México e Argentina selam um novo eixo progressista na América Latina
López Obrador e Alberto Fernández demonstram sintonia em torno de um objetivo comum: concluir a ruptura com o passado recente e a herança dos últimos Governos
Os presidentes do México e da Argentina lançaram nesta terça-feira as bases de um propósito comum que busca reforçar um novo eixo progressista e antineoliberal na América Latina. A visita oficial que Alberto Fernández iniciou na segunda-feira ao país da América do Norte busca fortalecer uma aliança geopolítica na região, indo além da atual conjuntura determinada pelo combate à pandemia de covid-19 e a gestão das vacinas. Em uma entrevista coletiva conjunta após o encontro bilateral, os dois mandatários demonstraram uma profunda sintonia marcada por um objetivo: terminar de romper com o passado recente e a herança dos últimos Governos.
O mexicano Andrés Manuel López Obrador venceu as eleições presidenciais de 2018 prometendo centrar-se nos assuntos nacionais. “A melhor política externa é a política interna”, foi sempre uma das máximas do veterano político centro-esquerdista. Fiel a ela, desde sua posse evitava se pronunciar abertamente ou interferir nas questões que mais preocupam a América Latina, mas nas últimas semanas a estratégia de seu Governo mudou, ao menos aparentemente, e se encaminha para o exercício de uma maior liderança dentro da região. Essa é uma iniciativa que a Argentina, por sua vez, se mostra decidida a apoiar sem muitos reparos. “Que o México e a Argentina estejam unidos é um dever que temos. Que encarem um futuro comum e que isto ajude a América Latina é uma obrigação que temos. Do país mais setentrional ao mais austral, devemos ser capazes de traçar um eixo que una todo o continente”, afirmou Fernández.
O México se tornou uma espécie de representante dos países prejudicados na distribuição internacional das vacinas contra a covid-19, e esse fato foi recordado por seu chanceler, Marcelo Ebrard, durante a habitual entrevista coletiva matinal do presidente, com a participação do convidado argentino. “Na semana passada, levamos isso ao Conselho de Segurança da ONU, por indicação do presidente López Obrador. Assim de inaceitável é o acúmulo de vacinas [por parte de alguns governos nacionais]. Dez países já estão concentrando quase 80% das vacinas do mundo, e, pior, isso está se acelerando”, lamentou o ministro de Relações Exteriores. O México, com aproximadamente de 130 milhões de habitantes, só conseguiu administrar pouco mais de 1,7 milhão de doses até agora.
O Executivo de Alberto Fernández apoiou esse protesto em prol de uma distribuição mais equitativa. Mas esse é apenas um passo concreto de uma agenda compartilhada, que tem também um grande alcance simbólico. O mandatário relembrou a proteção oferecida pelo México aos exilados da ditadura (1976-84) e a acolhida que o Governo de López Obrador deu ao deposto presidente boliviano Evo Morales em novembro 2019, quando o político peronista já tinha vencido as eleições, mas ainda não havia tomado posse. A afinidade entre ambos os projetos políticos é talvez a principal premissa para estruturar essa aliança.
Fernández foi, além disso, o primeiro presidente a participar de uma mañanera, as habituais coletivas com que López Obrador inicia o dia. Trata-se de mais um sinal desse alinhamento, que é político e até pessoal. Nas palavras do Martín Borrego Llorente, subsecretário da chancelaria mexicana para a América Latina, há uma “uma química natural” entre os dois presidentes, “uma sintonia de posições entre eles, e isso gerou um diálogo fluente”. As coincidências ideológicas entre Fernández e AMLO se traduziram em elogios nesta terça-feira. “Por fim o México tem um presidente com valores morais como os mexicanos merecem”, declarou o argentino. “Alberto é nosso amigo”, respondeu seu homólogo.
O objetivo de López Obrador e de Fernández consiste, em última instância, em promover uma retomada dos equilíbrios recentes, quando o mapa geopolítico da América Latina estava tingido de vermelho, embora essa cor comportasse uma ampla gama de matizes. Da Argentina de Cristina Fernández à Bolívia de Evo Morales, passando pelo Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, a esquerda governava em quase toda a América do Sul. Há uma década a socialista Michelle Bachelet acabava de terminar sua primeira presidência no Chile, à qual voltou depois, entre 2014 e 2018. Rafael Correa estava em plena ascensão no Equador, e Hugo Chávez continuava no poder na Venezuela, onde, apesar das críticas à sua gestão, ainda não havia se acelerado a perda de rumo nos aspectos social, institucional e econômica, que marcam o atual governo de Nicolás Maduro.
Fim do eixo bolivariano
Depois do desmoronamento do chamado eixo bolivariano, nos últimos meses a esquerda herdeira de Morales voltou ao poder na Bolívia, e o mesmo pode ocorrer nas eleições marcadas para abril no Equador e Peru. No primeiro, um candidato apadrinhado pelo ex-presidente Correa venceu o primeiro turno por ampla margem, em 7 de fevereiro. Ao mesmo tempo, multiplicaram-se as atividades de organizações que promovem políticas progressistas, como o Grupo de Puebla, fundado em 2019 nessa cidade mexicana. Neste contexto, México e Argentina, nos extremos norte a sul da América Latina, encabeçam as aspirações de mudança na região.
Isso era o mais importante, a mensagem primitiva além das sombras que pairavam sobre a visita. Fernández é o primeiro presidente argentino em uma década a visitar o México durante seu mandato, e seus objetivos são essencialmente comerciais, num momento em que sua administração se vê salpicada pelo escândalo das vacinas administradas irregularmente a 70 pessoas influentes. O caso, que abriu uma profunda crise política e custou o cargo do ministro argentino da Saúde, lança uma sombra sobre a visita quando os holofotes estão voltados justamente para a gestão das vacinas contra a covid-19. Fernández, entretanto, pediu que o tema fosse tratado sem politização e se dirigiu à Justiça com uma reclamação: “Vamos acabar com essa palhaçada”.
O político minimizou a dezena de denúncias apresentadas e as exigências de apuração de responsabilidades no caso, revelado na sexta-feira passada. “Não há nenhuma tipificação penal na Argentina que preveja punição a quem vacinar aqueles que furam a fila. Não se podem construir delitos de graça”, enfatizou o presidente, que diz ter feito o necessário para virar a página. O escândalo das vacinas desembocou na demissão de um dos ministros mais fortes da sua Administração, Ginés González García, depois da revelação de que alguns poucos privilegiados com bons contatos nos altos escalões haviam sido imunizados dentro da sede do ministério. Na lista desses vacinados VIPs, que o Executivo argentino revelou na segunda-feira, aparecem nomes como o do ex-presidente Eduardo Duhalde e seus filhos e do ex-presidenciável kirchnerista Daniel Scioli.
Devido às denúncias, a Justiça acatou na segunda-feira uma denúncia penal contra González García por abuso de autoridade e determinou a realização de buscas na sede do Ministério da Saúde. “Reagi e perdi um ministro”, recordou Fernández. “Se houver mais responsáveis, terão de ir embora, mas não vou assumir o escárnio público que estão promovendo de forma desmedida na Argentina”, prosseguiu.
López Obrador evitou se pronunciar sobre o tema. “Respeitamos muito o Governo da Argentina e não vamos opinar sobre este assunto neste momento”, declarou. O presidente mexicano aproveitou as perguntas dos jornalistas para ressaltar as mudanças, a ruptura com o passado ―especificamente os últimos Governos de Felipe Calderón e Enrique Peña Nieto, o que é uma das prioridades de seu mandato― e atacar a imprensa, procurando também nisso uma afinidade com Fernández.
“Às vezes a imprensa não age com objetividade. E nestes casos, como dizia Alberto [Fernández], eu achava que era só no México essa imprensa conservadora, os que apoiavam os Governos neoliberais, que saquearam ―eu acho que no caso do México não há dúvida, no caso da Argentina não posso dizer mais do que me consta, que endividaram a Argentina”, afirmou, referindo-se à relação desse país com o Fundo Monetário Internacional durante o Governo de Mauricio Macri. “Isso sim me consta. Os organismos financeiros internacionais, que supostamente agem com imparcialidade e que não participam da política, e isso é mentira.”