Supremo argentino impede transferência de três juízes que participam de processos contra Cristina Kirchner
Decisão é derrota para o governo. A Corte não analisou o mérito da questão, mas optou por aceitar o recurso dos afetados em razão da “gravidade institucional inusitada” do assunto
A Corte Suprema de Justiça da Argentina barrou nesta terça-feira a transferência de três juízes federais. Foi uma decisão unânime e de grande significado político, pois os três juízes estão participando de ações contra a vice-presidenta Cristina Fernández de Kirchner e a maioria parlamentar peronista fez todo o possível para afastá-los de seu trabalho. Os cinco magistrados da Corte não entraram no mérito da questão, mas optaram por aceitar o recurso dos juízes por causa da “gravidade institucional inusitada” da matéria. Foi um claro tapa no Governo.
O Governo, seus parlamentares e o Conselho da Magistratura, controlado pelo kirchnerismo, argumentam que Leopoldo Bruglia, Pablo Bertuzzi e Germán Castelli, os juízes no centro do conflito, foram colocados irregularmente em tribunais federais pelo presidente anterior, Mauricio Macri, e consideram necessário retirá-los de suas posições atuais para corrigir a alegada anomalia inicial. Ocorre, porém, que Bruglia foi quem ratificou a investigação do “caso dos cadernos” sobre supostas comissões ilegais recebidas por Cristina Fernández de Kirchner; que Bertuzzi condenou por corrupção Amado Boudou, vice-presidente durante a presidência de Cristina Fernández de Kirchner; e que Castelli é quem deve julgar o “caso dos cadernos”. Todos os três são considerados inimigos pela poderosa vice-presidenta.
A tentativa de transferência dos três juízes segue em paralelo à reforma judicial empreendida pelo Governo de Alberto Fernández como questão prioritária. Pode ser surpreendente que, em plena uma pandemia, com as duas casas do Parlamento forçadas a realizar sessões virtuais e sob uma duríssima crise econômica, a questão judicial seja considerada de máxima prioridade. Para a oposição, o objetivo é domar os juízes e garantir a impunidade da vice-presidenta.
Quando os três juízes afetados apelaram diretamente à Corte Suprema, saltando instâncias intermediárias, no chamado per saltum, e o tribunal concordou em debater o caso, Alberto Fernández ficou furioso. “O que o presidente da Corte [Carlos Rosenkrantz] está procurando? Eu me pergunto porque qualquer um que estudou Direito sabe que isso é um escândalo jurídico.” “A única coisa que nós estamos fazendo”, afirmou o presidente da República, "é restaurar uma ordem perdida no Governo anterior. O que aconteceria se eu procurasse um juiz que acho simpático e o colocasse na vaga de Claudio Bonadío [o falecido juiz que imputou a vice-presidenta]? Se eu fizesse isso, seria um escândalo. O que quero dizer é que foi isso que eles fizeram.
O fato de o presidente, um professor de Direito Penal, ter questionado os cinco ministros da Corte Suprema de forma tão áspera foi surpreendente. Mais estranha foi uma mensagem da vice-presidenta e principal promotora das transferências. Cristina Fernández de Kirchner disse que a Corte Suprema queria manter os três juízes na Câmara Federal “para garantir a impunidade de Mauricio Macri”.
A unanimidade dos cinco membros da corte Suprema foi incomum. O atual presidente, Carlos Rosenkrantz, e o anterior, Ricardo Lorenzetti, mantêm divergências jurídicas e pessoais; os outros três, Elena Highton de Nolasco, Juan Carlos Maqueda e Horacio Rosatti, também não se entendem bem. Na justificativa de seu voto, Rosenkrantz escreveu que no caso “poderia estar em jogo a inamobilidade dos juízes nacionais, isto é, o direito de permanecer em seus postos enquanto durar sua boa conduta (artigo 110 da Constituição)”.
“É inegável”, continuou, “que o caso tem uma gravidade institucional inusitada, pois em sua decisão está comprometida uma instituição básica do sistema republicano, que é a independência do Poder Judiciário”. Fontes da Corte Suprema indicaram que a resolução definitiva será adotada em um período máximo de duas semanas. Leopoldo Bruglia, um dos três juízes questionados, disse que a decisão de interromper as transferências foi “muito saudável para a Justiça na Argentina”. O presidente do partido de oposição União Cívica Radical, Alfredo Cornejo, declarou que a decisão da Corte Suprema de Justiça representa “uma trégua democrática”.
No sábado, manifestantes da oposição se manifestaram diante da casa do juiz Lorenzetti, em uma manobra de coação que o presidente Alberto Fernández descreveu como “o mais vil dos escrachos, algo típico do fascismo e do nazismo”. Durante a noite desta segunda-feira, dezenas de opositores fizeram uma vigília em frente ao Palácio dos Tribunais, sede da Corte Suprema, com faixas como “Máfia ou República” e “Justiça Independente”.