África do Sul revive os fantasmas da violência do ‘apartheid’

25.000 soldados impõem uma paz precária após a morte de 337 pessoas nos piores distúrbios desde o fim da segregação racial

Militar vigia homens detidos por saque em um centro comercial de Soweto no dia 13.LUCA SOLA (AFP)
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A África do Sul vive hoje uma paz precária, imposta pela presença do Exército nas ruas. O Governo sul-africano recorreu a 25.000 soldados para conter a pior onda de distúrbios no país — 337 pessoas morreram nos protestos — desde o fim do apartheid, há 27 anos. Na quinta-feira, a estrada que leva à prisão de Estcourt, na região de KwaZulu-Natal, amanheceu flanqueada por alguns desses militares, juntamente com vários policiais. Aguardavam um único homem, um dos detentos, autorizado a sair da prisão por algumas horas para assistir ao enterro de seu irmão. Esse prisioneiro era Jacob Zuma, de 79 anos, ex-presidente da África do Sul.

O medo de que a fugaz saída do outrora chefe de Estado reavivasse a violência não era infundado. O estopim dos distúrbios foi precisamente sua entrada na prisão, em 8 de julho, para cumprir uma condenação do Tribunal Constitucional por desacato, depois que Zuma se recusou reiteradamente a comparecer perante a Comissão Zondo, que investiga a corrupção sistemática em seus nove anos de presidência (2009-2018). Estima-se que nesse período tenham sido desviados 39 bilhões de dólares (202 bilhões de reais) dos cofres do Estado.

O ex-presidente se entregou voluntariamente para cumprir sua pena, mas, durante uma semana, a democracia mais avançada do continente africano se transformou. As imagens de turbas saqueando lojas, espancando pessoas, queimando mobiliário urbano, enfrentando com armas de fogo guardas de segurança e grupos civis armados se espalharam rapidamente. Essas cenas de caos absoluto ocorreram nas províncias de Gauteng (que é a mais populosa do país e inclui Johannesburgo e Pretória) e KwaZulu-Natal, o feudo de Zuma e seu lugar de origem, onde começaram os protestos e onde fica a prisão à qual que o ex-mandatário retornou na quinta-feira sem incidentes para continuar cumprindo sua pena.

Depois da explosão dos protestos, a situação se agravou tanto que o Governo colocou os soldados nas ruas para ajudar uma polícia sobrecarregada pela violência descontrolada. “Não aos soldados nas nossas ruas! Caso contrário, vamos nos unir. Todos os combatentes devem estar preparados... não poderão matar todos nós. Precisamos de uma solução política para um problema político, não de soldados”, proclamou em 12 de julho em sua conta no Twitter Julius Sello Malema, líder do partido Lutadores pela Liberdade Econômica e ex-presidente da Liga Jovem do Congresso Nacional Africano (CNA), o partido de Nelson Mandela e do próprio Zuma.

Na verdade, a violência dos protestos teve mais a ver com a grave situação econômica, agravada pela pandemia, que o país vive —com 70% de desemprego juvenil — do que com a entrada de Zuma na prisão. “Não acreditava que os seguidores de Zuma fossem instrumentalizar os pobres a ponto de promover violência, saques e caos. A maioria das pessoas envolvidas não tem nada a ver com o ex-presidente. Comprovamos isso nas entrevistas à imprensa nacional, nas quais, ao ser indagadas sobre Zuma, disseram que não se importavam. Foram motivadas pela pobreza, pelo desemprego e pela desigualdade”, explica Oscar Van Herdeen, analista político e professor de Relações Internacionais da Universidade Stellenbosch.

Para Ebrahim Fakir, diretor de programas do Instituto de Pesquisa Socioeconômica Auwal, “foi sem dúvida o protesto mais forte, o pior e aquele no qual foram registradas mais mortes [337, segundo números oficiais], mas não é um fenômeno novo, porque a África do Sul tem seguido uma trajetória de protestos violentos contra tudo de que não gosta, do fornecimento de serviços (eletricidade e água) até a gestão política e as brigas entre facções locais dos partidos”. Fakir concorda com Van Herdeen em que “a desigualdade e os níveis de pobreza” foram manipulados pelos seguidores de Zuma, já que o motivo de seu encarceramento não foi o mesmo dos protestos.

“Zuma já não representa um teste para a CNA, mas sim para o sistema judicial e para a nossa democracia. Ele lidera há 17 anos uma luta feroz contra o Estado de Direito. Os tribunais devem agir sem temor e se reafirmar”, argumenta Ongama Mtimka, analista político da Universidade Nelson Mandela.

O medo de um “novo Marikana” (nessa província do noroeste do país, um confronto entre trabalhadores da empresa Lonmin Platium e a polícia em agosto de 2012 deixou 34 mineiros mortos e outras 250 pessoas feridas) aparece nas reflexões, juntamente com o fato de que o presidente Cyril Ramaphosa tenha ordenado que as forças de segurança agissem sem usar munição real. “Desta vez, a perda de vidas não ocorreu nas mãos dos agentes da ordem. Embora tenha se comprovado, por sua lenta reação, que as forças policiais não estão equipadas nem são capaz de controlar um protesto de forma pacífica. A cultura na África do Sul é responder com mais violência e quando você lhes nega essa possibilidade, como ocorreu desta vez, é como atar suas mãos”, continua Van Herdeen.

A redução orçamentária, as medidas de austeridade e o congelamento dos salários dos funcionários públicos, que afeta também os policiais, são apontados como outros possíveis motivos da ineficácia diante do caos. Embora as mensagens nas redes sociais de partidários de Zuma e de membros de sua família conclamando à derrubada do Governo, assim como a escolha de lugares estratégicos a ser sabotados — centros de distribuição e vias de comunicação entre províncias —, indiquem que nessa semana de caos ocorreu algo além de uma revolta do pão. “Havia um plano traçado, calculado para cortar canais de abastecimento e destruir infraestruturas, para que a violência tivesse um custo significativo para a sociedade e para o erário”, aponta Fakir. Ao que Mtimka acrescenta: “Com base nas ameaças feitas pelo entorno de Zuma após sua detenção, convocando a mobilização de um exército privado e de escudos humanos, seus partidários terão muitas coisas a responder na investigação”.

Na complexa realidade sul-africana pós-apartheid, uma violência como a vivida durante este mês nos obriga a lembrar que o abismo de desigualdade do país tem um nítido aspecto racial, porque a maioria dos ricos é branca e a maior parte dos pobres é negra. “Nos últimos 25 anos os ricos duplicaram, ou até triplicaram, sua riqueza com o fim das sanções e o acesso ao mercado internacional. Deveria ser estabelecido um imposto sobre a riqueza, um fundo de soberania. Os brancos não podem continuar argumentando que, como pagam seus impostos, o Governo é que deve resolver esses problemas”, conclui Van Herdeen.

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