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DJ pessoal, o algoritmo aprende a cada vez que pulamos de música como loucos

Ana Galvañ
Joseba Elola

Na era da música ouvida por streaming no celular, muitas vezes passamos de uma canção a outra sem mais nem menos. Escutamos mais música do que nunca, cada vez mais fragmentada, com um peso cada dia maior para as playlists do Spotify. Os algoritmos decidem por nós. Para bem e para mal.

Hubert Léveillé Gauvin é um musicólogo canadense de 29 anos fascinado pela chamada economia da atenção. Trompetista amador, grande aficionado do jazz, era comprador contumaz de CDs na loja de discos do seu bairro durante a adolescência. Seu interesse pelas questões econômicas o levou, na sua etapa universitária, a tentar compreender o que diabo estava acontecendo com a música na Internet no princípio do século. Não entendia bem essa história de que tudo aquilo fosse a troco de nada.

Conta que esse interesse está na origem do trabalho de pesquisa que anos mais tarde desenvolveria no seu doutorado em Teoria Musical pela Universidade Estadual de Ohio, nos Estados Unidos. Após analisar mais de 303 canções do top 10 das listas norte-americanas entre 1986 e 2015, chegou à conclusão de que as introduções das canções, esses ambientes e desenvolvimentos instrumentais que preparavam nossos ouvidos até a entrada da voz, tinham minguado em média 78% num período de apenas 30 anos. Em 1986, a voz soava, em média, ao redor de 23 segundos depois do início da faixa. Em 2015, aos 5 segundos o cantor já estava dando a nota.

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Um exemplo: em How Will I Know, de Whitney Houston, canção de 1986, a voz aparecia 40 segundos depois dos instrumentos; em Happy, de Pharrell Williams, de 2014, já era ouvida aos 2 segundos. Nossa impaciência já não tolera floreios. É preciso ir direto ao assunto, ou o ouvinte aperta o botão e passa a outra canção. A maneira como ouvimos música está mudando em decorrência das novas tecnologias, sim; mas essa irrupção está afetando inclusive a maneira como as canções são compostas hoje em dia.

Léveillé Gauvin comprovou também que os títulos das músicas, que antes tinham em média 3,1 palavras, agora têm só 2,2, e que seu andamento se acelerou em 4%. Em Drawing The Listener Attention In Popular Music: Testing Five Musical Features Arising From The Theory of Attention Economy (“atraindo a atenção do ouvinte na música popular: testando cinco aspectos musicais decorrentes da teoria da economia da atenção”), publicado em março de 2017, ele destacava que nosso modo de consumir música se alterou em dois aspectos cruciais: temos acesso imediato a um imenso catálogo de canções, e podemos saltar rapidamente de uma canção para outra.

Ana Galvañ

Há 30 anos, quando a gente colocava um LP na vitrola, ignorar uma canção significava que restavam apenas 11 para ouvir. O disco podia se riscar facilmente se ficássemos mexendo na agulha; como era preciso rentabilizar o investimento, os discos ganhavam novas chances, eram ouvidos várias vezes. Hoje, com milhões de canções disponíveis com um toque na tela do celular, pular de uma para outra virou um esporte global. “As canções têm que chamar a atenção do ouvinte rapidamente”, comenta Gauvin falando por telefone de Montreal. “Os primeiros segundos do tema devem ser representativos do estilo da música; se for rock, é preciso mostrar rock desde o começo”.

A música, água corrente

Nosso modo de escutar música mudou. Em 1986, passeávamos pelas ruas com os fones de ouvido ligados a um walkman ou discman (os mais avançados), ouvindo fitas cassete — que representavam mais de metade do mercado, 53,9% das vendas musicais — ou CDs — um formato então emergente que começava a pisar nos calcanhares do vinil, alcançando 20% das vendas, segundo um estudo da Digital Music News publicado em 2014.

“Se a música for consumida em porções de apenas um ou dois minutos, é como uma dose rápida de uma droga.”, diz o neurocientista norte-americano John R. Iversen

Passados 32 anos, consumimos música através do celular. As plataformas de streaming tipo Spotify ou Apple Music estão se impondo: 85% dos adolescentes de 13 a 15 anos usam serviços de streaming, segundo os dados da Federação Internacional da Indústria Discográfica (IFPI, na sigla em inglês), que representa as gravadoras em escala mundial. Além disso, uma parte significativa desses jovens paga por ela: dos 67% que acessam plataformas de streaming, 37% usam o serviço pago, para evitar a publicidade. Parece que a pirataria anda em baixa hoje em dia.

Em vez de ouvirmos álbuns, passamos a escutar canções. Do som analógico para o digital. Do reconfortante crepitar da agulha para o esterilizado MP3. Vamos capturando canções que escutamos por aí ativando aplicativos tipo Shazam, que nos dizem imediatamente que música estamos ouvindo. Tudo mudou.

Satisfação para o cérebro

“A mudança é que o conceito de ‘cool’ morreu. A Internet o matou”, diz o estudioso Stephen Witt

Essa voracidade em saltar para a próxima faixa responde à busca por satisfação emocional rápida. O neurocientista norte-americano John R. Iversen conta que, quando ouvimos música, vamos construindo expectativas. “O cérebro trabalha constantemente com o som, fazendo previsões para compreendê-lo”, conta numa sala da sociedade de cultura e recreação Casino de Madrid, durante uma visita à capital espanhola para proferir uma conferência sobre o papel da música como elemento transformador do cérebro, organizada pelo Trinity College London. “O que acho que distingue a geração playlist é que ela pode passar rapidamente de uma canção da qual não gosta para outra”, observa Iversen, de 50 anos, professor da Universidade de Califórnia em San Diego e baterista amador, o que o levou a estudar a maneira como nosso cérebro percebe os ritmos. “Hoje ocorre uma perda da atenção sustentada, da capacidade de perceber uma ideia musical longa. Se a música for consumida em porções de apenas um ou dois minutos, é como uma dose rápida de uma droga.”

Uma canção atrás da outra

Ouvimos mais música do que nunca. Plataformas como Apple Music dão acesso a 50 milhões de canções, segundo sua publicidade; o Spotify, a mais de 40 milhões. O tema mais escutado nesta última, Shape Of You, de Ed Sheeran, superou um bilhão de execuções, segundo dados da companhia, que diz contar com 191 milhões de usuários ativos.

Hoje em dia, além disso, as canções nos são servidas uma atrás da outra, sem descanso, sem piedade, como forma de incentivar o consumo. Assim ocorre no YouTube, que na verdade é o lugar onde mais música se ouve: metade do consumo on-line se dá nesta plataforma de vídeos, segundo a IFPI. Seu recorde: o clipe da ultrapopular Despacito, de Luis Fonsi, foi reproduzido mais de cinco milhões de vezes.

Os algoritmos analisam o acervo musical do nosso celular. Nosso histórico, nossas interações (o que saltamos, apagamos, gostamos e desgostamos), o lugar onde estamos, que horas são

“Atualmente, ouvir música é como abrir a torneira e deixar a água escorrer”, diz Stephen Witt, autor de Como a Música Ficou Grátis – O Fim de Uma Indústria, a Virada do Século e o Paciente Zero da Pirataria (Intrínseca). Falando por telefone de Los Angeles, ele explica que essa avalanche de canções que saem do nosso telefone, orquestradas por algoritmos que nos sugerem quais temas escutar, de certo modo fez a música deixar de ser algo especial. “Em termos culturais”, argumenta Witt (New Hampshire, 1979), “a mudança se reflete na morte do conceito de cool, a Internet o matou. No século XX, buscava-se o exclusivo, o difícil de encontrar. Agora todo mundo tem acesso a tudo. Nada mais é cool. Esse conceito foi deslocado pelo da relevância”.

Assistimos à ascensão incontrolável das playlists, as listas de canções. Terceirizamos o processo de seleção musical, deixando-o nas mãos da inteligência artificial. As recomendações agora partem dos algoritmos, fórmulas matemáticas que processam toda a informação que geramos em nossas interações musicais.

Escravos dos algoritmos

Os algoritmos analisam o acervo musical do nosso celular. Nosso histórico, nossas interações (o que saltamos, apagamos, gostamos e desgostamos), o lugar onde estamos, que hora são. Inclusive o contexto no qual nos achamos (correndo, jantando), como faz a plataforma Pandora, aplicativo de streaming musical com 70 milhões de usuários ativos.

“Hoje temos a nosso DJ pessoal [o algoritmo]: ele sabe melhor do que você o que você gosta”, afirma o musicólogo Hubert Léveillé Gauvin

Esses sistemas de recomendação processam dados editoriais das canções como seus títulos e os nomes dos artistas; dados do som, como o timbre da voz, os padrões rítmicos ou a escala; e informação sobre os usuários que ouviram essa música: se alguém gosta de Leonard Cohen e também curte Rufus Wainwright, o algoritmo identifica isso e manda uma canção do segundo para quem está ouvindo o primeiro. É o que explica Emilia Gómez, engenheira de telecomunicações especializada nos sistemas de recuperação da informação musical (“music information retrieval”, em inglês) e presidenta da Sociedade Internacional da Recuperação da Informação Musical (ISMIR, na sigla em inglês), uma comunidade acadêmica que investiga as tecnologias de recomendação, com a colaboração de Spotify, Apple e Amazon Music.

Analisando os instrumentos que soam, o timbre, a melodia, o ritmo, a estrutura da canção, as vozes e o estilo são criados modelos dos gostos de cada pessoa, observa Gómez, por telefone, de Sevilha (Espanha). “Estes sistemas são cada vez mais complexos”, diz, “e as bases de dados, maiores”. De modo que a tecnologia é cada vez mais precisa e melhor. O canadense Gauvin assim o descreve: “Hoje temos o nosso próprio DJ pessoal: ele sabe melhor do que você o que você gosta”.

Essa é a parte boa da equação. A má é que o predomínio das listas criadas pelas plataformas acabe por uniformizar o que escutamos. “Quanto mais gente há nas plataformas, melhor funcionam os algoritmos”, observa Gómez. “Melhor, sobretudo, se você gostar do que a maioria gosta. Quem ouve propostas raras ou minoritárias verá que essa música não é recomendada, porque não há muita gente que a ouça. Assim, reproduz-se o sistema que tínhamos antigamente, quando um só tipo de música se popularizava, a que era recomendada pelo rádio.”

O poder das ‘playlists’

As plataformas configuram listas para que descubramos artistas a cada semana; listas para a sexta-feira, para correr, para procriar, para qualquer estado de ânimo imaginável. Incorporam algumas patrocinadas por marcas comerciais. Exércitos de analistas lutam pela atenção do cliente, trabalham para identificar as novas tendências, para nos conectar com o artista de quem amanhã gostaremos. O conceito do cânone nesta nova era fica sepultado sob os ditames do gosto pessoal.

Ed Sheeran, autor de ‘Shape Of You’, canção que ultrapassou um bilhão de execuções no Spotify.
Ed Sheeran, autor de ‘Shape Of You’, canção que ultrapassou um bilhão de execuções no Spotify.Matt Jelonek (WireImage)

O novo ouvinte que está se configurando, ganhando tudo de mão beijada, é um ser bastante mais preguiçoso do que antes. Trata-se de uma decorrência a mais deste mundo cômodo no qual nos instalamos e que vai crescendo, esse no qual desaparece o esforço para conseguir as coisas, assim como o desfrute que acompanha a busca, a descoberta trabalhada e conseguida.

Isso sim, esse mundo é também o de um acesso a todo tipo de música que era inimaginável há 30 anos; o da facilidade para conhecer novos estilos; que permite escutar artistas que antes não tinham chance de serem ouvidos; que faz crescer a cultura musical.

A revolução dos assistentes musicais

A próxima grande revolução estará associada ao desenvolvimento dos assistentes pessoais tipo Google Home, Amazon Echo ou o Siri da Apple, fenômeno que já pegou com força nos Estados Unidos e deverá crescer ainda mais. “As pessoas fazem buscas cada vez mais informais, do tipo ‘toque os últimos sucessos para mim’, ou ‘coloque-me uma música alegre’”, diz Paul Brindley, cofundador da MusicAlly, uma empresa de marketing e pesquisa do mercado discográfico com sede no Reino Unido. “Isto pode tornar a descoberta casual de música nova um pouco mais complicada.”

"Quem escuta propostas raras ou minoritárias verá que essa música não é recomendada, porque não há muita gente que a ouça", diz Emilia Gómez, engenheira de telecomunicações

Oscar Celma, diretor de pesquisa da Pandora, concorda com essa tendência. “Imagino um futuro de interação com voz”, diz em conversa por telefone de San Francisco, onde trabalha à frente de um exército de 80 engenheiros e musicólogos que procuram refinar as recomendações. “Pediremos ao assistente que nos dê algo com mais ritmo, com mais bateria”, exemplifica.

Em um futuro não muito longínquo, nos deslocaremos num carro autônomo dentro do qual ditaremos ordens a esse assistente que responde a nossas solicitações, mas que, na verdade, estará a serviço desses opacos senhores da Rede, os algoritmos. Ou seja, a serviço de desenvolvedores, de plataformas, de companhias com seus próprios interesses; do lado do dinheiro, digamos.

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