A 100 dias das eleições e atrás de Biden nas pesquisas, Trump inicia empreitada midiática

Sitiado pela crise do coronavírus nos EUA, mandatário tenta aproveitar a presidência como vitrine para reabilitar sua abalada imagem de líder

Trump aparece em público de máscara pela primeira vez, durante uma visita a um hospital, em 11 de julho.Tasos Katopodis (Reuters)
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Em uma campanha toda virtual, sem grandes eventos, com a agenda inteiramente ditada pela resposta à pandemia da covid-19 e suas consequências econômicas, Donald Trump se encontra sem iniciativa e sem inimigos claros contra os quais se projetar como o líder de que os Estados Unidos necessitam. A 15 semanas das eleições, as pesquisas revelam uma situação difícil para o republicano. Seu rival democrata, Joe Biden, está na frente em todos os Estados decisivos e em todos os temas. Trump procura recuperar a iniciativa midiática e para isso parece disposto a utilizar como vitrine a maior arma política ao seu dispor, o poder da Casa Branca, governanda por decreto.

O mandatário parece ter encontrado na contraposição a grandes cidades democratas um tema que pelo menos lhe dê um pouco de impulso para retomar uma campanha paralisada. Dado o interesse nacional despertado pela atuação das forças federais em Portland (Oregon), ele se propõe a fazer o mesmo em Chicago, Nova York, Filadélfia e Detroit.

Nos primeiros 10 minutos de sua Presidência, Trump deixou Washington boquiaberta ao falar da “carnificina americana” em cidades arrasadas pela criminalidade, pela miséria e pelas gangues. Na época, ninguém sabia do que estava falando. Mas a onda de protestos antirracistas depois da morte de George Floyd, que deixou imagens de excessos e violência nas ruas, lhe garantiu uma pequena desculpa para tornar realidade o seu discurso de lei e ordem, embora o problema já tenha se tornado marginal de tão reduzido.

A atuação irregular em Portland das forças de segurança federais (compostas pelos poucos agentes que dependem diretamente de Washington, como a guarda fronteiriça e os oficiais de Justiça) gerou críticas de todas as autoridades locais, além de uma ação nos tribunais. Vista a reação, Trump estabelece as bases para o cenário onde se sente mais à vontade: criar uma crise que não existia, para depois cobrar para solucioná-la. Assim fez com o sistema de asilo na fronteira, com os imigrantes DACA (que chegaram quando eram menores de idade) e com o comércio internacional.

Trump tem problemas para se manter no centro do debate. Com um Congresso prestes a sair de recesso, praticamente não pode contar com a aprovação de nada relevante daqui até as eleições de novembro. Neste sentido, parece disposto a utilizar o poder da Presidência e governar por meio de ordens executivas (medidas provisórias), que lhe permitam manter a iniciativa, mesmo que não cheguem a se concretizar. Já fez isso com as inéditas restrições à concessão de vistos, que deixou milhares de famílias no limbo.

Depois de outra decisão preliminar, durante alguns dias centenas de milhares de estudantes estrangeiros não sabiam se poderiam começar o próximo ano letivo nos EUA, a partir de setembro. Na semana passada, anunciou casualmente em uma entrevista que permitiria que os chamados dreamers tivessem acesso à cidadania. Nesta terça, avisou que não pretende contabilizar os imigrantes irregulares no censo, outra decisão que será respondida nos tribunais (prejudica as grandes cidades que têm que oferecer serviços de atendimento) e lhe permitirá atacar os democratas. Fontes da Casa Branca também lançaram outro balão de ensaio à mídia: que se propõem regular por decreto os preços dos medicamentos, um tabu para o Partido Republicano.

Um resgate contra a crise

Enquanto isso, na política real, o Partido Republicano trata de pactuar uma nova rodada de resgate financeiro para um país onde o desemprego disparou repentinamente e que enfrenta uma gestão sanitária caótica, ameaçando adiar em vários meses a possível reabertura da economia. Espera-se que a nova lei chegue a um trilhão de dólares em auxílios. A Casa Branca busca que o pacote inclua assuntos que não convencem os republicanos, como um corte nas retenções previdenciárias dos salários, ou só repassar ajudas a escolas que retomarem as aulas presenciais. Os benefícios atuais aos desempregados expiram em 31 de julho, e o Congresso sai de recesso em 7 de agosto. Sem acordo, o presidente pode ter de enfrentar em agosto milhões de famílias desesperadas, sem um plano de auxílio para lhes oferecer.

No aspecto sanitário, Trump se negou durante meses a aparecer em público com uma máscara. Foi a parte mais visível de uma gestão sem rumo em que estimulou o descumprimento das normas do confinamento, contrariou todas as opiniões científicas ao defender a reabertura das escolas e transferiu a gestão da pandemia aos Estados para depois criticá-los por geri-la. As pesquisas dizem que a grande maioria dos norte-americanos não confia em sua liderança neste tema, que já é o único tema. Trump agora parece convencido de que não vai bem. Na segunda-feira, finalmente tuitou sua foto de máscara e disse que usá-la é “patriótico”.

Trump deixou de conceder entrevistas coletivas diárias sobre o coronavírus no final de abril, depois de causar estupor ao sugerir em um comparecimento a ideia de injetar desinfetante no organismo e limpar o vírus com luz ultravioleta. Nesta terça-feira, voltou ao átrio da Casa Branca, mas desta vez sem equipe, com a máscara na mão e um tom muito diferente. Recomendou o uso da proteção facial e evitar aglomerações, e admitiu: “As coisas vão piorar antes de melhorar”. É uma nova oportunidade de utilizar a Presidência para se recuperar como líder na pandemia, ao menos entre os seus seguidores. Três Estados que podem mudar os rumos da eleição de novembro (Arizona, Texas e Flórida) estão em uma situação crítica depois que seus governadores republicanos seguiram durante meses as recomendações de Trump.

A praticamente 100 dias das eleições, o mandatário tenta sair do fosso midiático sem um tema de campanha claro. Toda a pólvora de 2016 está esgotada: o muro já foi construído, Hillary Clinton não é candidata, e a esta altura se supunha que os EUA já deveriam ser grandes outra vez. As ações e entrevistas dos últimos dias dão pistas, se não de uma estratégia em si, pelo menos do que ele tenta vender. Talvez pela primeira vez desde que entrou para a política, é a realidade que está ditando a sua agenda, especialmente desde que a pandemia de covid-19 freou a seco a economia mundial.

As grandes cidades, um problema para Trump

Em 2016, Trump não ganhou em nenhuma cidade com mais de um milhão de habitantes. As grandes urbes dos Estados Unidos, que têm competências em educação e segurança pública, votam há anos em democratas ou em republicanos moderados que não têm nada a ver com o atual presidente. As eleições legislativas de 2018 acentuaram essa tendência e, mais preocupante ainda para Trump, estenderam-na aos subúrbios das cidades, onde está o grosso do eleitorado que pode flutuar de um partido para outro. Nada nas pesquisas indica que a tendência tenha mudado.

A pandemia de covid-19 torna impossíveis do ponto de vista médico os grandes comícios em que Donald Trump se cerca de admiradores e consegue emplacar escandalosas declarações nos telejornais durante dias. Ele até tentou, duas vezes. Em Tulsa (Oklahoma) e numa igreja de Phoenix, em 23 de junho. Além de dificuldades para encher grandes auditórios, Trump se mostrava como um temerário que arrisca a vida de seus seguidores. Desde então, o último comício foi para um grupo de jornalistas que convocou para uma suposta coletiva na Casa Branca, um uso do púlpito presidencial nunca antes visto na política norte-americana.

Finalmente, nesta terça-feira, Trump pretendia celebrar seu primeiro evento virtual de arrecadação de fundos. Seu rival democrata, Joe Biden, está em ampla vantagem neste tipo de atividade. Ninguém sabe como se faz campanha exclusivamente virtual, mas Biden pelo menos está há meses ensaiando. Em 24 de junho, por exemplo, teve uma reunião virtual de arrecadação de fundos com presença de Barack Obama em que obteve 7,6 milhões de dólares (39,3 milhões de reais). Em junho, a campanha de Biden arrecadou 63 milhões de dólares, frente aos 55 milhões do atual mandatário (325,7 e 284,4 milhões de reais, respectivamente). Em dinheiro disponível no fim de junho, ambas as campanhas superavam os 100 milhões, com Trump ligeiramente à frente.

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