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Palhaço ou gênio? Como M. Night Shyamalan se tornou o cineasta mais discutido do século XXI

O diretor, que um dia foi aclamado por unanimidade graças a ‘O Sexto Sentido’, continua semeando polêmica entre críticos e fãs de filmes de terror

M. Knight Shyamalan em Nova York em 2019 durante a estreia de ‘Servant’, série que ele produziu para a Apple TV.
M. Knight Shyamalan em Nova York em 2019 durante a estreia de ‘Servant’, série que ele produziu para a Apple TV.Gary Gershoff (WireImage)

Várias famílias hospedadas em um resort visitam, por recomendação do gerente, uma praia isolada e secreta. A descoberta de um cadáver na água dá início, no entanto, a uma série de fenômenos que parecem estar relacionados ao funcionamento do tempo: o lugar onde estão está fazendo com que envelheçam. Essa é a premissa de Tempo, trabalho mais recente do cineasta M. Night Shyamalan, que, apesar de não partir de uma ideia original —é uma adaptação da história em quadrinhos Castelo de Areia (2010), de Frederik Peeters e Pierre Oscar Lévy, lançada no Brasil pela editora Tordesilhas—, segue o cânone de uma carreira dominada pelo high concept, ou “alto conceito”, termo usado para denominar filmes com uma ideia fácil de vender em poucas palavras. Ou de virar um meme: até o diretor compartilhou no Twitter algumas das publicações humorísticas sobre “a praia que te deixa velho”, surgidas com a estreia de Tempo nos Estados Unidos.

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Recebida com a divisão de opiniões tradicional em sua carreira, com exceção do aplauso unânime para O Sexto Sentido (1999) e do desprezo quase unânime por O Último Mestre do Ar (2010), Tempo ajudou Shyamalan a atingir uma marca que ninguém pode contestar: liderou as bilheterias americanas em quatro décadas diferentes. Na Espanha, o filme também conquistou o primeiro lugar, apesar de ter estreado na mesma semana que a última superprodução da Disney, Jungle Cruise. E, como também costuma ocorrer com os filmes de Shyamalan, já deu lucro: já arrecadou 65 milhões de dólares (341 milhões de reais) mundialmente, com um orçamento de apenas 18 milhões de dólares (94 milhões de reais). Desde O Sexto Sentido, nenhum título do diretor e roteirista teve uma bilheteria menor que seu orçamento, mesmo quando o investimento foi alto. Shyamalan é garantia de satisfação comercial.

No plano artístico, porém, a coisa muda... dependendo de quem opine. David Ehrlich, jornalista do Indiewire e um dos críticos internacionais mais lidos, foi particularmente cruel, definindo Tempo como um filme “muito idiota” e, ao mesmo tempo, como o melhor trabalho do cineasta desde 2004. Ehrlich se detém em um dos aspectos geralmente mais discutidos de seu cinema: os diálogos, cuja qualidade ele compara, neste caso, à dos filmes de assassinos psicopatas em que casais adolescentes anunciam que vão ao sótão para transar, apenas para morrer instantes depois. “Você tem uma voz linda, que vontade de ouvi-la quando crescer”, diz à sua filha, no início do filme, o pai interpretado por Gael García Bernal.

Um momento do filme ‘Tempo’, de M. Night Shyamalan.
Um momento do filme ‘Tempo’, de M. Night Shyamalan.

Entre os especialistas europeus, que costumam ter mais consideração por Shyamalan, Tempo foi recebido com interesse. Até com entusiasmo, como é o caso de Desirée de Fez, integrante do comitê de seleção do Festival de Sitges e uma das grandes autoridades em matéria de cinema fantástico e de terror na Espanha. Consultada pelo EL PAÍS, De Fez não hesita em considerar Tempo um filme “muito importante, original, único e repleto de ideias”. A jornalista publicou no ano passado na Espanha o livro Reina del Grito − Un Viaje por los Miedos Femeninos (“rainha do grito − uma viagem pelos medos femininos”), no qual analisa sua relação com o cinema de terror a partir dos medos pessoais que enfrentou em diferentes etapas, como o “medo de não ser aceita” na adolescência e o “medo de explodir” em sua primeira gravidez. Nesse sentido, ela afirma que Tempo a “tocou muito”. “Os medos que você atravessa ao longo da vida aparecem sintetizados em um período muito curto. [O filme] faz você pensar no medo da perda, no medo de que tudo passe rápido demais, de não tomar as decisões certas ou de morrer”, assinala De Fez.

Para a jornalista, apesar da ideia dos anos passando implacavelmente em questão de minutos, Tempo é um filme “luminoso e otimista, que lembra que devemos viver sempre no presente”. Desirée de Fez apresenta o podcast sobre cinema de gênero Marea Nocturna e, mais recentemente, o Reina del Grito, onde conversa sobre terror com outras mulheres. No primeiro, em um programa especial dedicado ao diretor, definiu Shyamalan como “um dos mais importantes cineastas contemporâneos”. “É um autor que conta suas histórias com total liberdade, que não cede às modas do momento e assume riscos de todos os tipos. Em Tempo, ele não tem medo de se meter em problemas, ele sabe de antemão que nem todo mundo vai se conectar”, afirma.

Sucesso precoce e pecados da juventude

O Sexto Sentido marcou em 1999 a carreira de M. Night Shyamalan por seu impacto enorme e inesperado quando ninguém o conhecia. O diretor ainda não havia chegado aos 30 anos, embora já tivesse lançado dois longas —Praying with Anger (1992) e Olhos Abertos (1998)— e coescrito o roteiro de O Pequeno Stuart Little (1999). David Vogel, que chefiava a Buena Vista, divisão de produções live-action da Disney, foi o primeiro peso pesado a acreditar em Shyamalan: assim que leu o roteiro de O Sexto Sentido, aceitou comprá-lo por 3 milhões de dólares (15,7 milhões de reais) com a cláusula de que o autor também dirigisse o filme. A Disney, chamando-o de louco, demitiu Vogel, vendeu os direitos de produção e ficou apenas com a distribuição. O resto é história: o demitido estava certo e o filme foi um acontecimento, arrasando nas bilheterias e obtendo seis indicações ao Oscar.

Mark Wahlberg e Zooey Deschanel em ‘Fim dos Tempos’ (2008), de M. Night Shyamalan.
Mark Wahlberg e Zooey Deschanel em ‘Fim dos Tempos’ (2008), de M. Night Shyamalan. FOX

Mas o sucesso tinha um outro lado: tudo o que Shyamalan fizesse dali em diante seria medido em comparação com o nível alto estabelecido em O Sexto Sentido. E todos os seus finais também estariam sujeitos à expectativa de uma surpresa por causa da reviravolta daquele filme, uma das mais marcantes da história do cinema. Assim, progressivamente, a recepção da crítica e do público foi ficando cada vez mais morna. O diretor manteve as boas acolhidas com Corpo Fechado (2000), agora revalorizada pela forma como se antecipou à febre dos super-heróis e desconstruiu a narrativa do subgênero. Com a muito mais extravagante Sinais (2002), na qual apostou abertamente no humor e em uma arriscada temática religiosa, continuou tendo uma recepção majoritariamente favorável, quebrada claramente em sua tríade posterior: A Vila (2004), A Dama na Água (2006) e Fim dos Tempos (2008).

Em seu episódio sobre Shyamalan, Mikey Neumann, o youtuber por trás do Movies with Mikey, programa do canal de análise cinematográfica FilmJoy, apresentou uma teoria: havia um paralelismo entre a evolução de sua filmografia e a importância crescente de suas habituais pontas. Em Sinais, o diretor interpretou o responsável pela morte da mulher do protagonista: foi, portanto, quem ativou o conflito central. Em A Vila, reservou sua aparição para a reviravolta final, como uma espécie de assinatura. E em A Dama na Água assumiu diretamente um papel messiânico, já que o destino do mundo passava por um livro que seu personagem tinha escrito. Nesse filme, além disso, ele caricaturou os críticos com a representação de um jornalista de cinema que não acerta nunca em sua análise e morre de forma humilhante.

As atitudes de enfant terrible não pararam por aí. Na pré-produção de A Dama na Água ocorreu sua famosa separação da Disney: Shyamalan foi para a Warner por considerar que a primeira não estava dando a devida atenção ao filme. Por exemplo, quando seu assistente levou o roteiro para a casa da executiva Nina Jacobson, ela se atrasou porque tinha ido levar seu filho a uma festa de aniversário, algo que o diretor considerou um ultraje. Fatos como esse estão reunidos no livro de 2006 The Man Who Heard Voices (“o homem que ouvia vozes”), do jornalista esportivo Michael Bamberger, amigo do cineasta. Escrito como as histórias de santos, o livro compara Shyamalan com Bob Dylan, Picasso, Michael Jordan e Tiger Woods, e mostra, involuntariamente, um criador devorado por seu ego, que (paradoxalmente em relação ao título) não ouve a opinião de ninguém.

M. Night Shyamalan na filmagem de ‘A Visita’.
M. Night Shyamalan na filmagem de ‘A Visita’.

Durante a produção de A Vila, ele também participou do falso documentário The Buried Secret of M. Night Shyamalan (Nathaniel Kahn, 2004), que lhe atribuía dons sobrenaturais, aos quais Bamberger dá certo crédito em seu livro (“sentia uma força poderosa emanando dele”, chega a escrever).

“Precisa acrescentar reviravoltas, doutor Crowe”

Uma constante no cinema de Shyamalan é o caráter autoconsciente com que se desenvolvem suas histórias. Chama a atenção o fato de que o filme que voltou a lhe dar um lugar de relevância no cinema de terror, depois de seu parêntese com as superproduções fantásticas O Último Mestre do Ar e Depois da Terra (2013), tenha sido um retorno à essência tão transparente como A Visita (2015), uma reinvenção do subgênero found footage, ou “filmagem encontrada”, que o diretor transformou em filmagem alterada por ser, na ficção, uma montagem feita pela garota coprotagonista, aspirante a estudante de cinema.

Dessa forma, os mecanismos narrativos mais elementares, como os cortes, o planejamento e a música, tornaram-se detalhes integrados à ação: às vezes, o filme funcionava como uma espécie de escrita cinematográfica, por exemplo, com a garota tornando explícita uma estratégia de edição usada em seu clímax para causar emoção.

Essa é uma questão frequente no cinema do diretor. Em uma cena de O Sexto Sentido, não sem alguma malícia, o garoto protagonista critica o psicólogo interpretado por Bruce Willis por não saber contar histórias, insistindo que ele deve acrescentar reviravoltas. O menino sabe algo sobre a natureza daquele psicólogo que ele ainda não tem consciência: o próprio filme apresenta um conflito duplo no qual aquele que parece ser ajudado é, na verdade, quem está ajudando o outro. Em outras palavras, quem está lhe contando a história. Em Sinais, aspectos dispersos na trama devem ser detectados pelo patriarca da família, um reverendo que perdeu a fé, como ferramentas colocadas por Deus (ou pelo narrador, o que aqui dá no mesmo) para se salvar dos extraterrestres.

Para Desirée de Fez, esse elemento autoconsciente também está presente em Tempo. “Há um elemento metanarrativo muito interessante. Não acho que seja algo acrescentado depois, porque surge no início do filme e provavelmente estava em sua gênese”, opina a jornalista. A ponta de Shyamalan, desta vez, está no início: ele aparece como o motorista do ônibus que leva os personagens à praia, uma forma talvez pouco sutil de se afirmar como responsável pelos acontecimentos. Tanto o início como o final de Tempo não estão na história em quadrinhos original, são da própria lavra de seu diretor e roteirista.

A autora de Reina del Grito assinala que, na época de A Vila, talvez o filme com a reviravolta mais polêmica da carreira de Shyamalan, o diretor pode ter se sentido “pressionado” a “não decepcionar e a oferecer finais surpreendentes”, mas, desde A Visita, tem notado que ele está “mais brincalhão que o normal, mais perverso, despreocupado e festivo, embora igualmente brilhante e inteligente”. No entanto, ela sente que no final de Tempo o cineasta tendeu a explicar demais as coisas. “Shyamalan sabe que estamos em um momento em que se exige muita clareza do cinema. Parece que os finais abertos ou ambíguos provocam um pouco de rejeição”, considera De Fez.

Em Fragmentado (2016), Shyamalan apresentou uma das reviravoltas mais estrambóticas de sua filmografia: era uma sequela encoberta de Corpo Fechado. Mas o filme, que mostrou um homem com 32 personalidades, incluiu mais referências à sua obra: uma dessas personalidades esteve em Sinais, e parte da sequência final recriou o desenlace de A Vila. Como se o cineasta quisesse falar também de suas múltiplas personalidades autorais. Caso isso também abrisse caminho para uma sequela de O Sexto Sentido, Haley Joel Osment (hoje com 33 anos) não demorou para declarar publicamente seu interesse em retomar o papel que lhe deu fama, o garoto Cole. Parece que isso não vai ocorrer, porque Shyamalan confessou recentemente à revista GQ que O Sexto Sentido não está entre seus filmes favoritos, afirmando que prefere A Dama na Água. Outra autoafirmação que, segundo Desirée de Fez, será cada vez menos necessária com o passar dos anos: “Filmes que foram recebidos de forma morna ou até hostil acabaram se reposicionando. Alguns deles são agora considerados entre os melhores de Shyamalan”. Questão de tempo.

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