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O inferno de ser criança em Gaza

Menores palestinos sofrem as sequelas da guerra na Faixa de Gaza. Pelo menos 66 morreram durante os últimos ataques

Gaza
Um palestino brinca no sábado com uma garota ao lado dos escombros de uma casa bombardeada, em Gaza.ASHRAF AMRA (Europa Press)
Juan Carlos Sanz

Muitos não haviam nascido há sete anos, quando ocorreu o último dos conflitos recentes na Faixa de Gaza. Agora já fazem parte de uma memória coletiva do sofrimento. “Se há um inferno na terra, está na vida das crianças em Gaza”, disse o secretário-geral da ONU, António Guterres, na quinta-feira, pouco antes de entrar em vigor o cessar-fogo entre Israel e as milícias da Faixa após 11 dias de hostilidades. Um quarto dos 243 palestinos mortos nos bombardeios é de crianças, mas todos eles sofreram o impacto direto em suas vidas da maior conflagração desde 2014, uma guerra curta e intensa e que ninguém lembra mais o nome da operação militar que a desencadeou.

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Palestinian 10 year-old girl Layan Muhareb receives medical treatment of her wounds caused by an Israeli airstrike in the town of Khan Younis, southern Gaza Strip, Thursday, May 20, 2021. (AP Photo/Yousef Masoud)
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“As crianças já não querem ir sozinhas ao banheiro. Têm medo de tudo”, relata Ignacio Cazares, de 56 anos, chefe da missão do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICR) em Gaza. “Meus colaboradores locais me dizem que de noite hesitam entre dormir com todos os seus filhos juntos, para morrer de uma vez no mesmo ataque, e separados em grupos, para que pelo menos uma parte da família se salve”, diz o coronel do Exército em licença, curtido na Bósnia e no Afeganistão, e que há oito anos trabalha para o CICR em locais como o Iêmen e Iraque.

 Ignacio Casares.
Ignacio Casares.Foto cedida por el entrevistado.
“As crianças já não querem ir sozinhas ao banheiro. Têm medo de tudo”
Ignacio Cazares, de 56 anos, chefe da missão do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICR) em Gaza.

É praticamente o único espanhol não residente permanente na Faixa que vivenciou de dentro a conflagração e cuja missão na área acabaria dia 10, quando começaram a cair as bombas israelenses após o disparo de foguetes de Gaza na direção de Jerusalém. Três dias depois precisou desocupar à toda pressa seu escritório na capital do enclave após receber o aviso israelense do bombardeio que derrubou a torre Al Shoruk, localizada nos arredores ―“lá dei uma entrevista de despedida poucos dias antes”, lembra―, sede dos principais veículos de comunicação palestinos.

Fadi Shaik e sua família não foram alertados há uma semana do bombardeio em que morreram 42 pessoas no distrito de Rimal de Gaza. “Estava há muitas noites dormindo com minha mulher e meus dois filhos no corredor de nosso apartamento, o único local sem janelas, abraçados juntos, com colchões e cobertores, com documentos e algumas roupas caso fosse preciso escapar”, lembra o professor de inglês sobre o ocorrido na madrugada do dia 17, quando foi registrado o ataque mais mortífero da escalada bélica. Seu filho mais velho, Nabil, de nove anos, tenta descrever como a explosão estremeceu toda a casa, enquanto sua irmã Jood, de seis, concorda ainda com cara de susto.

Da mesma forma que o responsável internacional humanitário ―“em Gaza agora é chover no molhado com a pandemia”, destaca Cazares―, o professor Shaik alerta que a covid-19 ameaça golpear duramente a população civil. Os bombardeios deixaram a clínica Al Rimal inutilizável, o único laboratório do enclave que realizava testes de detecção do coronavírus. Obrigado a dar aulas por via remota há mais de dois meses, seu chat de mensagens com os alunos nas duas últimas semanas não esteve focado na gramática, e sim nas bombas.

Qaukab Hasimi, na esquerda, e Sadia Daud, com alguns de seus filhos, no sábado em Gaza.
Qaukab Hasimi, na esquerda, e Sadia Daud, com alguns de seus filhos, no sábado em Gaza. Juan Carlos Sanz

“Hoje temos uma festa com aviões”, escreveu no WhatsApp Muyahid, de 14 anos.

O professor repassa com ar preocupado ―“não sei como as crianças sairão disso tudo”―outras mensagens de seus estudantes em que um irônico senso de humor pouco esconde o pânico dos adolescentes.

“Feliz Eid el Fitr”, em referência à festa posterior ao Ramadã, que coincidiu com os bombardeios mais intensos do conflito. “Vieram nos visitar”, tentou descrever sarcasticamente seus temores o mesmo Muyahid.

Harb Shokar, com seus quatro filhos, no sábado em Gaza.
Harb Shokar, com seus quatro filhos, no sábado em Gaza.Juan Carlos Sanz

“Sofremos muito durante anos com o apagão informativo da imprensa ocidental sobre a situação dos palestinos. Esperamos, pelo menos, que após tanta destruição e tanta morte o mundo volte a olhar para Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental”, argumenta o professor local, que dá aulas em um colégio gerido pela Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos (UNRWA).

A escola Abu Hasi da UNRWA, no campo de refugiados de Shati da capital de Gaza, abriga duas centenas de famílias que perderam suas casas. “Não nos conhecíamos até pouco atrás e agora somos como irmãs”, dizem juntas Qauqab Hasimi, de 42 anos e mãe de nove filhos, e Sadia Daub, de 18, e que toma conta de seus cinco irmãos enquanto sua mãe dá à luz ao sexto. Em uma classe decorada com um arco-íris convivem agora duas dezenas de palestinos desabrigados, separados por velhos reposteiros e acomodados em tapetes e cobertores fornecidos por moradores da área próxima ao prédio.

Quase todos são crianças que correm descalças pela classe. “Muitos se urinam de noite. Outros não falam”, revela a primeira mulher. “Nenhuma está ferida, mas todas sofrem sequelas psicológicas”, diz a segunda. “Elas se assustam com qualquer coisa”, afirmam. “Sem trabalho e com o coronavírus já estávamos mal antes dessa guerra, e agora...”, lamenta Hasimi, a mais velha delas. “Por favor, não se esqueçam de nós”, suplica Daud, a mais jovem. Mais de 70.000 civis procuraram refúgio durante as hostilidades nos centros da UNRWA, ainda que algumas escolas que abrigavam as famílias mais próximas à fronteira israelense já tenham sido desocupadas após o cessar-fogo.

Sem energia e água

A eletricidade só chega às casas durante quatro horas por dia, antes de um corte de fornecimento de pelo menos seis horas. Gaza voltou à escuridão, mas também a beber água contaminada. Sem energia, as usinas de dessalinização que abastecem 400.000 pessoas deixaram de operar, da mesma forma que as depuradoras que impedem que o refluxo do esgoto envenene os aquíferos.

 Hamari Debesh, com seus quatro filhos, no sábado em Gaza.
Hamari Debesh, com seus quatro filhos, no sábado em Gaza.Juan Carlos Sanz
“Preciso abraçar todos para que consigam dormir”
Hamari Debesh, de 30 anos.

O Ministério da Habitação contabilizou 16.800 casas danificadas, das quais 2.800 ficaram destruídas e inabitáveis. Estimativas das autoridades palestinas citadas pela colunista Amira Hass no jornal israelense Haaretz avaliam em 250 milhões de euros (1,6 bilhão de reais) os danos causados pelos ataques israelenses em Gaza.

Na mesma escola Abu Hasi da UNRWA, transformada em condomínio e praça comum para os que fugiram dos escombros, o sucateiro Harb Shokar, de 30 anos, fuma de cócoras recém-chegado da visita aos restos de sua casa em Al Tufah, no leste da Faixa de Gaza. “Já não resta nada”, responde introvertido. Perdeu tudo, menos sua esposa e seus filhos de sete, seis, quatro, dois e um ano. “Preciso abraçar todos para que consigam dormir”, confessa sem deixar de expressar sua tristeza. Na guerra de 2014 sua casa já havia sido parcialmente danificada por um bombardeio.

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Hamari Debesh, de 30 anos, também perdeu sua casa em Jabalia, ao norte de Gaza. “Estamos há mais de uma semana sem poder trocar de roupa”, disse cercada por seus quatro filhos. “Os banheiros do colégio estão lotados com tanta gente. Se pelo menos um aposento de minha casa estivesse de pé, não estaríamos aqui”, se queixa a ponto de cair no desespero”. “Não desejo para ninguém viver assim com seus filhos”.

“Os civis não tiveram um momento de respiro sequer, nem uma pausa humanitária durante 11 dias”, constatou o responsável da Cruz Vermelha na Faixa palestina em uma conversa mantida poucas horas antes do cessar-fogo. “O que resta ao final da violência é o medo das crianças, que se perguntam por que são atacadas, não entendem o que está acontecendo”, afirma o coronel Casares, acostumado aos cenário bélicos, mas surpreso pelos intensos ataques sobre as ruas de Gaza.

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