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Como a pandemia, a televisão e o Spotify ‘mataram’ os grupos musicais

Não há nenhuma banda entre os artistas mais ouvidos pelo mundo em 2020. Apenas solistas. Executivos, produtores e cantores analisam um fenômeno que está mudando os rumos da indústria

"Dá a sensação de que não há mais bandas; somos uma raça em extinção”, se queixou recentemente Adam Levine, do Maroon5. Os da foto não são o Maroon5. Pelo contrário, são os Beatles.
"Dá a sensação de que não há mais bandas; somos uma raça em extinção”, se queixou recentemente Adam Levine, do Maroon5. Os da foto não são o Maroon5. Pelo contrário, são os Beatles.Collage: Pepa Ortiz (Getty Images)
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Qualquer um que tenha crescido com os grandes grupos de rock e pop do passado se contorcerá na cadeira diante de uma evidência tão funesta: atualmente não há bandas como Queen, The Jam, The Police, Nirvana ou Oasis. Há escassez de novas formações —surgidas, digamos, nos últimos cinco anos— que se igualem às de antigamente em proezas comerciais. São tempos de Sheerans, Lipas, Swifts, Weeknds, Bunnies, Eilishs. De Rosalías, Tanganas, Alboranes, Aitanas, Amaias ... Os solistas, ao que parece, se apoderaram das paradas.

Em março, após declarações de Adam Levine, cantor do Maroon 5 (“Dá a sensação de que não há mais bandas, somos uma espécie em extinção”, lamentou), o jornal britânico The Guardian dedicou um artigo à questão, com o seguinte título expressivo: “Por que os grupos estão desaparecendo”. O pessimismo de Levine pode ser sustentado por dados. Os 30 artistas mais ouvidos no Spotify em 2020 eram todos solistas, exceto um, o combo sul-coreano BTS (com sete integrantes que não tocam instrumentos). Foi preciso fazer uma minuciosa inspeção do ranking para localizar o Maroon 5 em 33º e o Queen em 34º. Desde março de 2019, quando o Jonas Brothers foi o número um com Sucker, até hoje, passados dois anos, apenas um outro grupo liderou a parada de singles da Billboard (Estados Unidos): o já citado BTS.

Eu, eu, eu!

Ao contrário do que acontecia décadas atrás, pop e rock não são os estilos mais em voga. Rap, trap, R&B e reggaeton… —gêneros interpretados por solistas— ganharam terreno. Todo o rock novo já é alternativo; não é mais mainstream. “À medida que o pop e o rock morrem, no que se refere a vendas milionárias, morrem as bandas, que são as que fazem pop e rock”, explica Javier Portugués, veterano A&R (responsável por Artistas e Repertório) que trabalha com a Sony Music. Colaborou com solistas como Joaquín Sabina, Marwan, Dani Martín, Rozalén e Malú e grupos como Estopa e Maldita Nerea. “Tem a ver com as idiossincrasias dos gêneros”, acrescenta. “No rap, antes de começar com o primeiro verso, você já disse seu nome e o nome do produtor 10 vezes. É uma exaltação de si mesmo.”

Espectadores do festival Primavera Sound.
Espectadores do festival Primavera Sound. ALEJANDRO GARCÍA (EFE)

Os festivais podem ser considerados o último reduto de grupos de pop e rock, mas, apesar da natureza nostálgica de muitos desses eventos, mesmo os mais importantes não têm escolha a não ser seguir a corrente dominante. Na última edição do Primavera Sound (Barcelona), sete dos nove artistas de destaque eram solistas: Erykah Badu, os rappers Future e Cardi B, Solange, Janelle Monáe, J Balvin e Rosalía (os grupos eram o Interpol, formado em 1997, e Tame Impala , na verdade, um projeto do cantor e multi-instrumentista australiano Kevin Parker).

Essa mudança de regime foi bem recebida pela indústria: lidar com solistas é mais prático. “Para uma gravadora, quando se trata da promoção de um evento, mudar um cara ou uma garota em vez de uma banda inteira é mais ágil e mais barato”, diz Pablo Cebrián, produtor de David Bisbal e Amaia Romero, entre outros. Também é mais eficaz. “Em termos de marketing, é mais fácil vender uma única pessoa, um ícone”, diz Alizzz, produtor de C. Tangana.

A dinâmica interna das bandas às vezes é bastante complexa, o que contrasta com a flexibilidade dos solistas. “Cada pessoa em um grupo tem seus movimentos, e para a indústria é muito mais cômodo lidar com solistas”, continua Cebrián. “De um disco para outro, um solista pode mudar de produtor. Numa banda, essas voltas são muito mais difíceis: quando uns querem ir para um lado e outros para outro, surgem tensões.”

Discos feitos no quarto

Os avanços tecnológicos tornam mais fácil para qualquer adolescente que sente vontade de compor canções não só conseguir fazer uma gravação muito correta com as ferramentas digitais, como também postá-la nas plataformas, sem intermediários. “Agora a música é feita em um quarto”, explica Pablo Cebrián. “Pelo que tenho visto ao meu redor, as novas tecnologias têm uma grande influência”, concorda Alizzz. “Muitos artistas produzem as próprias músicas, por exemplo, eu mesmo. O que estou acostumado é a trabalhar no estúdio com um cantor, só ele ou ela e eu. Para as gravadoras, além disso, gravar uma banda sai mais caro.”

La cantante Billie Eilish, posando antes del inicio de la ceremonia de los Oscar 2020, el febrero pasado.
A cantora Billie Eilish, posando antes do início da cerimônia do Oscar 2020. Amy Sussman

Miguel Blanes, 22 anos, vocalista e guitarrista do Mentira, banda emergente que desde 2020 lançou vários singles e um EP pela Subterfuge Records, reconhece essa supremacia: “É uma tendência superevidente. Surgiam muito mais bandas na década de 2010 do que agora. Em parte, acho que é porque a forma de compor está mudando. Com todos os recursos que temos, uma única pessoa pode fazer uma canção supercompleta. Não precisa se reunir com mais instrumentistas para formar um projeto”.

Os membros do Trashi (entre 21 e 23 anos) realizam uma mistura original de indie pop e música urbana com autotune, e lançaram vários singles pelo selo independente Helsinkipro. Cresceram admirando grupos como The 1975 e The Vamps no YouTube, “bandas formadas por amigos que se juntavam para fazer música”, dizem quase em uníssono. Eles atribuem a atual hegemonia dos solistas ao fato de que “agora qualquer um pode fazer música em casa. Trabalhar sozinho é sempre mais fácil do que em grupo: você pode fazer o que te agrada. As pessoas buscam mais projetos solo por causa disso “, declaram.

O imediatismo proporcionado pelas tecnologias modernas vai bem com os novos hábitos de consumo. “Hoje você começa a ver uma série, no segundo capítulo você se desinteressa um pouco e deixa de segui-la. É a mesma coisa com a música “, compara Pablo Cebrián. Como exemplo de velocidade, ele cita o caso de Billie Eilish, que alcançou o primeiro lugar nas paradas nos Estados Unidos em abril de 2019 com seu primeiro álbum, When we all fall asleep, where do we go?. “Uma menina que, com o irmão, no quarto de casa, escreve músicas e as sobe na internet ... Encurta-se um caminho que há 30 anos era uma via crucis: você tinha que ensaiar a música com o seu grupo, arranjar alguém para bancar um estúdio, masterizar seu disco, editá-lo... Agora isso está nas mãos das pessoas. Todos os anos você vê casos de garotos que postam algo que criaram e recebem uma quantidade brutal de reproduções.” Como diz Javier Portugués, “90% do mercado acaba se concentrando no que está bombando em nível de streaming [reproduções em plataformas como o Spotify], e são todos solistas”.

Solistas colaborando com solistas

As individualidades encontram acomodação especial em uma prática dominante ultimamente: as colaborações. Em geral, os grupos não tomam parte delas. “Desde que entramos na era do consumo digital, nove entre 10 lançamentos, para ter um volume de streaming significativo, são colaborações. Solistas colaborando entre si. É o novo protótipo de artista”, afirma Javier Portugués. No Top 100 Canções da Promusicae de 25 de março a 1º de abril, apenas quatro singles dos 20 mais vendidos não eram colaborações, mas faixas solo.

A cantora Natalia Lacunza.
A cantora Natalia Lacunza. INSTAGRAM

Não se deve esquecer o papel que desempenham neste cenário desequilibrado os programas de talentos na televisão, uma plataforma de lançamento de novos artistas já faz algum tempo. “Os shows de talentos são focados no artista individual. O que mais chama a atenção do público, que não se detém para analisar outras coisas, é o cantor”, diz Natalia Lacunza, 22 anos, que ficou em terceiro lugar no OT 2018. Após assinar contrato com a Universal Music, foi número um em vendas com seu álbum EP2 e escolhida Artista Revelação Pop pelos Prêmios Odeón 2020. Lacunza escolheu fazer carreira solo simplesmente porque, depois de se mudar para Madri (ela é de Navarra), não conhecia ninguém com quem começar uma aventura em conjunto. Só agora recrutou uma banda que deseja que participe da composição e dos arranjos. “O mais marcante agora são os nomes de artistas solo”, opina, “mas a importância das bandas ainda continua aí, mesmo que de maneira implícita nos projetos dos solistas. Apesar de terem ficado em segundo plano, contribuem muito para o momento ao vivo”.

No entanto, as apresentações ao vivo foram reduzidas ao mínimo por causa da pandemia. Apesar da situação transitória, muitos fãs podem ter se acostumado a escutar música no computador em vez de em uma sala de shows, o que também não ajuda a resgatar as bandas. “Assim como o trabalho remoto se normalizou, na música se tornou normal a ausência de shows ao vivo”, se queixa o produtor Pablo Cebrián.

Para completar o quadro, as redes sociais, onde os artistas combinam a promoção de sua música com cenas de sua intimidade, potencializam a autonomia. Como observa Javier Portugués, “a última rede social em que havia sentimento de grupo era o MySpace. Era um lugar onde grupos musicais postavam suas canções. Não havia ali o exibicionismo público que alimenta a vaidade. Era uma rede a serviço do grupo. O Instagram, e agora o TikTok, trazem tudo de volta ao aspecto pessoal. Nas redes, a diferença de seguidores entre a conta do líder do grupo e a da banda é enorme. Sempre foi um pouco assim: todos nós entendíamos que The Police era o Sting, mas sabíamos quem era o baterista e quem era o guitarrista. Hoje, as redes sociais teriam eliminado os dois componentes que não eram o Sting”.

Um futuro só de solistas?

Com esse panorama, as bandas se sentem, como Levine comentou, uma espécie em extinção? “Poderiam dizer que sim”, responde Miguel Blanes, da Mentira. “Não acho que vão começar a desaparecer, mas, sim, perder a popularidade que costumavam ter. Existe uma tendência de mudança de formato. Eu mesmo estou consumindo mais música de solistas.” O produtor Pablo Cebrián, que começou como guitarrista do grupo Fabula (com quem lançou dois álbuns pela Warner Music e foi banda de abertura de shows do REM), teria formado uma banda se agora estivesse dando seus primeiros passos na música? “Como não sou cantor, tenho certeza que teria começado como produtor muito antes e não teria passado por uma banda. Com certeza Iván, que era nosso cantor, teria feito carreira solo e eu seria seu produtor. Não há mais referências”, afirma.

Cabe questionar se essa ausência de modelos de banda de sucesso pode incutir nos mais jovens com ambições musicais a noção de que é “normal” adotar a configuração solista. “Na nossa infância, os ídolos eram os Beatles, os Stones, o Supertramp, o Pink Floyd ... As grandes bandas de rock e pop da vida toda”, argumenta Javier Portugués. “E você dava como certo que se quisesse se dedicar à música tinha que comprar uma bateria, um amplificador de guitarra, encontrar um lugar para ensaiar ... Era assim que você tinha que fazer para ser parte daquele universo mágico que tinha te deslumbrado desde pequeno. Agora, esse universo é um talent show de solistas. Não sentem necessidade de se reunir para bolar um projeto. Esse é o novo paradigma e temos que conviver com isso.”

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