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Joe Biden quer curar feridas após a eleição, mas os EUA vão em outra direção

Disputa política escancarou a grave polarização vivida no país, que ameaça a governabilidade do presidente eleito

Amanda Mars
Seguidor de Donald Trump ameaça golpear um manifestante em Michigan, em 7 de novembro.
Seguidor de Donald Trump ameaça golpear um manifestante em Michigan, em 7 de novembro.JOHN MOORE (AFP)

David Andahl, um fazendeiro de Dakota do Norte de 55 anos, morreu por coronavírus em 5 de outubro, após vários dias internado. Na terça-feira, ele obteve uma cadeira no Legislativo de seu Estado. Nos EUA, uma pessoa pode ganhar eleições depois de morto, literalmente. Só precisa de uma boa base de apoio. Quando Andahl morreu, era tarde demais para nomear um substituto na cédula, de modo que o Partido Republicano foi às urnas com um candidato defunto, sem suplente ainda identificado. Mesmo assim, ele obteve mais confiança dos eleitores que qualquer adversário democrata.

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Mas uma coisa é ganhar depois de enterrado e outra é arrasar. Foi o que fez o empresário de casas noturnas Dennis Hof nas eleições legislativas de 6 de novembro de 2018. Duas semanas antes, Hof havia sido encontrado morto no chão de um de seus prostíbulos, Love Ranch, em Nevada, depois de dois dias comemorando aniversário de 72 anos. De novo, as normas impediam sua substituição. Então os eleitores do distrito 36 da Assembleia de Nevada, um pedaço de terra republicano até a medula, tiveram que escolher entre o falecido e uma educadora democrata chamada Lesia Romanov. E 63% deles elegeram Hof.

Muitos eleitores preferem votar num proxeneta morto de seu próprio partido a um candidato do partido rival. Na verdade, os eleitores que mudam de partido não passam de 9% (segundo dados do instituto de pesquisas Pew), e os índices de aprovação de Donald Trump entre os republicanos estiveram na faixa entre 80% e 90% durante seus quatro anos de mandato. Entre os democratas, por outro lado, a aprovação do mandatário nunca superou os 14%, ficando a maior parte do tempo abaixo de 10%, segundo o Gallup. Ambos os grupos estão cada vez mais separados. Um recente estudo do Pew revelou que quatro em cada 10 norte-americanos não têm um único amigo próximo que vote em alguém diferente.

Em seu discurso de vitória, Joe Biden apelou para um sentimento patriótico que permita deixar de lado as diferenças em busca de um bem maior para o país. “É hora de baixar a temperatura e curar feridas; vamos nos olhar, nos ouvir de novo. Deixemos de ver nossos oponentes como rivais. Não são, são americanos”, disse ele no sábado, no palco do Chase Center de Wilmington (Delaware). Nem o contexto nem as tendências são animadores.

Enquanto Biden falava, o ainda presidente Trump se negava a aceitar o resultado e insistia em preparar sua batalha judicial contra a derrota, incitando acusações de fraude até o momento infundadas. Enquanto as grandes cidades do país, bastiões progressistas em sua maioria, explodiam numa alegria quase raivosa pela derrota do republicano, um grupo de seguidores continuava concentrado no centro de apuração de votos do condado de Maricopa (Arizona), protestando e rezando, vários deles com roupas militares e fuzis AR-15 e AK-47 pendurados no ombro. Houve uma linguagem extrema nessa campanha. Trump foi qualificado de neofascista, de aprendiz de tirano, e seus seguidores tacharam Biden de senil, corrupto e socialista —termo que em boa parte dos EUA é entendido como comunista e autoritário.

O republicano obteve mais de 71 milhões de votos, segundo os dados do escrutínio de domingo. O presidente eleito também prometeu governar para eles.

Mas a governabilidade parece complicada. O democrata pode ser um presidente de mãos amarradas pelo Congresso, como foi Barack Obama durante seu segundo mandato, pois os dados da apuração indicam que o Capitólio continuará dividido. Os republicanos recuperaram algumas cadeiras na Câmara de Representantes (deputados), que ainda assim continuará sob controle democrata, e parecem destinados a manter o domínio do Senado. Isso deixará boa parte da agenda progressista da nova Administração no ar, como as leis ambientais mais ambiciosas e a reforma da saúde.

Os consensos entre republicanos e democratas serão necessários. Possíveis eles são, como se viu meses atrás quando aprovaram, por unanimidade, o maior resgate econômico da história do país. E também em 2018, quando avançaram com a reforma do sistema penitenciário —aprovada por uma esmagadora maioria bipartidária. Mas nem sempre eles sentem esses incentivos ou essa pressão popular. A presidência de Biden terá muita dificuldade em nomear juízes na Suprema Corte se não conseguir maioria na Câmara Alta. Com ela, os republicanos de Trump puderam colocar três juízes conservadores num único mandato.

O futuro Capitólio tampouco transmite o triunfo da moderação. Marjorie Taylor Greene, uma empresária da Geórgia seguidora do movimento direitista de teoria da conspiração QAnon, ocupará uma nova cadeira na Câmara de Representantes. Greene se referiu a QAnon como “uma oportunidade única na vida para expor essa seita de pedófilos adoradores de Satã”. Uma das teorias da conspiração mais populares desses grupos sustenta que renomados políticos democratas têm uma rede de abuso de menores numa conhecida pizzaria de Washington. Hillary Clinton seria uma das líderes.

O republicano Madison Cawthorn (Carolina do Norte), de 25 anos, tornou-se a pessoa mais jovem da história recente a chegar à Câmara Baixa em Washington. Recentemente, ele havia criado um site em que acusava um jornalista de ter deixado seu emprego na universidade “para homens não brancos como Cory Brooker [senador negro de Nova Jersey], que busca arruinar os homens brancos disputando as eleições [era pré-candidato nas primárias].”

O pleito de terça-feira também mostrou, uma vez mais, a grande distância entre o voto urbano e o rural. As viradas progressistas de alguns territórios, como Texas e Geórgia, têm a ver sobretudo com o voto das cidades e seu crescente peso demográfico. A polarização geográfica, pela qual os seguidores de um partido tendem a se concentrar nas mesmas zonas, não era tão extrema nos EUA desde 1860, no prelúdio da Guerra Civil. A tarefa de curar feridas parece realmente difícil.

Biden e a vice-presidenta eleita, Kamala Harris, já colocaram em marcha sua equipe de transição. E Trump, o presidente em fim de mandato, prepara sua batalha judicial contra a derrota. Seu entorno já testa o ambiente político quanto à possibilidade de voltar em 2024. É como querer ganhar a eleição depois de morto.

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