Tostão: “Superliga vai contra o espírito do futebol ao se assumir apenas como negócio. Uma vergonha”
Ex-jogador da seleção brasileira, Tostão considera que novo torneio é “um absurdo” e deixa futebol mais elitizado. Na Inglaterra, torcedores protestam e seis clubes oficializam desistência, dinamitando iniciativa
“Um grupinho que quer dominar o futebol contra a vontade da maioria.” É assim que Tostão, ex-jogador da seleção brasileira e campeão do mundo em 1970, define os 12 clubes europeus —Atlético de Madrid, Barcelona, Real Madrid, Arsenal, Chelsea, Liverpool, Manchester City, Manchester United, Tottenham, Juventus, Internazionale e Milan— que começaram a semana tentando romper com as bases do futebol europeu. Causando um furacão de reações por parte de apaixonados pelo esporte mais popular do mundo, foram esses os times que anunciaram a criação de uma nova competição, a Superliga da Europa, prevendo um regulamento com participantes fixos que ignoram o mérito esportivo por um único objetivo: ganhar ainda mais dinheiro.
A ideia da Superliga é substituir a Champions League, atual torneio mais importante disputado pelos clubes europeus, por um campeonato mais lucrativo e com participação dos mais ricos de Inglaterra, Espanha e Itália, independente de classificação em suas ligas nacionais. Hoje, os times precisam ficar entre os primeiros destas ligas para jogarem o torneio europeu. As razões são econômicas: só de entrar para a Superliga, os clubes poderiam ganhar até 7 bilhões de euros, contando direitos de transmissão e patrocínios. Só o Barcelona, por exemplo, chegou a 1 bilhão de euros em dívidas no último ano. “Um Barcelona x Manchester é mais divertido do que um Manchester contra um time mais modesto da Champions”, defendeu Florentino Pérez, presidente do Real Madrid. O maior argumento a favor dos fundadores é planejar um calendário cheio de jogos entre grandes que seriam, na visão dos cartolas, mais atrativos do que o modelo atual e, portanto, mais lucrativos. “O que o mundo inteiro exige? Temos fãs em todo o mundo. Isso é o que gera dinheiro. E esse dinheiro é para todos, é uma pirâmide. Quando digo salvar o futebol, é salvar a todos.”
Pérez foi o escolhido pelos dirigentes europeus para chefiar o projeto da Superliga. Para justificar a ideia, ele também citou uma suposta redução do interesse dos jovens pelo esporte: “40% de quem tem entre 16 e 24 anos já não têm interesse por futebol. Porque existem muitos jogos de baixa qualidade e não lhes interessa, têm outras plataformas para se distraírem”.
Tostão rebate esse argumento dando uma dimensão maior ao papel do futebol. “Esses dirigentes não têm noção de que o esporte é uma questão social, cultural, histórica e apaixonante, não apenas econômica. O futebol já é elitizado, caro para a maioria das pessoas, e vai ficar mais ainda. São esses clubes que já concentram o dinheiro e compram os jogadores mais caros.” Para ele, a ideia de que os jovens não se interessam por futebol é parte do jogo. “Eu acho que 40% é até muito. Com tanta coisa prazerosa na vida, ele quer que todos os jovens gostem de futebol?”, brinca.
Na sua carreira, Tostão jogou pelo Cruzeiro, Vasco e seleção brasileira, com a qual venceu a Copa do Mundo de 1970 vestindo a camisa 9, como parceiro de Pelé no ataque. Desde que se aposentou, se formou em medicina, trabalhou em diversas emissoras como comentarista e hoje, aos 74 anos, escreve colunas semanais sobre futebol, nacional e internacional, para a Folha de S. Paulo. “Eu sei que não vai ser como no meu tempo”, diz ele ao relembrar da época mais romântica e menos lucrativa do jogo, “e temos que aceitar que o futebol também é negócio, que o grande clube não vai fazer caridade. Mas é preciso conciliar melhor os interesses esportivos e econômicos. Precisa existir um incentivo para que o time pequeno possa crescer e para que o futebol seja mais democrático, o que é o contrário do que estão fazendo”. Ao ver nascer um torneio sem acesso e nem rebaixamento, onde o recorte atual dos mais ricos é suficiente para definir vagas cativas, ele conclui que “a Superliga vai contra o espírito do futebol, porque assume que ele é apenas um negócio. Considero um absurdo, uma vergonha”.
Ao lado de Tostão, outras personalidades do futebol mundial se posicionaram publicamente contra a Superliga. Na Inglaterra, o Príncipe William, segundo na sucessão do trono, e o primeiro-ministro Boris Johnson compartilharam preocupações com os rumos do futebol europeu. “Devemos proteger toda a comunidade do futebol e os valores da competição e da justiça em sua essência”, escreveu em seu Twitter o Duque de Cambridge. Após a repercussão negativa, o Manchester City foi o primeiro clube a oficializar o “procedimentos de saída” do grupo fundador da Superliga, às 17h30 (horário de Brasília); antes, seu treinador, Pepe Guardiola, já havia dito que “não é um esporte se o sucesso não está garantido”. O City puxou a fila inglesa de arrependidos, seguido por Manchester United, Arsenal, Tottenham, Liverpool e Chelsea. “Nós erramos e pedimos desculpas”, sintetizou o comunicado do Arsenal. Jürgen Klopp, treinador do Liverpool, também criticou o novo torneio, e foi apoiado por todos os jogadores do elenco principal com contas nas redes sociais, que publicaram a mensagem “nós não gostamos e não queremos que [a Superliga] aconteça”.
No Brasil, Daniel Alves e Miranda, jogadores do São Paulo com passagens por Internazionale, Atlético de Madrid, Barcelona e Juventus, também publicaram em suas redes sociais: “Futebol transforma vidas. Não permitamos que cartolas estraguem essas possibilidades de pequenos seguirem sonhando”, escreveu Alves. UEFA e FIFA, federações colocadas de lado na criação do torneio, ameaçaram punir os 12 fundadores nos atuais torneios europeus, que ainda estão em andamento, e a vetar os atletas que jogarem a Superliga de atuarem por suas seleções.
A reação das torcidas tampouco favoreceu os ricos dirigentes. Estádios espanhóis, ingleses e italianos, onde jogam os envolvidos, foram tomados por faixas de protesto de torcedores. Antes do jogo do Chelsea, em Londres, pelo campeonato inglês, torcedores se uniram para impedir o ônibus de entrar no estádio enquanto gritavam contra a decisão do clube. Poucas horas depois, ao saírem as primeiras notícias de que o Chelsea abandonaria os 12, os torcedores comemoraram como “um gol na Champions League”, conforme relatou um dos presentes. “Tenho esperança que essa resistência não deixará a Superliga acontecer”, comenta Tostão. “E o melhor jeito de resistir é com o mundo do futebol protestando. Os torcedores não querem perder essa ligação porque isso é uma parte da vida deles”.
Com os rumos mais recentes apontando para mais desistências ―até a publicação desta reportagem já eram seis dos 12―e a implosão da cúpula liderada por Florentino Pérez, foi divulgado que dirigentes dos 12 clubes deveriam se reunir ainda nesta terça para decidir sobre o futuro da Superliga. “Mesmo que não dê certo, essa queda de braço vai trazer alguma reforma para o futebol europeu, e eu torço para que isso aconteça. Ser contra a Superliga não quer dizer que o modelo atual está ótimo”, opina Tostão. Para ele, novas mudanças passam por um calendário mais organizado e mais condições a todos os times de oferecerem mais qualidade, e devem trazer impactos no Brasil à “turma grande” que acompanha o futebol europeu. “Não são fanáticos, mas gostam de ver bons jogos”, diz ele. “É inevitável pensar que alguns clubes dominem o futebol, mas o negócio precisa ser rentável para grandes, médios, pequenos e todos os seus torcedores”, finaliza.
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