A economista que ‘reprograma’ a vida das mulheres no Brasil
Em um dos países mais transfóbicos e racistas do mundo, Mariel Reyes Milk lidera uma iniciativa para formar em tecnologia e programação a população feminina transgênera e negra
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Quando a economista Mariel Reyes Milk (Lima, 1980) se demitiu de seu emprego no Banco Mundial, após 10 anos, não estava certa do que faria. Mas sabia que queria reprogramar o mundo às mulheres. “Eu me incomodava pelo fato de que nós não estávamos criando as soluções tecnológicas para a quantidade de problemas existentes”, lembra ela, que na época já havia se mudado ao Brasil. De modo que sem falar português e sem ser uma especialista em tecnologia, fundou a iniciativa {reprograma} para ensinar as mulheres mais vulneráveis do país a ser programadoras.
“Muita gente diz que a tecnologia é o futuro, mas é o presente”, diz de São Paulo em uma videochamada. É um presente ainda majoritariamente masculino e branco, que já a incomoda há vários anos. Porque esta desigualdade não é exclusiva do mundo tecnológico. Por exemplo, quando aos 15 anos estudava em um colégio particular em Lima, que antes havia sido unicamente de homens, só “13 mulheres” estudavam lá. “Aí foi plantada a semente de que nós ainda precisamos mostrar que podemos fazer as coisas”.
O mesmo aconteceu tempos depois quando trabalhava como economista em áreas com predominância masculina, como a gestão florestal. Também ocorria quando se reunia com as empresas de tecnologia no Brasil. “Tinha ligações constantes com executivos, a maioria homens, para explicar a eles por que nos apoiar e por que contratar diversidade”, comenta Reyes Milk, que inspirada por seus avós missionários, fez dessa inconformidade uma razão para tentar fechar algumas das brechas às mulheres. “Sempre digo que está no meu sangue, tanto o lado social como o empreendedor”, diz com um marcado portunhol.
Após meses de pesquisa, em 2016 Reyes Milk lançou o {reprograma} com duas sócias: Fernanda Faria e Carla de Bona. “Foram poucas mãos que com poucos recursos fizeram muito”, ressalta. Apesar de no início só elas três formarem a equipe junto com alguns voluntários, a mudança feita foi profunda: “Se antes as empresas questionavam por que contratar diversidade, agora nos perguntam: como faço?”.
Essa diversidade é o que diferencia esse bootcamp, ou treinamento intensivo, de outros que existem na América Latina. Nas palavras de Reyes Milk, seu foco são as mulheres “a quem ninguém chega, para as quais não há oportunidades”, que no Brasil são as negras e as transgêneras.
Há 11 anos, quando a peruana chegou ao Brasil, este já era um dos países mais transfóbicos do mundo. A expectativa de vida no país para mulheres transgêneras é de apenas 35 anos. Somente no ano passado, 175 foram assassinadas, das quais 78% eram afrodescendentes e moradoras de regiões periféricas, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra). Além disso, 90% das mulheres trans se prostituem, pois a cruel exclusão que as agride desde meninas faz com que somente 0,02% delas estudem em universidades e 4% tenham um emprego formal.
“Foi um desafio chegar a elas”, diz Reyes Milk, que com sua equipe foi às comunidades existentes e às casas onde muitas das mulheres trans vivem para oferecer a elas uma vaga no programa. Também adaptou seu processo de seleção. “Costumamos pedir que as alunas tenham completado o ensino médio, mas muitas delas não conseguiram pela violência em casa”, indica.
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Clique aquiCom tudo isso, em um dos cursos deste ano, 17% das alunas são transgênero e 70% negras. “É mais do que tivemos em toda nossa história”, afirma Reyes Milk em relação às mulheres trans. “Muitas delas trazem problemas que enfrentam em seu dia a dia que talvez nós como privilegiados sequer pensamos”, admite. Por isso, com o programa quer dar a elas a voz, o conhecimento e a oportunidade “de entrar em um mercado no qual não é fácil entrar”. E o faz gratuitamente. “Eu não quero cobrá-las”, enfatiza. “Quero aproveitar a oportunidade de que há uma demanda imensa de profissionais e ao mesmo tempo tantas mulheres que são apaixonadas pela tecnologia, mas que nunca tiveram a oportunidade por questões da sociedade, família e recursos econômicos”.
Nestes quatro anos de {reprograma}, a economista viu graduarem-se mais de 700 mulheres, 95% de todas as estudantes que passaram pelo programa. “Nós impulsionamos redes de apoio tanto dentro do curso como no setor de tecnologia depois, porque elas continuam se falando e se cria uma sororidade”, conta. Algumas delas até mesmo voltam para lecionar no programa, enquanto trabalham como programadoras em uma empresa de tecnologia.
Mas a mudança que o {reprograma} está gestando é mais do que profissional. Para sua fundadora, a iniciativa “realmente reprograma a vida das mulheres”. Muitas das estudantes chegam com a síndrome da impostora, achando que não estão à altura, e “saem transformadas”. Também há mães que, como Reyes Milk, programam com seus filhos ao lado. “É cada vez mais comum ver ex-alunas com o computador e seu bebê”, diz emocionada. “Isso é um resumo perfeito do que conquistamos dando a elas essas ferramentas e conhecimento. Mas são elas que tiveram a capacidade de pegar tudo isso para mudar sua vida, a de suas famílias e comunidades”.
A partir deste ano, a iniciativa tem um financiamento de 300.000 dólares (1,7 milhão de reais) do BID Lab, o laboratório de inovação do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Com este impulso Reyes Milk pretende continuar formando programadoras e professoras em tecnologia” que farão uma mudança dramática no ecossistema” e também poder levar o projeto a outros países latino-americanos. Esta é uma meta a curto prazo, porque seu sonho futuro é outro: que o {reprograma} não precise existir. “Que o mercado seja 50-50, que exista diversidade de mulheres LGBTIQ+, negras e indígenas”, conclui. “Que o setor seja um reflexo da sociedade e possam ser criadas coisas que atendam às necessidades de todos”.
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