O que pensam as pessoas nos EUA que, mesmo no epicentro da pandemia, protestam contra a quarentena
Protestos contra o confinamento reúnem um universo variado de cidadãos, enquanto mortes por covid-19 passam de 78.000: “Isto não é uma revolta. Somos um punhado de pessoas frustradas”
Gary Olden diz que nunca, nos seus 55 anos de vida, havia exibido um cartaz. Para estrear, escreveu “Reabrir a Virgínia” numa cartolina que segurava, na última quarta-feira ao meio-dia, em frente ao edifício onde fica o escritório do governador em Richmond, capital do Estado. Um cartaz mais discreto que as exuberantes faixas da campanha de Donald Trump que se agitam ao vento e desfilam, junto com uma velha Bíblia, pelas mãos de cinco indivíduos com calças camufladas e camisetas pretas com o logotipo dos Guerreiros Patriotas do Sul, um coletivo vinculado com supremacismo branco. Os cinco manifestantes se uniram ao protesto contra as medidas de restrição de liberdades impostas no Estado da Virgínia para conter a expansão da pandemia do coronavírus. Os Estados Unidos lideram o triste ranking de países com mais mortes pela covid-19. Até este domingo, eram ao menos 78.855 vítimas da doença, mais de um terço dos óbitos confirmados em todo o planeta.
Os protestos realizados nos últimos dias nos Estados Unidos congregam um universo variado de cidadãos, com o denominador comum de uma rigorosa defesa das liberdades individuais. “Isto não é uma revolta. Somos apenas um punhado de pessoas frustradas”, explica Golden. Ele, por exemplo, por mais que discorde do governador democrata Ralph Northlam, nunca exibiria um cartaz como o que, a poucos metros dali, compara o governador com Hitler. “Eu sou judeu, e evidentemente a comparação não procede”, afirma. “Mas, justamente por ser judeu, isso me toca de uma maneira pessoal. Sei o que é a pressão de um Governo aos cidadãos. Minha família passou por isso. Também no Holocausto foram utilizados argumentos médicos para restringir liberdades.”
Nascido e criado na baía de Chesapeake, por onde entraram os colonos da Virgínia em busca de terras livres, aos 13 anos Golden embarcou com os pais e a irmã pequena numa travessia de dois anos, a bordo de um veleiro de 14 metros, que os levou pelas águas do Atlântico, do Caribe e do Mediterrâneo. Regressou, estudou Economia e, em 2014, voltou a navegar durante um ano e meio, desta vez com a mulher e o filho, com quem agora administra uma empresa de seguros para barcos em Fredericksburg (Virgínia). “Sempre me considerei um lutador pela liberdade, mas nunca tive a oportunidade de lutar realmente por ela”, explica. “Esta restrição de liberdades que estamos vivendo não tem precedentes. Para mim, a sociedade não é nada se não honrar os indivíduos. Todo mundo sabe agora ser cuidadoso, se é que já não sabia. A maioria dos que protestam contra as medidas de confinamento se concentra na economia, mas para mim é uma questão maior, de liberdade.”
Para Ashlyn Landrum, de 29 anos, o tema econômico pesa. “As pequenas empresas são essenciais”, diz o texto de seu cartaz, escrito com esmerada caligrafia numa cartolina rosa. Ela possui um pequeno estabelecimento de maquiagem artística em Richmond que foi obrigado a fechar durante a pandemia. “Não vou me recuperar este ano. Não tem jeito. Foi tudo perdido”, lamenta. “Não posso prestar apoio às minhas funcionárias, nem sequer a mim mesma. Minha empresa é pequena demais para solicitar os empréstimos aprovados pelo Governo. No final consegui um seguro-desemprego, mas não é suficiente nem para pagar o aluguel. As pessoas têm muito medo, cancelaram sessões [de maquiagem] até outubro. O medo é mais poderoso que o vírus. Não sou só eu. Richmond é uma cidade de pequenas empresas. Isto afeta todo mundo.”
Landrum veio com sua irmã, Victoria, e sua mãe, Sharon. “Ser livres é nosso direito constitucional. Proteger nossa vida, nossa liberdade e buscar nossa felicidade. Devemos defender nosso direito de reunião, que está sendo agora atacado, e nosso direito à liberdade religiosa, que também está sendo atacado porque fecharam as igrejas. O Governo da Virgínia não deveria ter competência para restringir esses direitos constitucionais”, afirma Victoria, de 27 anos, que trabalha no departamento de recursos humanos de uma empresa de engenharia. Para Sharon, a liberdade de culto que a filha mencionava é o principal motivo pelo qual protesta. “Não podemos rezar livremente. E isso é muito grave para mim”, explica. “Vou à missa todo domingo, e durante a semana me reúno com pessoas da minha igreja. Agora não podemos nos reunir, e a reza é virtual. Isso não é o que Deus quer. Estou horrorizada pela forma como tiraram nossas liberdades num piscar de olhos.”
Há uma dúzia de pessoas protestando, animadas por uma caravana de picapes, com grandes bandeiras norte-americanas e da campanha de Trump, que dão a volta no quarteirão tocando buzina. Integram o grupo Virginianos pelos Direitos Constitucionais 2020, que tem mais de 35.000 membros no Facebook. O grupo foi criado por uma ativista antivacina como Reopen Virginia (Reabrir a Virgínia), mas mudaram seu nome para que o Facebook não o fechasse. A rede social anunciou em 20 de abril que retiraria os anúncios de protestos em determinados Estados porque violavam as diretrizes do governo.
Alguns protestos, nos Estados de Michigan e Washington, congregaram centenas de manifestantes. Mas os mais habituais são pequenos. Amplificados pela extrema direita e aplaudidos pelo presidente Trump (com as atenções voltadas para as eleições de novembro), os protestos contra o confinamento estimularam o espírito libertário. “A resposta à pandemia poderia representar uma caricatura do que os críticos desdenham do progressismo”, escreve John F. Harris, fundador do progressista Politico. “Um Estado cheio de pânico, respondendo às manchetes e à histeria, atropela a liberdade individual e o setor privado, criando um problema cujo remédio é uma expansão ainda maior do Estado”. A intervenção mais assustadora do Estado nas vidas dos cidadãos desde a Segunda Guerra Mundial, advertem alguns analistas, gerará efeitos colaterais na política norte-americana.
Aqui em Richmond, juntou-se à conversa um sujeito que afirma que respirar atrás de uma máscara é nocivo para a saúde. E que propõe enforcar Bill Gates e Anthony Fauci, epidemiologista que representa a ciência na resposta da Casa Branca à pandemia. Quando os Guerreiros Patriotas do Sul reconhecem um ativista antifascista que filma com o celular lá da esquina, vão em sua direção. E o chamam pelo nome. É Goad Gatsby, de Richmond, que rastreia e documenta em vídeo diferentes grupos fascistas. “Mantenham distância”, diz Gatsby. “Tranquilo, só tenho uma coisa para te dizer”, responde um deles. “Tenho uma camiseta dos Hiwaymen para você, uma camiseta verdadeira e original dos Hiwaymen. Da próxima vez que te encontrar, trarei minha mochila e te darei.”
Os Guerreiros Patriotas do Sul, frequentadores de eventos nostálgicos dos Estados Confederados, são um grupo surgido dos Hiwaymen –um dos bandos supremacistas que participaram dos distúrbios de Charlottesville em 2017. Na ocasião, um extremista investiu com seu carro contra uma multidão que manifestava contra os distúrbios, matando uma pessoa e ferindo 19. Ali esteve também, entre os contramanifestantes, Goad Gatsby. “Há pessoas muito boas de ambos os lados”, disse na época Donald Trump. “Quando pessoas assim apoiam a sua causa”, afirma Gatsby, “talvez você deva reconsiderar sua postura.” Não é o que pensa o libertário Gary Golden. “Participar desses protestos me permite encontrar com essas pessoas que lutam pela mesma coisa que eu, e abraçá-los. Formamos uma sociedade”, conclui.