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Erdogan coroa sua agenda islâmica com conversão da antiga basílica de Santa Sofia

Conselho de Estado da Turquia revoga condição de museu do local. Unesco expressa o temor de que isso possa afetar a conservação de um monumento que é patrimônio da humanidade

Vários turistas no interior de Santa Sofia, na última sexta-feira.
Vários turistas no interior de Santa Sofia, na última sexta-feira.OZAN KOSE (AFP)
Andrés Mourenza

O Conselho de Estado da Turquia revogou na última sexta-feira, 10 de julho, a condição de museu da antiga basílica de Santa Sofia, uma das maiores joias mundiais da arte bizantina, abrindo assim o caminho para sua reconversão em mesquita, como uma parte do movimento islâmico turco e o presidente Recep Tayyip Erdogan pediam. A Unesco manifestou sua preocupação com as tentativas de modificar o status de uso do local e lembrou a Turquia de que o fato de Santa Sofia estar inscrita na lista de Patrimônios da Humanidade —como parte do centro histórico de Istambul— acarreta “responsabilidades e obrigações legais” quanto ao estado de conservação do monumento. Assim que a decisão foi anunciada, Erdogan assinou um decreto transferindo a propriedade de Santa Sofia à Diretoria de Assuntos Religiosos para sua “abertura ao culto”.

O atual edifício de Santa Sofia foi erguido há quase 1.500 anos e funcionou como catedral cristã até a conquista turca de Constantinopla, em 1453, quando foi transformado em mesquita. Na década de 1930, no entanto, o pai da Turquia laica, Mustafá Kemal Atatürk, ordenou restaurá-lo, recuperar os mosaicos que tinham permanecido caiados durante séculos e transformá-lo em museu. O que o Conselho de Estado anulou na sexta-feira foi exatamente a decisão tomada pelo Conselho de Ministros em 1934, que transformou o antigo templo em museu, aceitando o pedido de uma pequena associação islâmica que argumentava que Santa Sofia pertence à fundação religiosa criada para cuidar do edifício no século XVI e, atualmente, à sua instituição herdeira, a diretoria de fundações religiosas do Governo turco, e não ao seu atual gestor, o Ministério da Cultura.

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A medida tomada pelo Conselho de Estado —que, neste caso, atua como tribunal administrativo de última instância— contradiz duas sentenças anteriores que ressaltavam a constitucionalidade da decisão de 1934, um reflexo de que a influência de Erdogan e de seu partido nos últimos 18 anos alterou os equilíbrios ideológicos dentro das próprias instituições judiciais.

Em comunicado, a Unesco afirmou que enviou várias cartas ao Governo turco expressando sua preocupação com os planos para Santa Sofia. “Exigimos que as autoridades turcas iniciem um diálogo antes de tomar uma decisão que possa minar os valores universais do monumento”, disse a instituição, que lembrou que “qualquer modificação” em um lugar incluído na lista de Patrimônios da Humanidade deve ser “notificada previamente à Unesco” e “revisada pelo Comitê de Patrimônio da Humanidade”.

O porta-voz do Executivo turco, Ibrahim Kalin, rejeitou as críticas, alegando que a reconversão em mesquita “não afeta seu status como patrimônio cultural”. Disse ainda que os mosaicos que representam figuras humanas —que teriam de ser cobertos para destinar Santa Sofia ao culto muçulmano— serão “preservados” e que os turistas continuarão tendo acesso ao edifício para visitá-lo fora das horas de oração, “do mesmo modo que em outras mesquitas turcas, ou em igrejas como Notre Dame e Sacré Coeur em Paris”.

Mais de 350 acadêmicos do mundo todo, de diversas disciplinas relacionadas às artes e à história bizantina e turca, assinaram uma carta aberta dirigida às autoridades turcas alertando para o “dano” que as obras de arte em seu interior poderiam sofrer. Eles citam como exemplo várias antigas igrejas bizantinas com categoria de museu que foram transformadas em mesquita nos últimos anos, como Santa Sofia de Trabzon, no noroeste da Turquia —em seu interior, foi construído “um rebuscado conjunto de telas para tapar os afrescos bizantinos”—, e Santa Sofia de Bizye, na região turca de Mármara, cuja transformação provocou “danos substanciais na estrutura histórica do edifício”.

As políticas de conservação do patrimônio cultural do Governo turco foram muito criticadas. Tanto que a acadêmica turca Ebru Erdem Akçay cunhou o termo “restruir” para definir a má qualidade de restaurações realizadas no país, que acabaram danificando irremediavelmente alguns monumentos e sítios arqueológicos de grande valor. “A restauração é uma ciência que exige método e experiência. Na Turquia, aqueles que fazem as restaurações são, na maioria, amiguinhos do Governo, não especialistas. E vemos com horror cada nova restauração. Por isso, temo pelos afrescos e mosaicos de Santa Sofia”, denuncia Erdem Akçay.

De nada serviram os pedidos do Departamento de Estado dos EUA, do Ministério de Relações Exteriores da França e do Governo e da Igreja da Rússia de que fosse mantida a condição de museu de Santa Sofia, tampouco os protestos furiosos da Grécia. Isso acabou reforçando ainda mais as motivações do Executivo islâmico e nacionalista da Turquia. “Vocês dizem que não devemos nos atrever a transformar Santa Sofia em mesquita. Quem governa a Turquia, nós ou vocês?”, disse Erdogan no mês passado, referindo-se às críticas de Atenas.

Na transformação do museu em templo religioso há muito de estratégia política por parte de Erdogan. Há apenas um ano, o presidente turco rejeitou os pedidos de seus partidários que queriam a reconversão de Santa Sofia, alegando que, em frente a ela, está a Mesquita Azul e os fiéis não são capazes de enchê-la nas orações de sexta-feira. No entanto, os problemas econômicos, as divisões em seu partido e o desgaste do Governo fizeram a popularidade de Erdogan cair. Com isso, o líder turco vê a necessidade de resgatar velhas reivindicações do movimento islâmico, embora, depois de 18 anos no poder, já tenha atendido a maioria delas: livre uso de véu em todas as instâncias do Estado, maior presença pública do islã, aumento do número de escolas religiosas, islamização do currículo escolar...

Embora inicialmente tenha sido cogitada para a abertura a data de 15 de julho, quarto aniversário do fracassado levante militar de uma facção do Exército ligada à organização islâmica de Fethullah Gülen (antigo aliado de Erdogan transformado em inimigo), o presidente anunciou, em discurso à nação, que Santa Sofia será reaberta como mesquita em 24 de julho, no que ele definiu como “segunda conquista” (o assunto da conquista de Constantinopla das mãos bizantinas é um fetiche dos islamitas turcos). Erdogan garantiu que as obras de arte serão respeitadas e todos os visitantes poderão admirá-las, mas enfatizou que a reconversão em mesquita é “um direito soberano” do Governo turco e não admitiu que se critique a decisão, do mesmo modo que a Turquia “não intervém na forma como são administrados os lugares sagrados de outros países”. “Pedir que Santa Sofia continuasse como museu é o equivalente, para nós, a pedir o fechamento do Vaticano para missas”, afirmou Erdogan, sem levar em conta que os monumentos que são Patrimônio da Humanidade são avaliados conforme o estado de uso que tinham quando foram aceitos como tal.

Em uma época em que cresce o identitarismo populista, “a história e a majestosidade de Santa Sofia se tornaram irresistíveis para os chauvinismos que competem entre si, transformando-a em um prêmio simbólico para aqueles que estão mais interessados em possui-la do que em rezar nela”, escreveu no ano passado o analista Nicholas Danforth, lembrando que estão de olho na antiga basílica não só direitistas turcos, mas também supremacistas brancos como o autor do massacre em Christchurch (Nova Zelândia), Brenton Tarrant, que, em um manifesto, pediu a derrubada dos minaretes do edifício.

A oposição turca, por sua vez, decidiu não se envolver na questão de Santa Sofia, porque acredita que Erdogan busca desviar o foco de assuntos mais importantes para a sociedade —a situação econômica, o crescente autoritarismo e o mau funcionamento do sistema presidencialista em vigor desde 2018— e atiçar um debate polarizador no qual o líder islâmico se move com desenvoltura e que pode ajudá-lo a atrair o voto conservador e religioso. “Nos anos noventa, essas questões significavam algo para o islamismo. Mas hoje, a conversão de Santa Sofia não é uma ‘vitória do islamismo’ porque o AKP [partido de Erdogan] está no poder há décadas e poderia ter feito isso antes. Trata-se de uma distração dos problemas da Turquia e, na verdade, acredito que as novas gerações de conservadores turcos não estão tão obcecadas com Santa Sofia como a geração de Erdogan”, opina a analista política Ebru Erdem Akçay, acrescentando: “Sim, haverá muita fanfarra, mas amanhã voltaremos ao coronavírus, às preocupações econômicas e às disputas internas”.

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