_
_
_
_
_

Anfield, o paraíso dos treinadores de futebol

Em seus 129 anos de história, apenas 20 técnicos passaram pelo banco do Liverpool. No Brasil, 12 dos maiores clubes trocaram de treinador pelo menos 20 vezes apenas na primeira década do século

Una pancarta en Anfield homenajea a entrenadores ilustres del Liverpool: de izquierda a derecha, Shankly, Paisley, Fagan, Dalglish, Benítez y Klopp.
Uma faixa em Anfield homenageia treinadores ilustres do Liverpool: da esquerda para a direita, Shankly, Paisley, Fagan, Dalglish, Benítez e Klopp.

Peculiaridades do destino. No primeiro banco do Liverpool, em 1892, estavam dois treinadores irlandeses, William Edward Barclay, treinador-assistente, e John McKenna, treinador. Desde então, em 129 anos, aquela posição de prestígio só teve mais 19 inquilinos, com a particularidade de Kenny Dalglish o ter feito em dois períodos distintos. O mosaico de nacionalidades, daquela dupla de irlandeses, também é reduzido: 11 ingleses, quatro escoceses, um francês, um espanhol, um irlandês do norte e um alemão.

Uma profissão de alto risco convertida em trabalho mais ou menos seguro e duradouro. Uma cadeira elétrica transformada em um paraíso. E mais se o compararmos com o seu rival imediato na Champions League, o Atlético de Madrid, cuja lista de técnicos desde 1921 (primeiro ano com treinador profissional) chega a 76 e, apenas na época de Jesús Gil como presidente (1987-2003), passa dos 40, alguns com vários estágios de mínima duração. Como um simples dado comparativo, desde 1920, 49 treinadores passaram pelo banco do Real Madrid e, desde 1912, pelo Barcelona, 47. No Brasil, 12 dos maiores clubes trocaram de treinador pelo menos 20 vezes apenas na primeira década do século, de acordo levantamento do jornalista Rodolfo Rodrigues.

Embora na história do Liverpool haja um antes e um depois da chegada do escocês Bill Shankly, que revolucionou a direção da entidade com sua forma peculiar de misturar e agitar sua interpretação da vida e do futebol, a realidade é que antes de sua contratação, em 1º de dezembro de 1959, o clube já havia demonstrado sua lealdade e confiança nos diversos especialistas que passaram pelo cargo. Em seus primeiros 67 anos, teve apenas nove treinadores. Poucos se levarmos em conta que o time viajou entre a Primeira e a Segunda divisões e mal havia conquistado cinco títulos e três acessos à liga principal, e nenhuma Copa, competição por excelência do futebol inglês.

Shankly inventou outro clube. Ele implementou um modelo de vida e diversão. Com suas palavras em forma de frases e com seus atos. “Eu acredito no socialismo, não como uma ideologia política, mas como um modo de vida e humano. O verdadeiro significado surge do esforço coletivo, do trabalho e da ajuda mútua com uma distribuição igualitária de benefícios. Esses são os princípios que me inspiram no dia a dia e no futebol “.

Posse, mobilidade e distração

Futebolisticamente, rasgou o estilo puramente inglês que até a própria Federação recomendava aos clubes. Apostou no jogo de passes até o adversário desabar. Posse, mobilidade e distração. Até 1974, quando renunciou inesperadamente, durante sua gestão, o Liverpool subiu à Primeira Divisão para ganhar três ligas, duas Copas e a Copa da UEFA de 1973. Tão importante quanto seu trabalho nessas três décadas foi seu legado. Seus assistentes na Boot-room, a sala de chuteiras onde se reuniam para criar suas doutrinas, se provaram alunos talentosos. Bob Paisley (1974-83), Joe Fagan (1983-85), Ronnie Moran (1991) e Roy Evans (1994-98) mantiveram sua semente viva em um caderno no qual Shankly anotava seus sentimentos todos os dias.

Bill Shankly.
Bill Shankly.Liverpool FC (Liverpool FC via Getty Images)

Seu braço direito e herdeiro direto no banco pelos próximos nove anos, Paisley, melhorou o recorde do mestre: três Copas da Europa, seis Ligas, uma Copa da UEFA, uma Supercopa Europeia e três Copas da Liga. Joe Fagan venceu a quarta orelhuda, além de uma Liga e uma Copa da Liga, e decidiu se aposentar após a trágica final de Heysel (1985). Deu lugar a uma das lendas do clube, Kenny Dalglish, contratado por Paisley em 1977 e que atuou como jogador-treinador (1985-91) com três Ligas, uma Copa e uma Copa da Liga, numa fase em que o clube, sancionado, não podia competir na Europa.

A única experiência que deu errado para o clube, do ponto de vista técnico, foi a escolha de Graeme Souness (abril 91-janeiro 94), outro jogador com o pedigree do clube, como substituto de Dalglish. Mesmo assim, deram-lhe quase três anos de confiança antes de recorrer a Roy Evans, a última semente do Shanklysmo e que, no antigo elenco da brigada, sempre foi o policial bonzinho e passou quase despercebido.

Além disso, Evans se tornou o guia durante três meses do primeiro técnico não britânico a chegar a Anfield, o francês Gerard Houllier. Ambos dividiram o banco até deixá-lo voar sozinho (1998-2004). Professor escolar com uma longa carreira de treinador na França, Houllier sempre sonhou em sentar-se no banco do Liverpool e finalmente conseguiu. Ele se cercou de pessoas da casa (Thompson, Heighway e Lee) e sofreu o maior susto de sua vida no intervalo de Liverpool x Leeds (2001). Após ser atendido na enfermaria do estádio e internado no hospital, foi diagnosticado com “dissecção aórtica” e submetido a uma cirurgia cardíaca. Operação que durou 11 horas e da qual foi totalmente restaurado a ponto de retornar ao banco.

Klopp, no mais puro estilo Shankly

Seu substituto foi o espanhol Rafa Benítez (2004-10), que além de vencer a quinta Champions League (2005) da história do clube em Istambul contra o Milan, perdeu outra final dois anos depois em Atenas contra o mesmo rival. Com 350 jogos, é o quinto treinador com mais presenças no banco vermelho, atrás de Shankly (783), Tom Watson (742, de 1892 a 1915), Paisley (535) e George Patterson (366 entre 1928 e 1936).

Curiosamente, desde sua saída, o cargo está mais turbulento do que de costume. Seu substituto, Roy Hodgson, durou seis meses e Kenny Dalglish, que fazia parte da equipe de gerenciamento esportivo, foi chamado como bombeiro de emergência. Melhorou em relação ao seu antecessor, terminou aquela temporada, mas o oitavo lugar na seguinte (2011-12) significou sua demissão repentina. O escolhido foi Brendan Rodgers, de 39 anos e com o aval de um bom trabalho no Swansea. Foram três temporadas, nas quais ele estava prestes a ganhar a Premier League na segunda (2013-14), mas um deslize de Gerrard... foi fatal. Seu péssimo início na quarta temporada custou-lhe a posição e a chegada de Jürgen Klopp, em outubro de 2015.

O alemão encontrou o ajuste de seu sapato em Anfield e o Liverpool encontrou outro iluminado no treinador, no mais puro estilo Shankly. Venceu a sexta Copa da Europa, acompanhada da Supercopa e do Mundial de Clubes (2019) e da Premier League (2020) após 20 anos sem ganhar o título da liga. Com 330 partidas em seu currículo, antes do final da temporada ele ultrapassará Rafa Benítez, superando por enquanto seu percentual de vitórias, 60% contra 55% do espanhol.

Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_