Era outra vez: como transformar (para melhor) os contos de fadas
A escritora Ana Llurba expõe em um novo ensaio de que forma as narradoras mais inovadoras da atualidade demonstram como “os arquétipos continuam falando, mas já não dizem a mesma coisa”
Ao longo dos últimos 200 ou 300 anos, dizia Angela Carter (Eastbourne, Reino Unido, 1940-1992), os contos de fadas e os contos populares ―os contos da Mamãe Gansa, isto é, das velhas comadres, da fofoca; a vulgarização, para ela, está relacionada ao fato de que, claramente, provinham de vozes femininas porque, como opinava Virginia Woolf, “anônimo” era sempre sinônimo de “mulher”―foram compilados como um fim em si mesmo “e foram guardados como um tesouro por uma longa série de motivos que vão da curiosidade do antiquário à ideologia”.
Carter assinalava, por exemplo, como os irmãos Grimm, Jacob e Wilhelm, filólogos, antiquários e medievalistas, “se propuseram a estabelecer uma cultura unitária para o povo alemão” por meio de sua reescrita. E, ao mesmo tempo, como no século XIX o estudioso J. F. Campbell viajou para as Terras Altas da Escócia para “transcrever e assim preservar” as histórias ancestrais da língua gaélica antes que o inglês “as aniquilasse”. E também, é claro, como inevitavelmente permearam tudo o que vemos e lemos hoje, indiretamente. Dos romances de Dickens, disse ela, até Dinastia.
A escritora britânica foi uma apaixonada folclorista que passou boa parte da vida estudando o conto popular e acabou dando forma, dando sua forma, que tinha a ver com não fugir do perigo―o mundo lá fora é selvagem, aceitemo-lo e desfrutemo-lo–, mas com abraçá-lo, com se deixar levar pelo desejo, e pelo irracional, a sua própria compilação. Ela o fez misturando uma infinidade de tradições em 103 Contos de Fadas (2007), que refundou, majestosa, libérrima e tenebrosamente o gênero.
Contaminada pelo espírito totêmico e poderoso de Carter, Ana Llurba (Córdoba, Argentina, 40 anos) observa, do ponto de vista do presente, de que maneira seguem hoje aquele imaginário “portátil”, como dizia Carter, que qualquer um leva consigo “como parte de uma bagagem invisível”, de que forma segue o presente narrativo invadido, em alguns casos de forma brilhante e muito explícita, por contos de fadas revisitados e reformulados, um “revisionismo” que coincide com a quarta onda do feminismo, mas que não só tem a ver com ela, como conta no microensaio Érase Outra Vez. Cuentos de Hadas Contemporáneos (Wunderkammer). “É um revisionismo construtivo, uma sementeira que desencadeia estímulos, que demonstra que estes arquétipos continuam falando, mas já não dizem a mesma coisa, atravessados como estão pelo feminismo, pela política de identidades e pelo talento das, sobretudo, escritoras que se propuseram a transformá-los”, explica a também escritora Aristas Martínez, autora do livro de contos Constelaciones Familiares, entre outros volumes.
O processo está em andamento desde a década de setenta, como uma reação à domesticação do conto popular feita pela fábrica Disney. Embora não só por isso, é claro. O escritor Robert Coover, um dos principais representantes do pós-modernismo norte-americano, dedicou sua vida a destruir até o último dos mitos que encontrou para que nada restasse deles, com a intenção de começar do zero ―ele o faz em El Hurgón Mágico e Zarzarrosa, em que imagina uma bela adormecida estuprada pelo príncipe, e inclusive em seu Pinocho en Venecia, transformando-se a si mesmo, o escritor, em um maltado boneco de madeira. Margaret Atwood, cuja ficção era feminista antes do feminismo, também.
Moshfegh, a bela adormecida
Não é apenas que seus primeiros livros de poesia deformavam os arquétipos dos contos de fadas, é que sua ficção volta a eles continuamente. “O que se produz ao deformar um conto de fadas é que você move o esquema com qual olha o mundo”, diz Llurba, que analisa obras de Helen Oyeyemi, Kelly Link, Carmen Maria Machado e inclusive Ottessa Moshfegh, porque, para a escritora, Mi Año de Descanso y Relajación é uma espécie de bela adormecida ―a protagonista, jovem, bela e rica, decide se encher de barbitúricos para dormir durante um ano e escapar do que se espera dela porque isso a aborrece profundamente― “não explicitada”. “É sua maneira de escapar de ser Carrie Bradshaw”, diz.
Llurba contempla, sobretudo, as novas formas que os velhos contos estão adotando, inclusive no cinema, com o fim de “vislumbrar novos horizontes e novas mitologias mais inclusivas e, oxalá, mais emancipadoras”. Embora, é claro, faça um pequeno percurso sobre quem contou essas histórias antes e com que intenção ―como a curiosidade da mulher era constantemente castigada―, mas também as deformações que estes sofreram desde o início ―como, por exemplo, as versões originais foram “polidas” para apresentá-las ao público infantil no século XIX.
“Quando surge o conceito de infância, os contos de fadas deixam de ser para adultos, porque na época de Charles Perrault o eram, eram um entretenimento na corte de Versalhes para a elite da época”, analisa Llurba, que acredita que sobretudo as narradoras ―menciona também Kristen Roupenian, Shirley Jackson, Cristina Fernández Cuba, Dubravka Ugresic e a poeta Anne Sexton― os utilizam precisamente para o contrário do que foram criados: acabar com as expectativas que se lhes pressupõem como mulheres.
É o caso de The Lure, de Agnieszka Smoczynska, um filme sobre duas irmãs sereias que nada têm de angelicais e que se dedicam, por mais que o mundo pretenda explorá-las ―em um clube de programa― a devorar corações humanos. Ou na forma como os personagens que cria El Señor Fox, de Helen Oyeyemi, o escritor amador, como Barba Azul, a assassinar mulheres ―no caso dele, ficcionais– se rebelam contra ele e sua obsessão em maltratar a mulher. Mas Llurba insiste. Os contos de fadas, se poderia dizer, são espelhos que refletem a época em que foram “recontados”.
“Os contos de fadas vêm sendo construídos e reconstruídos há séculos. O que tentei é espalhar minha paixão pela reconstrução atual, uma paixão que Angela Carter despertou em mim”, diz ela. Paixão que não pode evitar de estar presente, desde o início, em quase qualquer vida de escritor, porque não são contos de fadas ainda o que leem antes de qualquer coisa? A tendência, em todo caso, é um fato. Na próxima semana Rebecca Solnit, autora de Os Homens Explicam Tudo para Mim, pensa acrescentar outro título a essa lista cada vez mais longa, uma Liberte Cinderella, na qual o protagonista ousa dizer basta.
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