Denunciou o companheiro 18 vezes e foi assassinada. O feminicídio que coloca a polícia argentina na mira
Morte de Úrsula Bahillo, esfaqueada pelo policial Matías Ezequiel Martínez, reacende protestos contra falhas na proteção das vítimas e impunidade dos agressores. “Que mulher vai denunciar agora?”
A argentina Úrsula Bahillo suportou sete meses em silêncio a violência que sofria de seu companheiro, o policial Matías Ezequiel Martínez. Até que um dia ela começou a contar. Para as amigas, para a família e, depois, em delegacias, onde o denunciou porque tinha medo que a matasse. Na noite de segunda-feira, Bahillo foi morta a facadas em uma área rural da província de Buenos Aires. Tinha 18 anos. O feminicídio reacendeu os protestos contra o sistema judiciário e a polícia, que com frequência falham na proteção das vítimas. Familiares de vítimas de feminicídio exigem que o Governo de Alberto Fernández adote medidas urgentes para evitar mais mortes e a impunidade dos agressores.
“Um agressor não pode ser protegido pela mesma força que tem que puni-lo”, diz Ada Rico, líder da ONG Casa do Encontro, pioneira na produção de estatísticas sobre feminicídios na Argentina. Entre 2010 e 2020, em Buenos Aires e sua região metropolitana, 48 mulheres foram assassinadas por seus companheiros ou ex-companheiros policiais. Rico alerta que para as mulheres agredidas é muito difícil dar o passo de denunciar e a dificuldade aumenta se o acusado for um policial, pois com frequência seus colegas o encobrem. Em uma das vezes em que Bahillo foi denunciá-lo na delegacia da mulher, não tomaram seu depoimento porque era fim de semana. Deram uma licença psiquiátrica para Martinez.
“Não posso mais, amiga, não posso mais, estou muito triste. Ele me disse que vai me matar”, disse Bahillo a uma amiga em novembro. “Não aguento mais, quase quebrou a minha mão, não consigo mexer meu pulso. Quero ir embora daqui. Estou com muito medo, arrancou todo o meu cabelo, me encheu de pancadas”, continua a mensagem transmitida pela mídia local nesta quarta-feira. A Justiça negou as medidas protetivas pedidas contra Martínez. Nem deu a Bahillo um botão do pânico. “Úrsula pediu ajuda, Úrsula denunciou, Úrsula deveria estar viva”, enfatizam na Anistia Internacional.
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Clique aquiNa noite de segunda-feira, dezenas de pessoas se concentraram na localidade de Rojas, na província de Buenos Aires, para exigir justiça para a jovem assassinada. Houve pedradas contra a delegacia, carros incendiados e uma dura repressão policial. Um dia depois, parentes, amigos e vizinhos protestaram novamente. Na quarta-feira, enquanto em Rojas uma multidão acompanhava o cortejo fúnebre, em Buenos Aires, parentes de outras vítimas de feminicídios levantavam suas vozes. O movimento Nem Uma a Menos convocou uma grande mobilização para a semana que vem.
“Venho do Ministério Público. Cansei de pedir justiça, além da dor que sinto nesses quase quatro anos que não tenho minha filha. Jurei para minha filha que iria fazer justiça, mas temos juízes inoperantes e um Estado que é cego, surdo e muito corruptível”, denunciou na Plaza de Mayo Marisa Rodríguez, mãe de Luna Ortiz, jovem de 19 anos que foi assassinada em junho de 2017.
A seu lado, Mónica Susana Ferreira assentia com a cabeça: “Infelizmente estamos rodeados de corrupção e nunca se faz justiça”. A polícia demorou 25 dias para encontrar o corpo de sua filha, Araceli Fulles. Estava enterrada sob escombros, cal e concreto em uma casa a pouco mais de um quilômetro da dela. “Quando fui ver, seu rostinho lindo não existia mais. Só tinha os olhinhos e dentes”, descreveu sobre o momento do reconhecimento.
Passados quase quatro anos do assassinato, Ferreira denuncia a cumplicidade policial para encobrir alguns dos suspeitos e a desconfiança que o caso de Úrsula Bahillo causará em outras mulheres vítimas de violência. “Nunca mais vou tirar minha filha do cemitério, mas temos que fazer algo pelas mulheres que estão vivas. Que mulher vai denunciar agora? Se Úrsula fez 18 denúncias e a mataram. Não vão denunciar se virem que não adianta”, adverte.