Ameaças à democracia respingam na economia brasileira e retraem decisões de investimento

Economistas alertam que a crise política, estimulada pelo presidente Bolsonaro sugerindo atropelar a Constituição, turva o futuro para projetos de longo prazo de quem pretende investir no Brasil

Bolsonaro remove a máscara durante evento no Palácio do Planalto, em 5 de agosto.SERGIO LIMA (AFP)

O Brasil parecia levantar a cabeça da areia movediça formada pela pandemia do coronavírus. Com a vacinação finalmente avançando e o início dos debates sobre reformas no Congresso, os agentes econômicos esfregavam as mãos à espera da ansiada retomada depois do pesadelo com a covid-19. Mas aí começou outro estorvo, “tão grave quanto o anterior”, como definiu um especialista. O presidente Jair Bolsonaro passou a insuflar uma crise política que não estava no horizonte, com ameaças democráticas que colocaram o Supremo Tribunal Federal (STF) e as eleições de 2022 no centro do debate nacional. “Passamos a viver sob o imponderável. Quem tem de tomar decisões de investimento vai pensar muito antes de fazê-lo diante dessas turbulências”, alerta José Augusto Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB). Nesta terça, foi um desfile de tanques do Exército em frente ao Palácio do Planalto, em mais uma provocação contra os deputados que votariam a volta do voto impresso, proposta que acabou derrotada na Câmara.

Longe de Brasília, indicadores econômicos mostram uma letargia maior do que o esperado, num momento em que mais de 60% da população já recebeu ao menos uma dose de vacina contra a covid-19 e com as contaminações e mortes em queda. Mas o foco na tensão política do Brasil já rebaixa expectativas. “Sem democracia não há economia”, diz a economista Ana Carla Abrão, head da consultoria Oliver Wyman no país.

Em junho, dados do Banco Central (BC) mostraram uma queda expressiva dos investimentos diretos no Brasil, o capital estrangeiro que entra no país para investir no setor produtivo. Foram 174 milhões de dólares, um recuo de 96,7% em comparação com junho do ano passado (5,2 bilhões de dólares), e abaixo da previsão do próprio BC, que era da ordem de 2,5 bilhões. “Se estivéssemos em uma situação de estabilidade política, em um ambiente de reformas, o Brasil estaria atraindo um volume de investimentos maior. Mas num momento de liquidez global, o país acaba não sendo prioridade”, alerta Abrão.

Não só investimentos externos recuaram. Empresas brasileiras passaram a apostar mais no mercado internacional. “Há um ano, as empresas estavam trazendo capital do exterior para o Brasil e hoje estão investindo lá fora”, explica Livio Ribeiro, pesquisador sênior da área de Economia Aplicada do Instituto Brasileiro de Economia (FGV-IBRE). A repatriação líquida de recursos saiu de 1,5 bilhão de dólares no acumulado em 12 meses até junho de 2020, para investimentos no exterior de 23 bilhões de dólares nos 12 meses encerrados em junho deste ano. Parte da redução ainda é reflexo da pandemia da covid-19, que fez com que os investimentos de empresas transnacionais encolhessem em todo mundo.

Mas a recuperação fica comprometida quando a energia está na guerra política e não em questões mais urgentes, como a alta da inflação. Há 18 semanas o mercado eleva as projeções de alta do Índice de Preços ao Consumidor (IPCA), como mostra a pesquisa Focus, do Banco Central, que reúne as projeções de mais de 100 instituições financeiras. No levantamento desta semana, ela passou de 6,79% para 6,88%. A alta dos preços reduz o poder de consumo, especialmente dos mais vulneráveis, e obriga o BC a elevar os juros, o que encarece o custo do dinheiro, inclusive para investir. No último dia 4, o Comitê de Política Monetária (Copom) elevou pela quarta vez a taxa de juros, para 5,25%, numa tentativa de controlar a alta de preços.

A indústria brasileira já sente o impacto de uma economia em marcha lenta no primeiro semestre deste ano. Segundo o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), novos surtos de covid-19, atraso na vacinação, interrupção dos programas emergenciais e aumento da inflação fizeram com que a produção do setor tivesse uma variação nula (0%) na passagem de maio para junho deste ano. “Os dados de junho mostram que apesar do retorno do auxílio emergencial e a reativação da economia mundial, a indústria brasileira ainda não conseguiu retomar uma trajetória consistente de crescimento”, afirmou o IEDI em nota. Na comparação com o primeiro semestre do ano passado, porém, o setor teve um avanço de 12,9%, “devido a uma base de comparação extremamente deprimida”.

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Para o economista Pérsio Arida, ex-sócio do banco de investimentos BTG, e um dos pais do plano Real, as investidas autoritárias contra o Supremo têm claramente um objetivo de solapar o funcionamento normal das instituições, com consequências diretas para a economia. “A incerteza institucional fomentada pelo presidente é um fator chave que afeta o investimento”, avalia. “Investimento que não é feito ou que é adiado não aparece em nenhuma estatística, mas existe um custo de oportunidade que é um custo não visível”, afirma. “A. Isso é uma circunstância extraordinariamente perigosa para o Brasil”, afirma Arida, que assinou assinou na semana passada um manifesto de representantes do PIB defendendo a confiança nas urnas eletrônicas e na Justiça Eleitoral.

Segundo Arida, há uma consciência cada vez maior de que a democracia brasileira está correndo risco, lembrando que o Brasil está sendo observado pelo mundo todo com “preocupação” pelo descaso do Governo federal com a questão ambiental, os direitos humanos e a cultura, o que pode comprometer investimentos externos. “Se não bastasse essa vertente, digamos, anti-iluminista, há que se acrescentar o propósito autoritário. Declarações do presidente Bolsonaro dizendo que se for o caso joga fora das quatro linhas da Constituição não são admissíveis.”

Paulo Guedes sem crédito

O mercado financeiro sempre esteve ao lado do ministro da Economia, Paulo Guedes, que funcionou, em 2018, como uma espécie de fiador liberal para o “milagre” ―nas palavras do próprio presidente―, ou a eleição de Bolsonaro em 2018. Passados dois anos e meio, antigos apoiadores percebem que as promessas feitas por Guedes não saíram do papel. “Toda a agenda que se dizia liberal, e que foi fundamental para a eleição do presidente Bolsonaro, não se verificou”, diz Abrão. “Se tirarmos o novo marco do saneamento e a independência do Banco Central, a agenda não andou. Tivemos uma reforma da previdência que não foi mérito de Bolsonaro”, diz a economista, lembrando do papel do Congresso nessa votação. No mais, diz ela, as reformas não aconteceram, assim como as privatizações e o prometido ganho de eficiência do Estado. “Não podemos ignorar que a economia é movida por segurança jurídica e institucional”, diz ela.

Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central e sócio da consultoria Tendências, lembra que o evento recente que mais impactou os mercados foi a proposta de parcelar o pagamento dos precatórios ―dívidas da União decorrentes de decisões judiciais que não são mais passíveis de recursos―, para incrementar recursos para o Bolsa Família. A medida não chegou a ser apresentada, mas só a discussão sobre postergar as despesas obrigatórias trouxe de volta o fantasma das famosas pedaladas, manobra na qual o Governo atrasava o repasse de dinheiro devido aos bancos para cumprir metas fiscais, que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff. “Isso gerou uma preocupação na medida em que aumenta a percepção de um risco fiscal, especialmente perto de um ano eleitoral, onde há tentativa de se criar certos mecanismos extrateto [teto é o limite de gastos orçamentário acordado em 2016]”, explica.

Loyola afirma que o Governo Bolsonaro “dá um passo para frente e dois para trás” em sua gestão da economia. Ele aponta as privatizações dos Correios e da Eletrobras ―“ainda que o projeto tenha muitos defeitos”, diz―, como ações positivas, alinhadas com as demandas do mercado financeiro. Mas tudo isso se perde na disputa política. “O Brasil é o único país em que as pessoas acham que avançar é retroceder ao passado”, afirma o ex-presidente do BC em relação aos apoiadores do presidente que foram às ruas defender o voto impresso.

A economista Elena Landau, ex-assessora da presidência do BNDES, ainda vê o “mercado bem passivo em relação aos ataques de Bolsonaro à democracia”: “Eu me pergunto como alguém ainda acredita no Bolsonaro”. Landau diz que nunca torceu contra a política econômica do Governo. “Adoraria que o Guedes tivesse feito uma grande reforma tributária, que abertura comercial tivesse aparecido, tivesse feito grandes privatizações. Mas não fez. Ele vai entregar a economia pior do que recebeu, que era inflação dentro da meta, a juros baixos”, diz.

A economista, porém, avalia que os recentes atos antidemocráticos de Bolsonaro, como o ataque ao sistema eleitoral, ainda não se refletem na economia. Os parcos resultados dos indicadores atuais, segundo ela, são reflexo da política de Guedes, “que perdeu o controle da pauta econômica”. “O crescimento do PIB que temos não é estrutural. Tivemos o boom de commodities e o dinheiro do auxílio emergencial influenciando nos resultados. Mas o setor de serviços ainda não reagiu”, diz.

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