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Os 10 melhores filmes de faroeste do século XXI

A estreia de ‘Ataque dos cães’ confirma a sobrevivência do gênero norte-americano, que há duas décadas oferece filmes de altíssima qualidade

Benedict Cumberbatch, em ‘Ataque dos cães’. No vídeo, trailer do filme
Javier Ocaña

Ataque dos cães, filme de Jane Campion baseado em um romance de Thomas Savage –que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira e a partir de 1º de dezembro na plataforma Netflix–, confirma a nobre sobrevivência do faroeste, gênero norte-americano por excelência, sempre associado à sua história, à sua conquista e às suas essências econômicas, sociais e morais. A boa saúde do gênero, apesar dos pessimistas que o vêm matando desde idos tempos, se assenta desde o final dos anos 60 numa atualização contínua em que se unem a transgressão e o classicismo, as novas análises multiculturais, sexuais e de gênero, bem como a subsistência de certos ícones e mitos. Há umas duas décadas poucos títulos são produzidos por ano; um punhado, se tanto. Em compensação, os ousados criadores parecem saber o que fazem: a qualidade costuma ser muito alta, como se não fosse mais possível fazer faroestes ruins. Alguns se passam no período por excelência da conquista do Oeste, entre 1865 e 1890, logo após a Guerra Civil Americana, e muitos outros em épocas posteriores (ou anteriores), transcendendo seu arco de tempo clássico para chegar até mesmo à nossa contemporaneidade.

A seguir, uma análise conjunta, por meio dos títulos fundamentais das produções até agora no século XXI. Filmes de estilos, às vezes, radicalmente opostos, mas que compartilham ressonâncias semelhantes: casa, família, conquista, violência, legado, território, fronteira. O herói não é mais o mesmo, porque não pode ser, mas o faroeste continua cavalgando.

Pacto de Justiça (Kevin Costner, 2003)

Simplesmente, o melhor tiroteio desses 21 anos de faroestes. Uma longa sequência de quase meia hora, situada no clímax final da história, em que a ação domina, embora não sozinha. Com poderio de narrador, Costner provê essas cenas de breves conversas, subtextos arredondados, caracterização de personagens e uma força e um realismo formidáveis. Certamente o mais clássico dos escolhidos para este banquete do gênero, Pacto de Justiça flui de modo natural com seus fade outs, seus encadeamentos de montagem, sua música melancólica e uma bela história de amor. “Aprenda um ofício e você sempre terá um teto que te abrigue e a comida na mesa”, aconselha o personagem do mestre Robert Duvall, a nobreza nos olhos. “Para um homem, há coisas piores do que morrer”, clama o de Costner, abatido por seus tempos sombrios, o crepúsculo à espreita. Como em outros grandes títulos do faroeste, há um povo que se limita a olhar ante o desafio contra a injustiça. Mas, instigados pelas mulheres, até eles se atrevem contra o crime e a corrupção. A justiça do revólver.

O segredo de Brokeback Mountain (Ang Lee, 2005)

No cinema do novo século, o subterfúgio não é mais necessário, como quando em Rio Vermelho (Howard Hawks, 1948) Montgomery Clift e John Ireland comparavam a beleza de suas pistolas enquanto se olhavam nos olhos com êxtase, e acabavam montando um espetáculo de disparos sincopados metaforicamente orgásmico. No filme de Lee, baseado em um romance de Annie Proulx, Jack Twist e Ennisdel Mar, nomes sonoros, caubóis de rodeio e pastoreio de gado, vivem uma bela e proibida história de amor de quase 20 anos, nas décadas dos anos 60 e 70 do século XX. Uma vida feliz impossível juntos, narrada com enorme sensibilidade à base dede elipses maravilhosas que fazem a história irromper com extrema tranquilidade, em contraste com seu fogo interior. Mesmo assim, o vulgar Crash – No limite lhe arrebatou o Oscar de melhor filme quase na linha de chegada, depois que a academia deraminutos antes a Lee o prêmio de melhor diretor. Mau gosto ou homofobia? Talvez ambas as coisas.

Disponível no Star Plus.

O assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford (Andrew Dominik, 2007)

Sobre a figura de Jesse James, o bandido mais lendário do Velho Oeste, foram feitos nada menos que 38 filmes. Alguns, como o magistral Jesse James, de Henry King, enfocam as justas razões sociais que levaram a seus primeiros crimes. O de Dominik, no entanto, se destaca, além da estilização, por um último trecho em que começa a se forjar o mito, parte da cultura popular desde muito cedo. Depois de matar Jesse pelas costas enquanto endireitava um quadro, Bob Ford, interpretado por um evasivoCassey Affleck, voz estridente, olhar oblíquo e turvo, vaidade de sujeito servil, se dedicou a (re) interpretar o crime durante anos em espetáculos teatrais ao lado de seu irmão, e cúmplice, Charley. Até assassiná-lo mais 800 vezes no palco. Não é ficção, é história dos Estados Unidos. E Dominik dá a Ford o conceito de escolhido, como um Judas predestinado a acabar com um Jesus Cristo muito particular.

Disponível no Globoplay.

Onde os fracos não têm vez (Ethan y Joel Coen, 2007)

Certos especialistas o definem como neofaroeste. Outros, como pós-faroeste. Na verdade, embora se passe nos anos 80 e tenha um enredo de thriller, o tratamento dos irmãos Coen é de puro clássico desde os primeiros planos, a paisagem norte-americana, a influência do território no ser humano, o mito fundacional, a violência como um modo de conquista. A droga é o novo ouro. Há carros e caminhonetes, sim, mas também, trilhas, cavalos, a fronteira, o deserto, um lugar perto do”tiroteio no OK Corral” e uma história sem esperança contada por um xerife que defende o valor da lei. Um filme muito fiel ao romance altamente visual em que se baseia (No country for oldmen), do mestreCormac McCarthy, que tem diálogos como balas que se incrustam nas vísceras: “Quanto é o máximo que você perdeu no cara ou coroa?”. E Javier Bardem, descomunal, compõe um vilão para a história. Ethan e Joel completam o século XXI do faroeste com Bravura indômita (2010) e A balada de BusterScruggs (2018).

Disponível no Prime Video (Amazon) e no Telecineplay.

Dívida de honra (Tommy Lee Jones, 2014)

O faroeste renovou a epopeia da viagem da tradição grega: seres condenados a vagar, nem sempre em uma direção fixa ou com um determinado destino. É a odisseia do descobrimento, associada à busca pelo lar. E embora os diretores da Nova Hollywood dos anos 70lhe tenham dado um giro com seu intrínseco cinema do crepúsculo, Lee Jones o retorce ainda mais com uma dimensão hiper-realista ao ponto do insuportável. Classicismo e modernidade andam juntos em uma obra protagonizada por uma mulher fora de sua época, independente em tempos impossíveis, nos quais não há mais possibilidade de conquista porque nada pode ser conquistado. O duelo honroso não cabe em um mundo em que só valem a punhalada certeira, o ataque pelas costas e os tiros nos pés. Nove anos antes, Lee Jones havia cativado com o formidável Três enterros, uma história de fronteira escrita por Guillermo Arriaga, então roteirista dos filmes de Alejandro González Iñárritu, com sua habitual desestruturação narrativa.

Disponível no Prime Video (Amazon).

Rastro de maldade (S. Craig Zahler, 2015)

O debut do inclassificável e interessantíssimo Zahler, que mais tarde também revolucionaria o thriller carcerário e o policial de assalto com os não menos selvagens Confronto no Pavilhão 99 (2017) e Justiça brutal (2018), é com uma viagem ao Velho Oeste em um filme que começa como uma comédia de humor negro dos irmãos Coen e termina com um festim sangrento digno de uma película de terror. Com diálogos de majestosa sofisticação e sem abandonar algumas das essências do faroeste: a epopeia da viagem como fato físico, a culpa não assumida, o anti-heroísmo, o caminho da vingança e a tentativa de uma ação de homens para recuperar uma mulher sequestrada, como uma variante feroz da menina de Rastros de ódio. Que os índios escalpelavam pessoas nós já sabíamos de inúmeros filmes, mas tinham nos contado sem mostrar de todo. Pelo menos com essa bestial explicitação.

Os oito odiados (Quentin Tarantino, 2015)

Paisagem nevada, leve movimento da câmera partindo da estátua congelada de um Cristo no meio do nada. Diligência no fundo. O ritmo se aproxima da música, envolvente, lúgubre, quase de terror. Com os violoncelos, os contrabaixos e a percussão estrondosos. Também com os oboés, os fagotes e a tuba. São só os títulos do crédito e o arrebatamento já é irremediável: a força visual de Tarantino e a sonora de Ennio Morricone. Os oito odiados, um filme com a câmera ambientada em apenas dois cenários —o interior de uma diligência e uma grande cabana—, com longuíssimos diálogos carregados de humor negro selvagem e uma estrutura de jogo de tabuleiro clue: quem esconde uma identidade que não é a sua. Um quebra-cabeças de pequenas pistas, com múltiplas referências cinematográficas —Corbucci, Carpenter e, entre eles, o magnífico filme espanhol Condenados a Viver (Joaquín Romero Marchent, 1972)—, protagonizado pelo pior da espécie humana no faroeste. Oito seres abomináveis, prontos para arrancar as tripas de qualquer um.

Disponível no HBO Max.

A qualquer custo (David Mackenzie, 2016)

Taylor Sheridan é outro dos nomes fundamentais para a sobrevivência do faroeste. Roteirista de A qualquer custo, diretor dos thrillers com alma de faroestes como Terra selvagem (2017) e Aqueles que me desejam a morte (2021), e criador da série de televisão Yellowstone (2018), Sheridan aborda no filme, dirigido com raiva exultante por Mackenzie, de temas do momento atual que se fundem no que foi a épica do gênero. Ou também o contrário, sobre questões de outrora que por desgraça ainda estão plenamente em vigor: o combate entre o proscrito e a ordem econômica estabelecida; os despejos, as injustiças, os precários trabalhos de sol a sol, o poder dos bancos e o legado da violência. As recompensas econômicas e morais estão aí, à mão, mas para obtê-las você talvez tenha que morrer primeiro. A qualquer custo, as vinhas da ira do desolador e inóspito presente.

Disponível na Netflix.

Domando o destino (Chloé Zhao, 2017)

A vida, tantas vezes mais difícil de domar do que um cavalo selvagem, tende a dar os coices mais perigosos. Os protagonistas do segundo longa-metragem de Zhao —antes de Nomadland, vencedor do Oscar—, caubóis do novo milênio, interpretam a si mesmos em uma espécie de representação de sua existência na forma de um documentário-drama carregado de simbolismo. O profundo lirismo de Domando o destino não está em confronto, porém, com a capacidade crítica, com o retrato da inquietação social num modo de vida enraizado na tradição e que também carrega na mochila o presente incerto de uma América que se desintegra. O jovem protagonista usa uma placa de metal em seu cérebro por causa de um chute traiçoeiro, mas os Estados Unidos em que sua odisseia moral se desenrola também precisam de uma engenhoca para sustentar seu cambaleante mito. O faroeste raras vezes esteve mais perto da miséria.

Disponível na Netflix.

First Cow - A primeira vaca da América (Kelly Reichardt, 2019)

First Cow, como o próprio título em português explica, fala da origem, do primeiro exemplar em um território até então ermo como o Estado de Oregon. Só por isso, o filme de Reichardt já deveria estar no pódio dos melhores retratos do modo de vida dos norte-americanos. Mas ainda concentra duas das essências do país: o sonho da busca, do território físico e do alimento econômico, o porvir como se deseja, como destino idealizado e como certeza do lar; e o projeto do empreendimento, espelhado na figura de um imigrante chinês, pronto como a fome, que se junta a um cozinheiro especializado em confeitaria para tirar todo o sumo da amizade e, mais ainda, todo o leite de uma vaca que para eles é sua mina de ouro particular. Reichardt, que já havia adentrado o gênero no inquietante O atalho (2011), colonos em busca de seu lugar no mundo, compõe em First Cow um singular faroeste de assaltos, em que a caixa-forte não é nada mais do que a teta de um bovino.

Disponível para compra ou aluguel no Youtube.

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