Abdulrazak Gurnah: “Não ganhamos prêmios por sermos africanos, mas pelo que escrevemos”

Vencedor do Nobel deste ano reflete sobre o conceito de literatura pós-colonial e as limitações do reconhecimento. “É a escrita que está sendo premiada, não a percepção dos leitores”

Abdulrazak Gurnah em sua casa em Canterbury, na Inglaterra, em outubro.Frank Augstein (AP)

Pouco mais de um mês depois de receber a ligação da Academia Sueca para informá-lo de que havia ganhado o Prêmio Nobel de Literatura de 2021, o escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah (Zanzibar, 1948) se conectava na segunda-feira passada por videochamada, de Barbados. Embora mantenha a sua residência habitual no Reino Unido, no condado de Kent, em cuja universidade fez o doutorado e lecionou durante quase três décadas, viaja com frequência para as Antilhas, pois sua mulher tem família ali.

Conciso e cortês, veste uma camisa de linho branco e está em um cômodo de madeira pintado da mesma cor e que nos oferece poucas referências do lugar. Já redigiu o discurso de aceitação do Nobel, que não irá buscar em Estocolmo, mas na Embaixada da Suécia em Londres.

A organização optou por manter a cautela na pandemia e celebrar os prêmios de acordo com o país de residência dos premiados. Gurnah trata da questão dizendo que suas palavras na cerimônia “não trarão grandes surpresas” e sem querer antecipar as ideias ou tópicos que abordará nessa verdadeira aula magna.

Autor de uma dezena de romances, Gurnah não aparecia nas apostas do Nobel. Segundo ele, recebeu o telefonema do comitê sueco com genuína surpresa, mas a verdade é que seu nome já havia constado da lista de indicados a dois dos mais conceituados prêmios da língua inglesa: o Booker Prize e o Whitebread. Foi em 1994, graças ao seu quarto livro de ficção, ParadiseParaíso na edição que será reeditada em dezembro na Espanha, com nova tradução. “Não há edição brasileira dessa obra. “Foi o romance que me permitiu chegar a muitos e novos leitores. O processo de indicação ao Booker naquele momento não era tão longo como agora, era algo mais vivo e emocionante, ou pelo menos assim foi para mim”, lembra. Fazia muito tempo que ele havia deixado a Tanzânia, em 1968, quando o Sultanato de Zanzibar foi violentamente derrubado, e se graduou no Reino Unido. Depois de passar alguns anos dando aulas na Nigéria, voltou para a Universidade de Kent, começou a escrever romances e nunca mais foi embora.

Tinha começado aquele romance muito tempo antes e a primeira coisa que escrevera era precisamente a cena com a qual a história se encerra. “Foi assim que Paradise começou, mas depois fui escrevendo outras coisas, trabalhando em outros assuntos. Aquilo ficou guardado no meu caderno por seis ou sete anos sem que eu fizesse nada com isso, embora claramente o tivesse na cabeça. Queria escrever sobre a Primeira Guerra Mundial no leste da África. O tempo passava e comecei a me perguntar como se chegou àquele momento em que os alemães começaram a recrutar soldados ali”, recorda.

Em uma viagem bem longa e sozinho por vários países da região, ficou impregnado da paisagem e de outras histórias que ouviu nesses lugares. E assim foi se aproximando de “uma outra dimensão” sobre o lugar e sua história, sobre essa costa da Tanzânia e do arquipélago de Zanzibar. Tudo isso culminou de forma tangencial em um dos temas centrais da obra de Gurnah como um todo: o colonialismo. “O primeiro encontro com os colonos europeus é mais um dos temas sobre o qual comecei a refletir. Eu vi meu pai muito mais velho pouco antes de ele morrer e pensei que ele devia ser um menino quando aquilo aconteceu. Isso me levou a tentar imaginar como eram as coisas antes de acontecer aquele encontro, antes de esses estranhos chegarem e dizerem que eles estavam no comando de tudo”, explica, e acrescenta que sua escrita muitas vezes toma forma ao longo de muito tempo, e seguindo diferentes meandros, de modo que o princípio pode acabar sendo o final.

Essa extensa geografia de ideias acaba permeando o enredo e o terreno que Paradise percorre. No romance, a criança protagonista passa às mãos de um rico comerciante por causa das dívidas de seu pai e, depois de passar alguns anos trabalhando em dois empórios, se junta a uma grande expedição comercial, uma caravana mítica. Há referências a uma montanha nevada, um lago que conseguem atravessar em um único dia e algumas cachoeiras majestosas, mas não há nomes, nem mapas. “Escrevi presumindo que quem lesse conheceria o terreno e reconheceria o Kilimanjaro e o lago Tanganica. E de fato é possível ver o caminho que eles seguem, mas, ao não nomeá-lo, abre-se de alguma forma a possibilidade de que seja mais mítico, e de que o que é narrado possa acontecer em outro lugar. O leitor pode imaginar sem ter que se vincular a um lugar específico”, argumenta.

Sem dúvida, um dos mapas mais variados dos descritos por Gurnah em seu romance é o humano, com sua rica descrição da mistura de personagens de diferentes religiões e raças, dos árabes aos sikhs, que habitaram aquela parte do mundo no início do século XX e competiam entre si antes da chegada das potências europeias. “Havia distintas sociedades e culturas que estavam em contato sem que houvesse uma autoridade central ou algo semelhante. Eram grupos que não acho correto chamar de nações. Entre si viviam em uma negociação permanente, tanto cultural como linguística. Não havia uma cultura dominante”, afirma. “Aquelas pessoas eram mercadores que comercializavam entre si e se declaravam guerra ou o que fosse.” A descrição do caldeirão de culturas que povoam o romance de Gurnah escapa a qualquer simplificação ou idealização do passado pré-colonial. A violência e a crueldade despontam sem reparos e sem a necessidade de que o colonialismo europeu chegue. “As simplificações do passado e do presente têm que ser contestadas”, sustenta.

“A leitura e a escrita andam juntas, sempre pensei nisso. É um ingrediente tão fundamental para o escritor como as experiências de vida”

Essas pessoas falavam línguas diferentes, embora o protagonista, Yusuf, se faça entender em suaíli, um idioma cuja gênese, explica Gurnah, é muito semelhante à do crioulo e que, além do mais, é sua língua materna, embora sempre tenha escrito seus livros em inglês. “Em parte porque é um idioma no qual sempre fui bom, mesmo na escola em comparação com os colegas. Mas talvez o mais determinante é que só pensei em escrever quando cheguei à Inglaterra e, mesmo assim, levei algum tempo até aceitar que era isso que eu queria fazer. E durante todo esse período eu já estava morando no Reino Unido e estudando literatura e lendo em inglês. Tinha muita coisa ruim, mas uma das melhores é o quanto havia para ler, quantos livros eu tinha à minha disposição nas bibliotecas”, explica.

“A leitura e a escrita andam juntas, sempre pensei nisso. É um ingrediente tão fundamental para o escritor como as experiências de vida, é o que te dá contexto e relevo ao seu trabalho, o que te permite compreender a área em que você se desenvolve. Então, quando comecei a questionar em que idioma fazer isso, não passou outra coisa pela minha cabeça, fiz no mesmo idioma em que estava lendo.” A sua perspectiva sobre isso mudou com o tempo? “Assim como acontece com os atletas, às vezes você não consegue escolher a prova em que vai competir. Você pode gostar muito de salto em altura, mas pode não ser tão bom como nas maratonas. Algo assim acontece com a minha escrita, não foi de todo uma escolha. Faria diferente hoje? Não, porque gosto de escrever em inglês e sinto prazer ao fazer isso.”

A literatura pós-colonial é o campo de pesquisas dele desde a década de 1980, e em sua obra de ficção desempenha um papel central, conforme destacou o júri do Nobel. Em Paradise, um personagem fala sobre como a história será escrita e como os colonizadores farão com que leiam aquela versão como se fosse “a palavra sagrada”. Gurnah acha que literatura pós-colonial é um termo apropriado? “A primeira coisa é que isso nem existia quando eu estava cursando minha pós-graduação”, diz. O estudo das diferentes literaturas se dava então com base em um prisma geográfico e cada área contava com especialistas que defendiam seu terreno.

“Quem é você para falar sobre literatura caribenha ou literatura africana? Essa era a atitude até que um grupo de teóricos do pós-colonialismo, como Edward Said, Gayatri Spivak e Homi K. Bhabha, começou a aplicar certos modelos para identificar algumas experiências comuns e lançou as primeiras flechas. Foi isso que permitiu agrupar escritores de diferentes lugares e afastar-se das autoridades regionais. Só em meados da década de 1990 começamos a dar uma disciplina de Literatura Pós-colonial e isso aconteceu porque era algo útil, não a finalidade de tudo”, relata.

“Hoje a discussão sobre o termo literatura pós-colonial não me preocupa. Eu a vejo como uma expressão provisória que nos permite reunir diferentes textos para estudo. É útil no plano acadêmico, mas não creio que seja como fórmula para descrever a literatura fora desse campo”, pondera, e prossegue dizendo que se alguém o descrever como um escritor pós-colonial, ele concordaria, embora isso diga pouco sobre a escrita em si. “A escola pós-colonial não deve ser jogada fora porque vale para algumas coisas, principalmente para ensinar e escrever crítica. Mas acho que essa utilidade, não servirá ao autor. É para quem estuda a sua obra, não para o criador. Quando me perguntam se sou britânico, africano ou zanzibar, bem, não sei, sou tudo isso, mas, serve para alguma coisa? Pode dar aos leitores um pouco de contexto, suponho, mas então você tem que ler os livros para chegar ao escritor.”

Sobre o sucesso da leitura pós-colonial no meio acadêmico, Gurnah tem uma visão positiva por sua enorme diversidade e abrangência. “Os especialistas do século XVIII, os medievalistas ou os estudiosos da dança moderna estão interessados nisso. As mentes se abriram com essa ideia do colonialismo e suas consequências, algo que se relaciona com qualquer aspecto da cultura, tanto os lugares europeus como dos lugares colonizados. Essa consciência surgiu e aumentou a conexão com o mundo não europeu. Os estudos pós-coloniais questionam coisas tão óbvias como os próprios escritos sobre o colonialismo. E é uma disciplina que vai em várias direções, que estuda relações que remontam a muitos séculos e que nos permite compreendê-las melhor.”

A coincidência este ano de vários escritores de origem africana na lista de importantes premiações literárias (o Nobel, o Booker, o Goncourt, o Camões e o Neustadt) levou alguns a se referirem a um fenômeno. Qual é a sua posição sobre isso? “Eles ganharam não porque são de origem africana, mas porque a sua escrita mereceu. Que esses prêmios tenham sido dados a esses escritores é bom, no ano passado não foi assim. Não é que mundialmente se tenha decidido que os africanos deveriam ser premiados, é a escrita que foi premiada”, afirma.

Essa literatura sempre esteve aí e até agora não lhe deram atenção? Esta é uma idade de ouro? “Há muitos escritores aos quais não se presta atenção e há muitos jovens, e alguns não tão jovens, que estão se destacando. E haverá muitos mais. Pode ser que haja um certo tipo de corrente, mas não estou seguro de que a atribuição dos prêmios signifique que haja uma consciência por parte dos leitores... Insisto, é a escrita que está sendo premiada, não a percepção dos leitores, embora isso tenha algo a ver. O que li sobre este assunto são manchetes sugerindo que este é o ano da África, e entendo que os jornalistas precisam tentar agrupar e resumir, mas o que isso faz é diminuir a conquista de cada um dos escritores premiados. E a história se apresenta como um fenômeno cultural mais do que literário.”

Gurnah conta que está trabalhando em um novo livro e se despede amável e apressado.

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