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Guerra ao K-pop: Kim Jong-un redobra sua cruzada cultural contra a Coreia do Sul

Pyongyang intensifica a censura contra a crescente influência de Seul por meio da música e das séries

Kim Jong-Un
Kim Jong-un participa de solenidade com soldados em uma fotografia distribuída no dia 30 de julho pela agência oficial KCNA.STR (AFP)

O recente restabelecimento das comunicações entre a Coreia do Norte e sua vizinha do sul não se traduziu em uma reaproximação cultural, ao menos não em um aumento da tolerância de Pyongyang; Kim Jong-un continua intransigente em sua postura oposta à influência que possa vir do outro lado do paralelo 38 e obcecado em erradicar o que o próprio mandatário rotulou de “um tumor maligno”. O líder supremo lançou uma nova cruzada, agora contra os filmes sul-coreanos, o K-pop e os K-dramas, em outra tentativa de controlar totalmente o menu de entretenimento consumido pelos mais de 25 milhões de habitantes de sua nação.

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No verão passado, o The Daily NK, jornal especializado na Coreia do Norte com sede em Seul, alertou por meio de sua rede de informantes que o país havia reforçado as medidas para eliminar cabelos tingidos, piercings e roupas, como as calças jeans. Em dezembro, a agência de notícias sul-coreana Yonhap concluiu que, com a aprovação da lei de “rejeição da cultura ideológica reacionária”, o Governo norte-coreano intensificava a mão dura contra qualquer possível influência estrangeira. Sob tal legislação, quem assistir, ouvir ou possuir filmes, séries ou músicas estrangeiras, principalmente da Coreia do Sul, poderá pegar até 15 anos de reclusão em campos de trabalho, 10 a mais do que estipulava o código anterior. Quem possuir televisão, rádio, computador ou celular não cadastrado também estará sujeito a essa medida punitiva, enquanto o castigo para quem importar e traficar grandes quantidades de material considerado ilegal é a pena de morte. O texto também afirma que aqueles que “falam, escrevem ou cantam no estilo sul-coreano” poderão ser sentenciados a dois anos de trabalhos forçados.

Seguindo esse tipo de política inquisidora, a imprensa estatal exorta incessantemente as novas gerações a se afastarem de tudo que possa lembrar a Coreia do Sul, seja sua moda, seus penteados, sua música e até mesmo suas gírias. A Liga da Juventude da Coreia do Norte publicou vários documentos em 2021 em que indica que seus membros devem agir como “policiais da moda” para garantir que ninguém se vista ou se penteie no estilo ocidental.

O jornal Rodong Sinmun, a voz do Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte, publicou no final de julho um editorial no qual alardeava a superioridade da língua oficial, baseada no dialeto de Pyongyang, e lembrava aos jovens a necessidade de falar o norte-coreano padrão com propriedade, sem influências externas. “A infiltração ideológica e cultural sob o cartaz de cores burguesas é ainda mais perigosa do que os inimigos que pegam em armas”, destacou o texto. A agência Yonhap também relatou que as mulheres norte-coreanas são exortadas a se referir a seus parceiros como “camarada” em vez de oppa, termo carinhoso usado nos K-dramas.

A Agência Nacional de Inteligência Sul-coreana, por sua vez, afirma que os vídeos de propaganda em que se denuncia a gravidade de seguir “comportamentos capitalistas” são cada vez mais comuns.

A imagem de Kim Jong-un e Moon Jae-apertando as mãos na cúpula de Panmunjom em abril de 2018 deu a volta ao mundo e fez vislumbrar a possibilidade de que a Coreia do Norte mostrasse alguma abertura depois de décadas de isolamento e hostilidade. Naquele mesmo verão, um mês antes de Moon visitar Pyongyang, o líder norte-coreano e sua mulher compareceram a um show de artistas do Sul na capital norte-coreana, o primeiro em mais de uma década, em que algumas estrelas do K-pop estiveram presentes, como a banda Red Velvet.

A posterior estagnação das negociações com os Estados Unidos e a eclosão da pandemia de covid-19, no entanto, fizeram com que este hermético país permanecesse fechado desde janeiro de 2020 e que se reforçasse o controle sobre toda a informação (ou do que se entende por informar). Não há entrada de turistas nem de diplomatas, como tampouco, em detrimento de Pyongyang, de investimento. Outro sinal de distanciamento, escudado no surto de pandemia e no desejo de proteger seus atletas, é a ausência da delegação norte-coreana dos Jogos Olímpicos de Tóquio, pela primeira vez desde Barcelona 1992 (justamente depois de ter boicotado os Jogos de Seul em 1988).

Apesar do duro golpe que a já enfraquecida economia norte-coreana sofreu com a atual conjuntura (afogada há muito tempo como consequência das sanções impostas por grande parte da comunidade internacional liderada por Washington por seu programa armamentista e nuclear e pela ineficiência produtiva do país), o hermetismo como resposta à crise sanitária global criou uma oportunidade para restringir ainda mais as mensagens que poderiam burlar a blindagem de suas fronteiras. Kim Jong-un pediu incessantemente que a educação ideológica fosse promovida e que se zelasse pela disciplina entre os mais jovens. O editorial do Rodong Sinmun inclusive deixa entrever que a sobrevivência do sistema político está em jogo: “somente quando as novas gerações tiverem um profundo senso do espírito ideológico e revolucionário, o futuro da nação poderá ser brilhante; caso contrário, a revolução terá sido em vão. Esta é a lição escrita com sangue na história do movimento socialista mundial”.

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Em declarações divulgadas pela CNN no final de julho, Andrei Lankov, diretor do Korea Risk Group e professor da Universidade Kookmin , em Seul, afirmou que a Coreia do Norte não permite influência estrangeira porque, identificar-se com essas mensagens significaria “aceitar que um modelo alternativo de sociedade funciona e que o norte-coreano não”. As estratégias de propaganda do regime se dedicam há anos a representar a Coreia do Sul como um inferno na Terra cheio de mendigos. No entanto, por meio das novelas sul-coreanas que chegam da China e da própria Coreia do Sul contrabandeadas em pen drives, centenas de milhares de norte-coreanos puderam perceber que na quarta economia da Ásia a realidade não é tão macabra. Adotar o vocabulário, as roupas ou o corte de cabelo sul-coreano implica “por um lado, que a pessoa está de posse de material proibido e, por outro, certa simpatia pela Coreia do Sul”, acrescenta Lankov.

Essa obsessão em censurar tudo o que cheire a capitalismo e a infiltração ideológica contrasta com a retórica que durante décadas a dinastia Kim tentou vender ao mundo, vangloriando-se da educação que o sistema conseguiu dar ao povo, senão em relação ao nível intelectual, ao menos em termos de fortaleza mental para enfrentar qualquer adversidade. Outro paradoxo mais em um cenário de clássico estilo orwelliano que Tae Yong-ho, o primeiro desertor norte-coreano que se tornou legislador na Coreia do Sul, resumiu em uma entrevista concedida à agência Reuters: “durante o dia, a população grita ‘Viva Kim Jong- un!’, à noite, porém, vê novelas e filmes sul-coreanos”.

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