Chefe de gabinete de Fernández: “Na Argentina, quem precisou de respirador teve um”
Santiago Cafiero, chefe do Gabinete de Ministros do Governo argentino, diz que seu país sofre pela crise da pandemia acrescida à crise econômica herdada de Mauricio Macri
Santiago Cafiero (San Isidro, 1979) pertence a uma longa dinastia peronista. O chefe de gabinete (primeiro-ministro) do presidente Alberto Fernández diz que a Argentina sofre a crise da pandemia em cima de outra crise, a econômica herdada de Mauricio Macri, e defende a longa quarentena iniciada em 20 de março que ainda não terminou. Nesta entrevista, realizada em seu escritório na Casa Rosada, afirma que “o sistema de saúde não foi saturado e quem precisou de respirador teve um”.
Pergunta. Por que em plena pandemia, quando os consensos são mais necessários, se dá prioridade a uma reforma tão conflituosa quanto a da Justiça?
Resposta. É algo que o presidente vinha planejando há muito tempo. Esta reforma agrega tribunais e acessibilidade.
P. Principalmente em Buenos Aires.
R. Não, em Santa Fé, com muitos conflitos por causa do narcotráfico, se somam também nove tribunais. A hora é agora porque as prioridades definidas pelo presidente não devem ser adiadas por causa da pandemia. O que objetamos é que a oposição tenha antecipado seu voto contrário antes de ler o projeto. Este Governo sempre promoveu o diálogo. O presidente se reuniu três vezes com os blocos da oposição e as medidas contra a pandemia são tomadas em conjunto com os governadores, independentemente das cores políticas. O diálogo faz parte do DNA deste Governo. O presidente anterior [Mauricio Macri], em seus quatro anos de mandato, não se reuniu uma única vez com a oposição. Distribuímos assistência de forma equitativa entre todas as províncias.
P. A discricionariedade é precisamente o que o macrismo criticava no peronismo.
R. Criamos um fundo fiduciário de desenvolvimento provincial com 60 bilhões de pesos [cerca de 4,45 bilhões de reais] e acrescentamos outros 50 bilhões. Em seguida, distribuímos 60 bilhões em adiantamentos do Tesouro Nacional. Estabelecemos o mesmo parâmetro de distribuição da lei de coparticipação, que regulamenta a repartição dos recursos federais. Não dizemos: para este sim, para aquele não.
P. Vamos voltar à Justiça.
R. Fizemos o Congresso se reunir em janeiro, o que não acontecia desde a crise de 2002. Leis como a de sustentabilidade da dívida pública foram aprovadas praticamente por unanimidade. Tínhamos um orçamento do Governo anterior totalmente descalibrado, a Argentina estava praticamente em default, havia restrições cambiais, a situação fiscal era delicada e a inflação anual chegava a 54%. Tivemos que desenhar um novo mapa do Estado. Por exemplo, criamos um novo Ministério da Saúde. Nesse cenário, prorrogamos o orçamento e no final de dezembro aprovamos a lei de solidariedade social e reativação produtiva, estruturante para o nosso Governo. Começamos a mudar o arcabouço criado pelo macrismo, que concentrava os recursos econômicos em poucas mãos. E avançamos na reforma judiciária porque faz parte daquilo que nosso espaço político havia proposto.
P. Costuma-se dizer que na Argentina os juízes geralmente favorecem o Governo de turno. A oposição insiste agora que a reforma visa acabar com os processos abertos contra a atual vice-presidenta, Cristina Kirchner.
R. Propomos como Governo que a Justiça seja independente. O presidente corrigiu pessoalmente o artigo que vinculava o Executivo aos serviços de inteligência. Isso mostra o caminho que queremos percorrer.
P. Agustín Rossi, ministro da Defesa, disse que não havia espaço para mais medidas progressistas. Que tensões internas o Governo enfrenta?
R. Fizemos uma tarefa de redistribuição e uma ética do cuidado. Em 3 de março, tivemos o primeiro caso de covid-19. Em 11 de março, a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia. E em 19 de março o presidente decretou o isolamento social obrigatório. A partir daí fortalecemos o sistema de saúde.
P. Nenhum outro país do mundo manteve uma quarentena tão longa. E agora, exatamente quando a pandemia parece estar chegando ao seu ponto mais grave, as pessoas estão cansadas.
R. Há uma questão semântica em relação à quarentena. Hoje, a Argentina tem 87% de sua capacidade comercial e produtiva aberta. O que não existe é atendimento pessoal na administração pública, aulas presenciais, e depois existe o que está ligado à gastronomia ou ao esporte.
P. Além da questão semântica, a Argentina é um dos países com mais restrições durante mais tempo.
R. Em todos os lugares existem restrições.
P. Na Europa a vida está se normalizando.
R. Sim, mas perderam muitas vidas. Temos quase o mesmo número de casos, mas na Argentina o sistema de saúde não foi saturado e quem precisou de respirador teve um. Isso, em determinados momentos, não aconteceu na Europa.
P. E qual é o horizonte?
R. No mesmo momento em que se estiver vacinando na Europa, se estará vacinando na Argentina.
P. O senhor não respondeu à pergunta sobre as tensões internas.
R. Formamos um espaço político que era necessário para vencer Macri. Essa frente tem visões diferentes. Não pensamos igual em todas as questões. Agora, segundo a imprensa dominante, isso coloca a institucionalidade em uma situação de tensão. Mas o fato de que os macristas se espionavam passou despercebido. Temos uma frente diversa e devemos nos alimentar dessa diversidade. Alberto constrói uma liderança consensual, não uma liderança de hegemonia.
P. É interessante, porque as lideranças peronistas geralmente não aceitam dissensos.
R. É bastante inédito. O presidente não acabou de ser governador nem de ter uma experiência eleitoral forte.
P. Na verdade, vem de que sua vice-presidenta lhe propôs que fosse presidente. Algo muito pouco habitual.
R. Foi uma construção estratégica necessária para derrotar Macri, com quem quase todos, exceto alguns de seus amigos, perdemos.
P. Falando em perdas, o senhor esperava, como o presidente, mais apoio popular à estatização de um grupo produtor de grãos em suspensão de pagamentos como o Vicentin?
R. Não esperávamos que nos levassem num andor, mas que fosse entendido como uma política de resgate. Não foi entendido assim. Então reapareceu a fissura, e uma operação de resgate foi qualificada de autoritarismo e outras bobagens. Fomos obrigados a recuar porque o juiz que supervisiona o grupo determinou um mecanismo de trabalho inaceitável e manteve no comando aqueles que haviam cometido os desfalques.
P. O senhor não teme que a disputa com os Estados Unidos pela presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento atrapalhe a próxima negociação da dívida com o Fundo Monetário Internacional?
R. Os organismos internacionais agora têm uma visão diferente em relação aos países emergentes em crise. A Comissão Europeia refletiu e percebeu que havia sido pouco solidária com a Grécia. Estamos muito satisfeitos com o que foi feito até agora [com os credores privados], economizamos muito dinheiro para a Argentina: tínhamos uma dívida de cem anos a 7% e isso acabou graças à reestruturação. Quando começamos a governar, as taxas de referência estavam em 70% e 80%, agora uma pequena empresa pode obter crédito a 24% ao ano. Estamos na crise da pandemia em cima de outra crise, a do macrismo.
P. Haverá lei do aborto nesta legislatura?
R. Essa é a nossa intenção. Quando o coronavírus permitir, iniciaremos o debate.
P. Mas o coronavírus já permite reformar a Justiça.
R. Refiro-me a que o aborto corresponde ao Ministério da Saúde, a área mais exaurida pelo combate ao coronavírus. Espero que possamos aprovar a lei do aborto este ano.
P. A relação com o oposicionista Horacio Rodríguez Larreta [chefe do Governo da cidade de Buenos Aires] é tão boa quanto parece?
R. É uma relação de interesses.
P. Qual adversário os preocupa mais nas eleições presidenciais de 2023?
R. Nos preocuparia, por razões democráticas, enfrentar alguns desses líderes mais fascistas que estão surgindo. Isso seria complexo.
P. Alguém tão peculiar como Sergio Berni, o ministro da Segurança da província de Buenos Aires?
R. Existem muitos personagens peculiares, não são patrimônio exclusivo do peronismo.
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