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Um Nobel para entender que o Ocidente não é o centro do mundo

Repassamos alguns dos temas que irrigam a obra do novo Nobel de Literatura, o escritor de origem tanzaniana Abdulrazak Gurnah

Abdulrazak Gurnah Nobel Literatura 2021
Abdulrazak Gurnah, Nobel de Literatura, 2021.HENRY NICHOLLS (Reuters)

A prosa de Abdulrazak Gurnah é polida e limpa, de fácil leitura. Também tem um retrogosto às narrações e conversas que se escutam em solo africano, o que faz apreciar cada uma das palavras. Mas sob ela fluem muitas outras coisas, horrores e atrocidades cristalizados em uma constelação de temas escassamente tratados nas literaturas africanas. Um deles é a presença das comunidades asiáticas assentadas na África oriental já no século XIX. Homens e mulheres que fugiram da pobreza na Índia e na Península Arábica e encontraram um meio de vida nessa região. Muitos foram comerciantes à procura de marfim e controlaram o tráfico de escravos do interior às regiões costeiras. Mercadorias que trocavam por quinquilharias, fuzis e pólvora, como reflete o autor em sua obra.

Mais tarde, os britânicos impulsionariam a chegada dessas pessoas como mão-de-obra qualificada à construção das ferrovias, por exemplo, em suas colônias da África oriental, e para preencher os postos de trabalho para os que não consideravam os nativos aptos. Mas os indianos e os omanis já estavam lá antes da chegada dos colonos. Também na atual Tanzânia, país onde Gurnah nasceu. E, entretanto, pouco se falou deles. Nos últimos anos, alguns autores lançaram um pouco de luz sobre essas comunidades, como é o caso do queniano Peter Kimani com Dance of the Jakaranda (2017) e a britânica Hafsa Zayyan em We Are All Birds of Uganda (2020). Muito antes deles, Gurnah sempre colocou o centro de sua narrativa nessas pessoas e descreve com detalhes e ternura seus costumes e formas de vida. Talvez tenha sido o pioneiro nesse campo.

Quando os alemães chegaram à África ocidental já encontraram os asiáticos lá. E essa é outra originalidade da literatura do tanzaniano. Muitos de seus romances se situam no período colonial alemão, no que foi a África oriental alemã (a Deutsch-Ostafrika), um território que compreendia a atual parte continental da Tanzânia, além de Ruanda e Burundi. A colônia se instaurou na década de 1880 quando as tropas alemãs intervieram para deter uma revolta contra a Companhia Alemã da África Oriental que operava na região e se manteve até o final da Primeira Guerra Mundial, quando após a derrota alemã a Sociedade das Nações entregou Ruanda e Burundi à Bélgica e Tanganica, como era conhecida a parte continental da atual Tanzânia, ao Reino Unido. Em seu último livro, Afterlives (2020), Gurnah mostra a resistência alemã à invasão britânica durante a guerra e o papel desempenhado pelos askaris, as tropas nativas que lutavam (forçadamente na maioria dos casos) ao lado dos alemães.

Foram escritos muitos romances que denunciam os efeitos causados pela colonização britânica e francesa nas sociedades africanas. Vale citar como exemplo o clássico por excelência das literaturas africanas: O Mundo se Despedaça (1958) do nigeriano Chinua Achebe. Mas poucas vezes se falou da colonização alemã nas literaturas africanas.

Esta, da mesma forma que as outras, rompeu a harmonia existente nas diversas sociedades presentes no continente africano anterior à sua chegada impondo suas normas e arrogando-se a faculdade de arrecadar impostos. Além disso, tratou com mão de ferro qualquer tentativa de dissidência e rebeldia. Essa intervenção convulsionou todo um sistema social e de relações que até aquele momento funcionava e gerou uma violência nunca antes vivenciada na área. No que talvez seja o melhor romance do tanzaniano – Paradise (1994) –, essas questões estão muito presentes e de maneira muito sutil se mostra como tudo se despedaça com a chegada dos alemães.

Mas Gurnah não é ingênuo e não tenta mostrar uma África pré-colonial idílica como talvez o façam Achebe e outros contemporâneos seus. A África que existia antes da chegada dos colonos era uma África cheia de contradições com suas diferenças, desigualdades, superstições e muita crueldade. Mas, por mais brutal que ela fosse, nunca seria como a dos alemães, homens frios, rígidos e muito seguros de si mesmos, tanto que os mitos populares diziam que “comem ferro” como aponta o autor em algumas de suas obras.

Todas as colonizações se caracterizam por seus massacres, e a alemã não é diferente. Basta lembrar o genocídio dos povos herero e namaqua na atual Namíbia. Em Tanganica isso também ocorreu. Lá foram massacrados, pelo menos, 75.000 tanzanianos para reprimir a rebelião Maji Maji (1905-1907) em que diversos povos se sublevaram contra a administração alemã pelas carências e pobreza geradas pelas políticas coloniais alemãs que exigiam aos camponeses prestar trabalhos forçados nas plantações de algodão, principalmente, para ser seu produto exportado à metrópole. Isso fazia com que precisassem abandonar seus próprios campos que eram os que os alimentavam. Essa brutalidade da colônia alemã fica muito bem evidenciada na narrativa de Gurnah.

Um terceiro tema, talvez menor e mais transversal, muito presente na obra do tanzaniano, é o do racismo. Os asiáticos consideram os africanos inferiores e os tratam como tal, impondo normas discriminatórias nos espaços que controlam. Essa realidade ainda pode ser percebida hoje nos países da África oriental. O próprio Gandhi foi acusado há alguns anos desse racismo durante sua estadia na África do Sul, o que causou manifestações e protestos em várias partes do continente africano que culminaram com a retirada de suas estátuas em algumas universidades como aconteceu na de Gana em 2018. Os alemães pensam o mesmo dos nativos, mas também dos asiáticos e tratam os dois grupos com igual desprezo.

É possível que seja a presença dessas temáticas e outras na obra de Gurnah ou qualquer outro motivo o que tenha levado um comitê de suecos a conceder a ele neste ano o Nobel da literatura. Talvez também tenha influenciado o fato desse comitê parecer gostar de rotacionar de continente e de gênero a cada ano, em uma tentativa de ser paritário ou algo do tipo. Por isso, era de se supor que neste ano o prêmio iria a um homem africano. Todas as apostas indicavam o queniano Ngugi wa Thiong’o, eterno candidato à premiação e, entretanto, não foi assim.

Por mais que possamos gostar da obra de Gurnah, se nos fosse dada a oportunidade de escolher teríamos preferido que o prêmio fosse para Thiong’o. Na literatura deste estão presentes muitas das questões tratadas por Gurnah, mas talvez apresentadas com mais crueza. Além disso, a perspectiva tomada pelo queniano é diferente, mais a partir dos últimos da terra, os mais estropiados e pisoteados. Ele relata as lutas de independência, o sacrifício do povo, a esperança quando se consegue a liberdade e o desencanto da realidade quando os que lideraram aquele sonho se assentam no poder e o utilizam em benefício próprio. E essas críticas custaram a ela a prisão, a tortura e o exílio. Mas talvez Thiong’o seja revolucionário e radical demais para os membros do comitê.

Thiong’o é uma referência das literaturas africanas, bem conhecido e acompanhado em seu país, onde suas obras são publicados em kikuyu e inglês, e em todo seu continente. Gurnah é praticamente um desconhecido em seu país de origem. Mora no Reino Unido e lá desenvolveu sua carreira. É muito difícil encontrar seus livros na Tanzânia, que precisam ser importados do Reino Unido. São encontrados somente na livraria de um centro comercial frequentado principalmente por expatriados a preços que somente esses expatriados podem pagar.

Humbert, de Arusha, no norte do país, confirma isso: “Pouca gente o conhece aqui, de modo que o prêmio passou praticamente despercebido. Somente o Governo postou algumas mensagens nas redes sociais parabenizando-o”. Mussa, em Zanzibar, diz: “Parece que há um escritor famoso que nasceu nessa ilha e não sabíamos”. Por fim, Abdurahman em Dar es Salaam enfatiza o dito pelos anteriores ao afirmar que “dizer que ninguém conhece Gurnah neste país talvez seja um pouco exagerado, mas devem ser bem poucos os que ouviram falar dele antes da notícia da premiação. Aqui, somos mais de literatura escrita em suaíli”.

Mas não vamos cair na armadilha de elucidar se existem as literaturas africanas e, em caso afirmativo, o que são. O escritor sudanês Abdelaziz Baraka Sakin, autor de The Messiah of Darfur, já se meteu nessa enrascada nessas mesmas páginas.

O fato de ser capricho de suecos e não satisfazer nossos desejos não impede que o Nobel outorgue um reconhecimento merecido a um autor que conseguiu com que o horror da colonização não seja esquecido, entre tantas outras coisas. Além disso, servirá para que seus livros sejam divulgados e os leitores tenham a oportunidade de ler narrativas onde “o universal não seja o ocidental”, como diz a especialista em literaturas africanas Sonia Fernández Quincoces.

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