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Prêmio milionário revela que escritora ‘best-seller’ espanhola, na verdade, eram três homens

Os escritores espanhóis Jorge Díaz, Agustín Martínez e Antonio Mercero assumem a autoria do ‘thriller’ histórico ‘La bestia’, assinado sob o pseudônimo Carmen Mola, ao ganharem a 70ª edição do prêmio Planeta

Ganadores Premio Planeta 2021
Da esquerda para a direita, Josep Crehueras, Felipe VI, os vencedores Agustín Martínez, Jorge Díaz e Antonio Mercero, junto à rainha Letizia e à finalista Paloma Sánchez Garnica.Albert Garcia (EL PAÍS)
Carles Geli

“Não tenho nenhum motivo para revelar minha identidade por boa vontade, embora sempre possamos pôr um zero a mais no cheque; melhor que nunca me proponham esta possibilidade”, afirmava há menos de um ano Carmen Mola, pseudônimo por trás de um dos grandes fenômenos editorais dos últimos tempos na Espanha, sua trilogia sobre a inspetora Elena Blanco, que já superou os 400.000 exemplares vendidos. Pois esses zeros chegaram na última sexta-feira em Barcelona: um milhão de euros (6,39 milhões de reais), que são a nova dotação do prêmio Planeta: por trás de Carmen Mola estão os escritores Jorge Díaz, Agustín Martínez e Antonio Mercero, que, com La bestia, duro thriller histórico sobre um serial killer em Madri em plena epidemia de cólera de 1834, venceram a 70ª edição dessa honraria, cuja entrega aconteceu no Museu Nacional de Arte da Catalunha, no Montjuïc. Na mesma cerimônia, uma autora da própria editora Planeta, Paloma Sánchez-Garnica, estreou o prêmio de 200.000 euros dado ao segundo colocado, com Últimos días en Berlín, romance histórico sobre uma família apanhada entre a Revolução Russa e a ascensão do nazismo.

Na quinta-feira, na entrevista coletiva que antecedeu à entrega, já havia causado surpresa o anúncio de que o valor do prêmio subiria de 601.000 euros para um milhão – valor equivalente ao do Nobel. Se esse já foi um golpe de efeito notável, a concessão do prêmio a Carmen Mola não ficou atrás. E não é uma impressão apenas do público. Também é visto assim nas entranhas do setor editorial, porque Mola é um dos grandes nomes do selo Alfaguara, da Penguin Random House Grupo Editorial (PRHGE), principal rival do Grupo Planeta na edição em castelhano, e que apostou fortemente em 2018 no romance de estreia da desconhecida Mola, La novia gitana (“a namorada cigana”).

A utilização da quantia do prêmio para fisgar o triunvirato que se escondia por trás desse pseudônimo foi a mesma estratégia já utilizada pelo Planeta com o ganhador de 2019, Javier Cercas, um dos autores mais famosos do PRHGE, que venceu com a Terra Alta. Naquela edição, a aposta havia chegado também ao segundo colocado, Manuel Vilas (Alegría), autor que havia revitalizado o selo Alfaguara.

Outro fato curioso é que um dos três integrantes do trio Carmen Mola, Mercero, compartilha agência literária com a própria personagem que criou, a pequena agência Hanska, fundada em 2017 pela polonesa Justina Rzewuska, que chegou a trabalhar como diretora do departamento de direitos estrangeiros da PRHGE. Ocorre que outra autora representada por Hanska, que conta com um pequeno catálogo de apenas 25 escritores, obteve, apenas um mês atrás, outro dos prêmios emblemáticos do Grupo Planeta, o 26º Fernando Lara de romance: Alaitz Leceaga (Hasta donde termina el mar).

As investigações de um jornalista, um policial e uma jovem para achar o culpado de onda de homicídios selvagens de meninas de famílias pobres em 1834 é o fio de argumento de La bestia. Ela segue assim a violência extrema sem limites, beirando a truculência, dos três títulos que até agora compõem a obra de Mola a partir da inspetora Elena Blanco, que começou com o inesperado sucesso de La novia gitana (2018) e prosseguiu com La red púrpura (2019) e La nena (2020). O quarto volume, Las madres, está previsto para sair em março, ainda pela Alfaguara.

Bagagem como roteiristas

Entende-se agora o elevado ritmo de produção de Mola (que até a semana passada era identificada como uma professora nascida em 1973 em Madri), pois se sabe que são livros redigidos a seis mãos por profissionais da escrita, frequentadores habituais do gênero thriller, e todos com uma notável bagagem como roteiristas, perfil cada vez mais cobiçado pelas editoras diante do sucesso das séries televisivas, que se nutrem principalmente de livros. Assim, Mercero (Madri, 1969), filho do famoso cineasta homônimo, é autor de quatro romances: El final del hombre, La cuarta muerte, La vida desatenta e El caso de las japonesas muertas, todos pela Alfaguara. Díaz (Alicante, 1962) é autor de de Los números del elefante, La justicia de los errantes e Tengo en mí todos los sueños del mundo, entre outros. Martínez (Lorca, 1975), o terceiro Mola, era também até agora autor exclusivo do PRHGE com seu Monteperdido (2015, adaptado para a televisão) e La mala hierba (2017). “Há quatro anos, depois de coincidirmos num roteiro, tivemos uma ideia que parecia uma loucura: escrever uma história juntos, e agora estamos no prêmio com o qual sonham todos os que escrevemos”, afirmou Mercero, enquanto Díaz mencionava “momentos macabros numa cidade asfixiante, como vivemos nós com a pandemia”, e Martínez dedicava o prêmio a “nossas mães e a nossos pais, os três falecidos neste caso”. Naturalmente, é a primeira vez que o prêmio Planeta recai sobre uma obra de autoria coral e na qual por trás do pseudônimo usado na inscrição se escondia... outro pseudônimo.

Apesar de ficar parcialmente ofuscada pela revelação dos nomes por trás da autora que ficou conhecida como “a Elena Ferrante das letras espanholas” (por seu anonimato e seu sucesso como a suposta escritora italiana), a outra finalista, Sánchez-Garnica (Madri, 1962), é uma experiente autora do grupo Planeta. Nela publicou seus sete romances anteriores, em uma carreira que começou com El gran arcano (2006) e que teve seus dois marcos até agora em La sonata del silencio (de 2014, adaptada pelo canal público TVE) e Mi recuerdo es más fuerte que tu olvido, que ganhou o Fernando Lara em 2016. Um jovem espanhol que foge com sua família da Moscou revolucionária e acaba aterrissando em Berlim na época da ascensão do nazismo – esse é o peculiar pano de fundo histórico proposto pela autora em Últimos días en Berlín. “É uma homenagem a [Boris] Pasternak e seu Doutor Jivago”, e, ao mesmo tempo, “uma denúncia dos totalitarismos e do dano que eles causam aos seres humanos”, resumiu.

Onde não houve surpresas nesta agitada edição do Planeta foi no ritual sócio-político do jantar literário, este ano com apenas 600 convidados. A presença dos Reis da Espanha, habitual em edições redondas do prêmio, motivou um espetacular esquema de segurança, com até quatro controles policiais e um incomum discurso do presidente do Grupo Planeta, Josep Creuheras, que recordou os membros da família Lara e solicitou um “plano de ajuda” para as livrarias, terminando com um pedido, “rompendo o protocolo”, de aplausos para Felipe VI e a rainha Letizia, “duas pessoas com um grande compromisso em fazer um mundo melhor”. Os 600 convidados ficaram de pé e atenderam ao pedido.

Também foi clássica a ausência do presidente da Generalitat, o governo regional catalão, que desde o início do processo independentista não comparece, numa demonstração das suas desavenças com a Casa Real e com o próprio Grupo Editorial (que transferiu sua sede jurídica para Madri). No lugar dela compareceu a secretária regional de Cultura, Natàlia Garriga. Junto aos ministros Miquel Iceta (Cultura) e Pilar Alegría (Educação) estava na mesa presidencial também a prefeita de Barcelona, a esquerdista Ada Colau, que foi fazendo equilíbrios protocolares para manter uma posição equidistante perante a figura do Rei.

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