Canadá vive comoção ao totalizar 1.100 restos mortais localizados onde havia internatos de crianças indígenas
País revisita trágica faceta de sua história e confirma ter encontrado na quarta-feira mais 182 cadáveres de crianças, no terceiro caso desse tipo em cinco semanas. Caso é classificado como “genocídio cultural”
A reserva indígena Lower Kootenay, no Canadá, anunciou nesta quarta-feira a descoberta de 182 túmulos não identificados no terreno onde funcionava o internato para crianças indígenas da St. Eugene’s Mission, na localidade de Cranbrook (leste da província da Colúmbia Britânica, a 850 quilômetros de Vancouver). O achado se soma a outros dois realizados nas últimas semanas, e já são mais de 1.100 os restos de menores indígenas encontrados no país.
“Acreditamos que estas 182 almas pertencem à nação Ktunaxa, às Primeiras Nações vizinhas e à comunidade Aqam”, declarou em nota Jason Louie Pierre, chefe dessa reserva. Louie Pierre acrescentou que sua comunidade “tem sobreviventes da escola da St. Eugene’s Mission”, por isso pede respeito ao público em geral nestes duros momentos. Uma centena de crianças pertencentes a essa comunidade indígena foi obrigada a viver naquele centro educacional.
O antigo internato da St. Eugene’s Mission funcionou de 1912 a 1970. Foi administrado por congregações católicas e recebeu 5.000 menores procedentes de grupos nativos da Colúmbia Britânica e Alberta. A instituição integrava uma rede de 139 internatos que operou no Canadá entre 1883 e 1996 para assimilar esses menores à cultura dominante. Uma comissão criada para investigar o ocorrido nesses lugares entregou em 2015 um relatório onde concluiu que se tratou de um “genocídio cultural”. Diversos depoimentos indicam que os castigos físicos, a violência sexual, a negligência, a exploração profissional e o racismo eram comuns nestas instituições financiadas pelo Governo canadense e administradas por grupos religiosos (mais de 70% deles católicos).
Muitas dessas crianças jamais voltaram às suas comunidades. A comissão determinou em 2019 que pelo menos 4.134 menores morreram nestes centros. Outros especialistas calculam que a cifra supera facilmente 6.000. Diversas doenças, combinadas com um ambiente de abandono, terminaram com milhares de vidas. Outros óbitos se deveram a incêndios e suicídios. Entretanto, as causas continuam sendo um mistério em diversos casos.
Em 27 de maio, Rosanne Casimir, chefa da reserva Tk’emlups te Secwépmc, anunciou a descoberta dos restos de 215 menores indígenas —alguns de apenas três anos de idade— no terreno do antigo internato de Kamloops, na província da Colúmbia Britânica. Em 24 de junho, Cadmus Delorme, chefe da reserva Cowessess, informou a descoberta de 751 tumbas não identificadas em terrenos do antigo internato Marieval (província de Saskatchewan). “Não é uma vala comum; são tumbas sem nome”, esclareceu Delorme, acrescentando que a Igreja Católica retirou as lápides nos anos 1960.
O primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, divulgou um comunicado, na ocasião da localização dos primeiros corpos, em que assumiu que o Canadá é responsável pela morte dessas crianças. “Sei que essa descoberta só agrava a dor que as famílias, sobreviventes e todas as comunidades indígenas já sentem e reafirma uma verdade que já sabem há muito tempo. O Canadá é responsável pela dor e pelo trauma que eles sentem”, afirmou Trudeau. O premiê canadense acrescentou que “as descobertas de Marieval e Kamloops são parte de uma tragédia maior. Eles são uma vergonhosa lembrança do racismo, discriminação e injustiça sistêmica que os povos indígenas enfrentaram e ainda enfrentam neste país.”
Assim como em Kamloops e Marieval, a descoberta na St. Eugene’s Mission foi possível graças a um georradar. O comunicado da reserva Lower Kootenay informou que as tumbas são pouco profundas, indo até aproximadamente um metro abaixo da terra. Os líderes dessa comunidade prometeram divulgar mais detalhes nos próximos dias. Poucos anos depois de seu fechamento, esse antigo internato foi transformado em um hotel e cassino, com um campo de golfe ao lado.
“Já disse antes e direi novamente: este é o começo destas descobertas. Peço a todos os canadenses que se unam às Primeiras Nações para exigir justiça”, escreveu Perry Bellegard, chefe da Assembleia de Primeiras Nações do Canadá, no Twitter. Os achados em Kamloops e Marieval desencadearam uma onda de reações para que o Governo federal forneça toda a ajuda possível para encontrar, identificar e homenagear os menores desaparecidos, uma das recomendações feitas pela comissão em 2015. Do mesmo modo, as cobranças à Igreja Católica não param. Diversas vozes exigem que o Papa se desculpe pelo ocorrido nos internatos e que a Santa Sé cubra as dívidas pendentes em matéria de indenizações e abra arquivos para apoiar as pesquisas.