, comandante de uma brigada motorizada do Exército ucraniano, em uma área da cidade fantasma de Pisky, na região de Donetsk.Carlos Rosillo

O plano de Moscou pode ser forçar as tropas ucranianas a lutar em múltiplas frentes para enfraquecer o Governo; também um ataque a partir do território controlado por separatistas patrocinados pela Rússia, indica um funcionário da inteligência ocidental, que fala da mobilização de reservistas russos e de uma “incipiente” mobilização de infraestrutura de apoio, como hospitais de campanha. A maioria das vozes, entretanto, concorda que as intenções do veterano presidente russo, Vladimir Putin, que sempre mostrou um especial apetite por manter a influência sobre os territórios da antiga URSS e por ressuscitar o espírito imperial da Rússia como uma superpotência, não estão claras. Tudo, em um cenário particularmente elétrico também pela crise migratória orquestrada nas fronteiras da UE por Belarus, cada vez mais próxima a Moscou, e pela crise energética em que algumas capitais europeias veem a mão do Kremlin e uma fórmula de pressão para acelerar a aprovação do controvertido gasoduto NordStream 2, que levará gás russo diretamente à Alemanha sem passar pela Ucrânia e Polônia.

Pisky, em outra vida uma próspera cidade residencial, é hoje um território fantasmagórico revestido de trincheiras.
Pisky, em outra vida uma próspera cidade residencial, é hoje um território fantasmagórico revestido de trincheiras. Carlos Rosillo

No porão de uma decrépita casa com jardim de Pisky transformada em um posto avançado do Exército ucraniano, Kasyanenko tira o capacete e acende um cigarro. O ambiente está muito carregado no pequeno quarto, com um fogareiro para café, duas mesas e um par de cadeiras. “Sequer podemos sair para fumar habitualmente. Muito menos para patrulhar. Esse é um território extremamente quente para nosso batalhão”, comenta Kasyanenko, de 24 anos. Em uma das paredes do destacamento da brigada mecanizada, um mapa tático detalha em vermelho as posições inimigas que cercam as próprias, marcadas com pontos azuis. “Eles são ‘diabos fodidos’; nós, ‘demônios’, diz Bodnar esboçando um pequeno sorriso. A barba castanha quase não oculta o que há pouco tempo era um rosto adolescente. “O inimigo está situando e reordenando suas tropas ao longo de nossa fronteira, mas só mostram uma parte e isso não é por acaso. Podem estar realizando muitas outras ações e preparações ocultas”, avisa Kasyanenko. “E quando falo do inimigo falo da Rússia, que é nosso inimigo real. Se não fosse pelo Kremlin, a DNR [autodenominada república de Donetsk] não existiria”, finaliza.

O Kremlin nega ser parte do conflito e afirma que é uma “guerra civil”. Mas numerosos relatórios ocidentais detalham como o apoio militar da Rússia alimenta a última guerra ativa da Europa e documentam seu apoio logístico e transferências de armas às autodenominadas repúblicas de Donetsk e Lugansk. Lançadores de granadas, rifles de franco-atirador e minas terrestres que nunca foram utilizados pelo Exército ucraniano, de modo que o material não pode ter sido capturado pelos separatistas, indica um relatório recente da consultoria especializada Conflict Armament Research, que também fala de armamento especializado de fabricação russa, como o sistema de mísseis antiaéreos que derrubou em 2014 um avião civil e matou seus 298 passageiros.

Putin Ucrania
A guerra do Donbass deixou 1,5 milhão de refugiados internos, povoados agonizantes e destruiu dezenas de fábricas, como a da imagem, completamente destruída, nas proximidades de Avdiivka.Carlos Rosillo

Com os olhares de meio mundo voltados às suas palavras, Putin negou nessa semana que a Rússia ameace a Ucrânia. O líder russo frisou que Moscou só está tomando “medidas técnicas e militares adequadas” para responder ao que definiu como uma crescente atividade da OTAN na Ucrânia e seus arredores. “Só olhem quão perto das fronteiras russas a infraestrutura militar da Aliança do Atlântico Norte se aproximou”, disse Putin na quarta-feira no Kremlin, na cerimônia de credenciamento de novos embaixadores. “Para nós, isso é mais do que sério”, acrescentou o líder russo, que em casa está aplicando uma política de pulso firme e aumentou a repressão à oposição e à sociedade civil.

Putin, que há anos critica a expansão da OTAN nos Estados do antigo Pacto de Varsóvia como uma interferência desrespeitosa contra Moscou, definiu a proximidade cada vez maior de Kiev com os Estados Unidos e outros países da Aliança Atlântica como uma ameaça existencial. Há pouco tempo, a linha vermelha do Kremlin era a Ucrânia na OTAN (uma adesão, de fato, que por enquanto não tem expectativas). Agora, também é qualquer presença e colaboração da Aliança em Kiev, incluindo as ajudas militares, diz Eleonora Tafuro Ambrosetti, pesquisadora do Institute for International Political Studies (ISPI).

Enquanto a UE proporciona apoio econômico à Ucrânia para o desenvolvimento de um dos países mais pobres da Europa, fundamental geoestrategicamente para o Ocidente, os EUA comprometeram 2,5 bilhões de dólares (14 bilhões de reais) desde 2014 para apoiar o Exército ucraniano e proporciona às forças de Kiev treinamento e armamento antitanque para a guerra contra os separatistas respaldados por Moscou; algo que enfurece o Kremlin. Em setembro, no mesmo mês em que a Rússia e Belarus se uniram para realizar maciças manobras militares conjuntas, 6.000 soldados ucranianos e da OTAN realizaram exercícios com o olhar voltado à guerra do Leste.

Ekaterina Shulginá, em sua loja de alimentação, na região do Donbass.
Ekaterina Shulginá, em sua loja de alimentação, na região do Donbass.Carlos Rosillo

O conflito do Donbass atravessa povoados e terras de cultivo, estradas quase vazias e fábricas fechadas, criando uma espécie de linha divisória geopoliticamente simbólica entre as forças pró-russas e as ligadas ao Ocidente. Em Pisky, cenário de uma das batalhas mais duras e hoje controlada pelas forças de Kiev, quase não restam vestígios da cidade residencial de casas de luxo com vista para o lago e grandes pretensões por sua proximidade do aeroporto de Donetsk. Em suas fantasmagóricas edificações em ruínas, cheias de cartazes que alertam do perigo de minas, ficaram nove de seus mais de 2.000 moradores. São muito idosos e não quiseram deixar as casas em que moraram por quase toda sua vida. A guerra provocou mais de 1,5 milhão de refugiados internos e dezenas de povoados agonizantes, com serviços paupérrimos.

Ekaterina Shulginá se acostumou ao cotidiano habitual dos disparos. Tem uma loja de comestíveis na área menos violenta, a meio quilômetro do início da área vermelha. “É perigoso e difícil, mas o que fazer, não podemos ir para outro local. Tenho uma filha de quatro anos e não posso largar tudo isso” diz apontando as organizadas estantes do pequeno estabelecimento. São apenas quatro da tarde e é noite fechada. Do lado de fora, se escuta fogo de artilharia, mas Shulginá já quase não se altera. O som frisa a tênue natureza do cessar-fogo —o enésimo— que os dois lados se acusam mutuamente de romper. Somente na quinta-feira, um dos dias mais quentes das últimas semanas, a missão especializada da OSCE (Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa) registrou 809 violações, incluindo 146 explosões.

Em um posto de observação oculto entre as serpenteantes trincheiras próximas à cidade de Avdiivka, controlada pelo Exército ucraniano, o comandante Denis Brotniski observa pelo periscópio metálico as posições dos rebeldes pró-russos. Ao longe, se escutam três rajadas de disparos. “Estamos em modo reação. Respeitamos os acordos e não respondemos ao fogo a não ser que seja uma ameaça vital para nós e os civis”, afirma. “Às vezes, além disso, são provocações que pretendem revelar nossas posições”, diz Brotniski. Em Donetsk, Eduard Basurin, representante da autodenominada república, acusou na sexta-feira o Exército ucraniano de disparar contra áreas residenciais. “Ainda estamos estimando os danos à infraestrutura civil”, disse em uma reunião noticiada pela agência Interfax.

De noite, especialmente nas de céu limpo, há mais atividade, diz Tatyana Zaritskaya, uma antiga professora de educação infantil e deslumbrantes olhos verdes que entrou no Exército ucraniano em 2016. “Em todo caso o silêncio não é bom, quando você escuta sabe onde eles estão, que armas usam, quantos são”, diz Zaritskaya, enquanto segura um rabugento cachorro tekel, vestido com um coletinho amarelo que não parece se dar bem com os outros cachorros do posto. A neve está se solidificando nas trincheiras próximas a Avdiivka, cobrindo de cinza a terra de cor ocre que cerca uma antiga fábrica de aparelhos mecânicos. Outra indústria fulminada pelo conflito na região mineradora, uma das mais ricas do país. Em uma das paredes da fábrica destruída se lê “Oligarcas: não brinquem de guerra!”. A noite avança nos destacamentos da linha de frente nas proximidades de Avdiivka. Brotniski, Zaritskaya e seus colegas de brigada que voltaram de seu turno de vigilância se preparam para fazer uma refeição rápida. O catre de Brotniski e sua área de descanso estão impecáveis. Tem 29 anos e usa uniforme desde 2011.

O Exército de Kiev já não é o mesmo que em 2013. Ele se modernizou e sua capacidade de defesa melhorou consideravelmente, frisou nessa semana o ministro das Relações Exteriores ucraniano, Dmytro Kuleba, que pediu aos países da OTAN um pacote de novas sanções contra a Rússia como fórmula de dissuasão. De fato, um ataque recente a posições dos separatistas pró-russos com drones Bayraktar da fabricação turca, símbolo dessa modernização e que foram fundamentais nas guerras da Síria, Líbano e Nagorno-Karabakh, foi um ponto importante nessa última escalada do conflito.

O Kremlin acusou o Governo de Volodimir Zelenski de não cumprir os acordos de Minsk pelo uso de drones e falou sobre seus temores de que a Ucrânia esteja preparando uma ofensiva para tomar as áreas rebeldes pela força. Em meio às acusações cruzadas, Putin disse que Zelenski, um antigo comediante sem experiência política que está adotando posturas de falcão, se comporta como um “aventureiro muito perigoso” e está concentrando tropas nas proximidades das fronteiras russas. O Governo ucraniano nega os movimentos e qualquer plano para intensificar a guerra e afirma que o uso de drones é “defensivo” e legal dentro dos pactos de paz assinados há seis anos com a mediação da França e da Alemanha e que parecem cada vez mais parados.

Um soldado ucraniano em uma trincheira próxima à cidade de Avdiivka, na região de Donetsk.
Um soldado ucraniano em uma trincheira próxima à cidade de Avdiivka, na região de Donetsk.Carlos Rosillo

Os Estados Unidos, a OTAN e a UE alertaram a Rússia de que uma nova agressão contra a Ucrânia custará caro. Na sexta-feira, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou que Washington não respeita as “linhas vermelhas” traçadas pelo Kremlin sobre Kiev e disse estar se coordenando com seus aliados na Europa para tornar “muito, muito difícil” para Putin sequer considerar um ataque, informa Iker Seisdedos. As equipes do Kremlin e da Casa Branca mantiveram nos últimos meses reuniões de continuação após a cúpula entre Putin e Biden de junho em Genebra.

Alguns observadores e analistas como Tafuro acreditam, de fato, que o endurecimento da retórica do Kremlin é uma jogada da Rússia para melhorar sua postura em uma eventual negociação diplomática. E, também, forçar outra reunião de alto escalão com Biden. Putin quer que a OTAN dê “garantias legais judiciais precisas” que excluam qualquer expansão da Aliança para incluir a Ucrânia e a Geórgia e que limitem a atividade militar perto de suas fronteiras. Na terça-feira terá uma conversa por telefone com Biden, como confirmou o Kremlin.

A Ucrânia parece um assunto pessoal para Vladimir Putin, que costuma insistir nos séculos de vínculos históricos e culturais entre russos e ucranianos, a quem define como “um só povo”, e que se orgulha especialmente da anexação em 2014 da península ucraniana da Crimeia, que definiu como uma “volta para casa” do estratégico território; uma absorção que, além disso, insuflou os ânimos nacionalistas na Rússia e disparou a popularidade do líder russo em um momento de queda.

Em julho, em um longo artigo, o chefe do Kremlin falou sobre a “unidade histórica” dos dois países, criticou as fronteiras da Ucrânia e disse que Moscou nunca permitiria que se transformasse em “anti-Rússia”. Um ponto que, unido a outros elementos, como a entrega de mais de 600.000 passaportes russos nos territórios de Donetsk e Lugansk e a aprovação de um decreto na semana passada para dar caminho livre e prioritário aos produtos das duas regiões ucranianas no mercado russo, sem impostos e burocracia, levam os analistas a prestar mais atenção a um possível novo movimento do Kremlin. Outros, como Nikolaus von Twickel, acham que Moscou já as anexou “de fato”.

Svetlana, uma operária aposentada de Avdiivka, está tão endurecida pela guerra que decidiu que já não quer saber nada sobre o assunto. Mora em um bloco de apartamentos parcialmente destruído, com as paredes cheias de vestígios dos combates e um punhado de apartamentos completamente tomados por escombros. “Consegui meu apartamento em 2013. Se vou embora teria que alugar outra casa e isso significa um dinheiro que não tenho, de modo que decidi ficar”, comenta a mulher. Os moradores que ficam não têm gás, mas a luz continua, então usam estufas elétricas e reconstruíram o sistema de encanamentos. “Prefiro não escutar todo esse barulho político”, diz, “em outras épocas ocorreram outras guerras e as pessoas continuaram vivendo. Então simplesmente fechamos as janelas e decidimos que aqui não há guerra porque cada um tem seu próprio mundo”.

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