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A outra vida da civilização soviética

Historiador Karl Schlögel publica uma grande reconstrução da vida na URSS, um mundo perdido que continua influenciando fortemente o presente

O historiador Karl Schlögel, retratado em Madri.
O historiador Karl Schlögel, retratado em Madri.Jaime Villanueva
Andrea Rizzi

Alguns acontecimentos históricos podem ser vistos como eclosões que geram uma onda expansiva que se propaga, no tempo e no espaço, até bem depois da morte do ordenamento político que os origina. É o caso da União Soviética, um projeto que, como aponta o historiador Karl Schlögel, não foi apenas um sistema político, e sim um modo de vida, um conjunto de práticas e valores: uma civilização. “As tradições da cultura política, do comportamento e das relações humanas sobrevivem ao colapso das estruturas políticas”, observa Schlögel (Alemanha, 1948) durante uma entrevista concedida recentemente em Madri. É este um dos pilares conceituais de Das sowjetische Jahrhundert (“O Século Soviético”, inédito no Brasil), uma grande viagem que cartografa os restos do naufrágio que Vladimir Putin qualificou como a maior catástrofe geopolítica do século XX.

A esmerada atenção de Schlögel se centra em dezenas de aspectos do universo soviético – das ferrovias às moradias comunitárias, da enciclopédia soviética ao desenvolvimento industrial. Evita uma narração cronológica do conjunto, optando em vez disso por uma abordagem em capítulos específicos, que iluminam a gênese, o desenvolvimento, a maturidade e a decrepitude de mais de meia centena de características dessa utopia, algumas relevantes, outras mais pitorescas, mas sempre ilustrativas. É, em boa medida, o retrato de um mundo perdido, de uma cultura derrotada, de um espírito evanescente. Mas não se trata de uma autópsia. À medida que o historiador reconstrói aquela sociedade, transparecem nas entrelinhas os pontos de fuga que ajudam a decifrar o espaço pós-soviético contemporâneo, um mundo turbulento, que três décadas após a implosão do império ainda não alcançou a estabilidade. A medida que sua reflexão avança, percebe-se a força brutal que certas histórias exercem sobre o presente.

A cultura política de fundo é obviamente um dos elementos centrais de influência do mundo soviético no tempo presente. “O fato de, em sete décadas, não ter havido chance de emergência do pluralismo, de afirmação da sociedade civil, é um condicionante de grande peso. A apatia política, a expectativa de que as instituições decidam tudo, a escassa consideração da responsabilidade individual, a desconfiança em relação aos líderes e outros sentimentos que se fortaleceram na etapa soviética continuam sendo muito fortes”, diz Schlögel, especializado em história da Europa Oriental e autor, entre outras obras, de Terror und Traum (“Terror e Sonho”).

O uso interessado da experiência soviética – e do passado imperial como um todo – por parte dos atuais líderes russos é outro elemento poderoso através do qual a história influencia o presente. “Por um lado, a liderança é bastante hábil em utilizar o tipo de cultura política que procede do passado e instrumentalizá-lo em sua agenda política. Sabem que há um grande desejo de estabilidade após uma fase muito turbulenta, e astutamente mobilizam todos os sentimentos relacionados com um futuro incerto”, comenta o historiador. “Por outro lado, replicam a tática da construção de um suposto inimigo externo que pretende cercar a URSS (na época) e a Rússia pos-soviética (agora). Vladimir Putin é um mestre em agitar certos sentimentos, como supostas humilhações que Ocidente pretenderia infligir aos russos”, prossegue o autor. A nostalgia por um passado grandioso, o medo de potências hostis à Rússia, a construção de uma imagem de pátria como grande fortaleza protetora: estes sentimentos cruciais no tempo atual têm uma fortíssima conexão com o passado.

Um grupo de famílias da Sibéria faz fila diante de uma loja em 1991.
Um grupo de famílias da Sibéria faz fila diante de uma loja em 1991. Corbis/VCG via Getty Images Peter Turnley (Corbis/VCG via Getty Images)

A busca de conexões políticas internacionais e a agitação propagandística são outros traços de cultura política que, com o devido aggiornamento, parecem vir de longe e sobreviver no presente. O esforço histórico de vinculação e influência através da ideologia comunista, que Moscou promoveu com partidos afins estabelecidos em outros países, vê agora uma réplica com aproximações interessadas, mas que guardam aromas de conservadorismo tradicionalista, ideologias nacionalistas e valores ortodoxos. A interferência propagandística e a coleta de informações comprometedoras – o célebre kompromat – se mantêm hoje como ferramentas de primeiro plano, embora muito evoluídas nas formas em relação aos tempos soviéticos.

Mas há elementos de continuidade menos visíveis que as grandes estratégias dos líderes. “Um fator que não deve ser subestimado é que, embora atualmente haja milhões de russos que tiveram a oportunidade de viajar ao exterior e comparar, a maioria da população não saiu. Este é outro forte elemento de continuidade”, considera Schlögel.

O livro dele explora uma grande gama de impactos derivados da utopia soviética sobre o cotidiano das pessoas. Como é óbvio, muitas dessas experiências não existem mais, como compartilhar banheiro e cozinha nas moradias comunitárias, onde em 1970 ainda viviam 40% dos habitantes de Moscou. A forma de vida mudou, mas há traços que ainda ecoam vivamente. O historiador narra em seu capítulo dedicado à Ferrovia Transiberiana que naquela época os trens se tornaram um pequeno espaço de liberdade. Nos longos percursos, os viajantes, confiantes de que jamais voltariam a encontrar seus ocasionais companheiros de trajeto, trocavam impressões e informações com certa abertura. “Nesse regime não havia possibilidade de forjar uma contra cultura autêntica; mas se estabeleceu um segundo espaço além dos canais oficiais. Existia na época, e existe agora”, diz Schlögel.

Na Rússia, é um desafio enorme cultivar e articular esse segundo espaço perante uma liderança que o impede ao máximo. “O problema é como criar uma esfera pública onde a opinião do povo possa articular seus desejos e suas reivindicações se as instituições centrais estiverem inteiramente nas mãos do círculo dirigente. Como conectar diferentes movimentos, atmosferas, nas diferentes partes deste enorme território, com distâncias enormes não só em termos geográficos, mas também sociais”, argumenta o historiador.

“O fim da URSS não é apenas o final do projeto soviético, e sim o colapso de um projeto imperial mais amplo. Organizar o desmonte de um império é algo extraordinariamente difícil. A história nos ensina que muito frequentemente isto gerou circunstâncias dramáticas. A gestão da descolonização exige um excepcional senso de Estado. Putin não é essa figura. Usa experiências dramáticas, esses sentimentos, usa as fragilidades dos vizinhos, da Europa, do Ocidente. Tem habilidade para crescer usando as fragilidades dos outros. Mas não tem um projeto de país”, considera o autor.

A onda expansiva da falecida utopia soviética e do império do qual foi o amálgama final continua fazendo boa parte da Europa tremer. Não só suas antigas repúblicas – Geórgia e Ucrânia invadidas, Belarus semicontrolada por Moscou, os países bálticos que sofrem interferências –, mas também países daquele lado da cortina de ferro para os quais o gigante eurasiático é um condicionante decisivo. A forma de vida mudou. O império soviético é um mundo perdido, mas o legado dessa civilização continua, de alguma maneira, circulando nas veias de um imenso território.

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