Crise impulsiona a retomada dos protestos no Chile

Pandemia faz disparar a falta de trabalho e de comida e põe em evidência as deficiências estruturais do país

Manifestante chuta os destroços de uma barricada em chamas durante um protesto no bairro de Cerrillos, em Santiago, na sexta-feira, 22 de maio.Esteban Felix (AP)
Santiago do Chile -

Há uma semana, justo quando se completavam sete meses das revoltas sociais de outubro, os moradores de El Bosque, um município pobre no sul de Santiago, romperam o confinamento e saíram às ruas para protestar. Houve saques e o dia terminou com 22 detidos. Aconteceu novamente na quarta-feira em La Pintana, outro município operário na periferia da capital. “Preferimos morrer de coronavírus do que de fome”, repetiam. O relato é da prefeita Claudia Pizarro. "Na Villa Nacimiento existem casas de 12 metros quadrados. Quando o vírus chega à casa, todos são imediatamente infectados”, diz ela. No Chile, houve até o momento 65.393 casos de Covid e 673 mortes.

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Marcela Ríos, representante assistente no Chile do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), afirma que esses episódios são um alerta. “É necessário ter em mente que ainda subjaz um processo inacabado de explosão social e é preciso atender à dimensão do mal-estar que ainda continua presente de maneira muito importante na sociedade chilena”, ressalta. Na mesma linha, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, CEPAL, admitiu esta semana sua preocupação com a situação no Chile: "O que mais nos preocupa é que possa haver mais raiva social do que havia antes da pandemia, precisamente porque a desigualdade e a pandemia demonstraram as grandes deficiências estruturais que se arrastam em matéria de saúde e proteção social”.

A pobreza diminuiu notavelmente no Chile desde 1990, quando o país voltou à democracia. “Se há 30 anos sete de cada 10 chilenos viviam com um nível de renda insuficiente para superar a linha da pobreza, em 2017 são 8,6%. É uma diminuição radical", diz Ríos. Se a pobreza é medida de um ponto de vista multidimensional, a cifra aumenta para 20,7%. Mas há uma proporção maior de pessoas --entre 30% e 40%-- que, embora tenham tido melhorias significativas em sua qualidade de vida, têm uma vida extremamente insegura e precária", explica a pesquisadora. Entre as razões, ela lista um mercado de trabalho instável, salários baixos, aumento de trabalhadores informais e de autônomos e um nível muito elevado de endividamento individual.

A redução da pobreza no Chile, segundo o PNUD, tem estado associada ao crescimento econômico e à criação de empregos, dois pontos afetados diretamente pela pandemia, masque já vinham prejudicados antes. No ano passado, o país cresceu apenas 1,1%, em grande parte por causa das revoltas sociais do último trimestre. Mas há cerca de 10 anos se observa no Chile uma tendência de queda na produtividade e no desempenho de sua economia.

O desemprego nos primeiros três meses de 2020 se situa em 8,2% e as autoridades dizem que pode alcançar 18%, um indicador que não se via desde a crise dos anos 80. O cenário é agravado pelo fato de o país não ter uma rede de proteção social robusta o suficiente para enfrentar esse tipo de baque.

O economista Dante Contreras disse ao La Tercera que os chilenos estão sentados “em uma bomba-relógio” e que ele acredita que os protestos “vão se espalhar para uma população mais ampla, no sentido de que o país está ficando mais pobre”.

O Governo do conservador Sebastián Piñera baixou dois pacotes econômicos no âmbito da pandemia, num total de 17,10 bilhões de dólares (93,7 bilhões de reais), o equivalente a 6,9% do PIB. Entre outras medidas, implementou bônus, subsídios para pessoas com renda informal, renda emergencial por três meses para 4,5 milhões de cidadãos, créditos para pequenas empresas e, desde sexta-feira, passou a distribuir 2,5 milhões de cestas de alimentos e outros itens essenciais para as famílias vulneráveis ​​e as de classe média necessitadas. O contexto é especialmente complicado para o trabalho do Governo. “Estamos em um momento de quebra da confiança dos cidadãos nas instituições do Estado, o que torna complexa a resposta das autoridades. As pessoas recebem as mensagens com uma parcela muito alta de dúvidas e questionamentos, o que dificulta criar diálogo”, diz Ríos, do PNUD.

ENTRE NARCOTRAFICANTES E PANELAS COMUNITÁRIAS

Em La Pintana, um município ao sul de Santiago onde o metrô não chega, quase não há indústrias ou pequenas empresas, são raros os bancos e não há nenhuma livraria. Em algumas áreas o narcotráfico chegou antes do Estado para ajudar os cidadãos com comida nestas semanas de fome. “Começaram a distribuir mercadorias em seus territórios e até usam as redes sociais para divulgar suas ações. Tentam comprar consciências, silêncios e cumplicidade”, acusa a prefeita, Claudia Pizarro, à frente de um município de 177.000 habitantes no qual 88,9% vivem na pobreza e 14%, amontoados.

Como contraponto, no entanto, ele relata algumas iniciativas de solidariedade de habitantes que se organizam para ajudar os vizinhos. Como a liderada pela professora Isabel Briones, que diariamente cozinha com sua amiga Jaqueline Paredes cerca de 130 porções de comida para as famílias das crianças que ela ensina na localidade de Santo Tomás. “Todos os dias mais pessoas desempregadas batem à nossa porta e já temos 18 famílias na lista de espera”, diz a professora sobre sua panela comunitária, um tipo de ação que há uns 30 anos prolifera nas áreas mais pobres do Chile. “As pessoas estão nervosas e com raiva, porque sentem que, mais uma vez, ficaram desprotegidas. Ninguém imagina o que está acontecendo aqui”, admite a professora.

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