Debra Winger, a estrela de cinema que preferiu desaparecer antes de ficar invisível

Aos 40, a atriz disse “basta” após sentir que era injustamente paga e tratada na indústria de Hollywood. Hoje, quando completa 65, se mantém fiel a essa promessa e, ainda que trabalhe na televisão e no teatro, se orgulha de não ser reconhecida na rua

Debra Winger fotografada em uma filmagem em Los Angeles em 1981Getty Images

Em 2002, Rosanna Arquette dirigiu um documentário em que várias atrizes maduras se reuniam na casa de Melanie Griffith para denunciar a aposentadoria forçada das mulheres de Hollywood após os 40 anos. O chamou de Procurando Debra Winger. O documentário iniciou um diálogo cultural que não acabou desde então e que teve Winger como símbolo: a estrela de cinema que um dia se cansou e, em vez de se queixar da indústria, ousou se retirar e desaparecer em seus próprios termos antes de que outros a invisibilizassem.

Debra Winger (Ohio, 1955) passou sua adolescência em um kibbutz, onde colaborou com o exército israelense, e após voltar aos Estados Unidos sofreu um acidente que a deixou cega e paralisou o lado esquerdo de seu corpo. Durante sua convalescença de um ano, decidiu que caso se recuperasse faria carreira em Hollywood. Ela mesma confessaria ao The Washington Post que essa vocação surgiu porque sua família quase não tinha fotos e vídeos dela: “É como se para o terceiro filho meus pais já estivessem cansados. Quando pequena me assustava por não ter fotos da minha infância porque me fazia sentir inexistente”. De modo que Winger chegou à conclusão de que as câmeras de cinema garantiriam sua identidade. George Cukor, o legendário diretor de Minha Bela Dama, tentou dissuadi-la: “Essa voz... você não sabe cantar, não tem classe”. Seu pai também a alertou que não conseguiria, porque as estrelas eram bonitas. Ela respondeu: “Então não serei uma estrela, serei uma atriz”.

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Desde sua estreia na série Mulher Maravilha, Debra Winger sofreu o choque entre sua disciplina profissional e o que a indústria queria dela. “Pesquisei e estudei os quadrinhos, mas depois cheguei ao set e me diziam ‘Não, não, limite-se a girar sobre si mesma e se transformar em fogo’. Isso não era interpretação, era prostituição, de modo que empreguei todo o meu salário em pagar advogados para que me libertassem daquele contrato”, lembrou na revista Esquire. “Lynda Carter [a protagonista] era um manequim, sua única preocupação era que eu não usasse a mesma sombra de olhos que ela”.

Quando o produtor Robert Evans (O Poderoso Chefão, Chinatown, O Bebê de Rosemary) viu seu teste para Cowboy do Asfalto (1980) exclamou: “não transaria com ela nem com um pau de três metros”. O presidente do estúdio a considerou “judia demais”. Mas o diretor James Bridges insistiu para que lhe dessem o papel. A cena em que Winger monta um touro mecânico passou imediatamente à posteridade do erotismo americano.

Shirley MacLaine, Debra Winger e Jack Nicholson em ' Laços de Ternura'Getty Images

Winger se transformou na atriz que melhor personificava as mulheres dos anos oitenta. “Você vê uma dúzia de Debras todos os dias: garotas de cidade, modernas e preocupadas; mais espertas do que os caras com quem saem; com carros que não arrancam; com apartamentos limpos e vidas desorganizadas; garotas interessantes que não sabem como são bonitas porque sua atração vem de sua energia, de sua aura de possibilidade. Debra Winger tem a presença mais autêntica e cotidiana que já se viu em uma estrela americana”, elogiou o crítico Henry Allen. A crítica Pauline Kael afirmou que Winger era um dos principais motivos para continuar indo ao cinema nos oitenta. A atriz, por sua vez, se queixava de que odiava ir a eventos porque não tinha um personagem para interpretar neles.

Durante a filmagem de A Força do Destino, o produtor Don Simpson (Flashdance, Top Gun) dava comprimidos para que ela retivesse menos líquidos e aparecesse mais magra. Apesar do sucesso do filme, que rendeu a ela sua primeira indicação ao Oscar, a atriz se negou a promovê-lo. Descreveu seu colega Richard Gere como “um muro de tijolos” e ao diretor Taylor Hackford como “um animal” e explicou que o que mais detestava de A Força do Destino era, justamente, a cena que mais emocionava o público: o final com Gere vestido de uniforme resgatando-a nos braços da fábrica em que trabalhava. “Gosto dos finais enigmáticos. Assim que me retiraram nos braços daquela fábrica de merda percebi que não queria voltar a fazer algo assim. Desenvolvi uma alergia aos finais fechados porque nos fazem sentir que a vida terá um clímax”, afirmou. Ela se interessava pelas histórias sobre vidas mundanas, em que a classe média do personagem não fosse um defeito e uma medalha, e sim uma condição intrínseca à sua existência.

Sua inimizade com Shirley MacLaine em Laços de Ternura continua sendo uma das mais mitificadas de Hollywood. A tensão entre seus personagens passou às atrizes e MacLaine contou em sua autobiografia que Winger chegou a levantar a saia e soltar um peido durante uma discussão aos gritos. As crônicas da época apontavam a cocaína como causadora desse histrionismo, mas Winger esclareceu na Vanity Fair, anos depois, que ainda que costumasse consumir (era a Hollywood dos anos oitenta, onde havia mais cocaína nos camarins do que comida nos caterings) nunca culpou a droga por sua volatilidade: “Se esse fosse o problema, teria sido tão fácil como deixar de usá-la”. Quando a filmagem acabou, a atriz se internou em uma clínica de desintoxicação. Quando MacLaine ganhou o Oscar ao que Winger também estava indicada, elogiou o “turbulento brilhantismo” de sua colega antes de exclamar: “Eu mereço o prêmio!”. Winger não achou graça nenhuma, de modo que no dia seguinte MacLaine enviou para ela uma camiseta que dizia “Turbulenta significa brilhante”. “Sei!”, respondeu Winger no Los Angeles Times. “Se você precisa explicar não fale. Não poderia ter se limitado a dizer ‘obrigado vadia?’ No começo fiquei feliz por ela ter vencido porque assim ficaria quieta por alguns dias, mas de repente começou a comemorar seu aniversário de 50 anos o tempo todo”.

Debra Winger não tinha problemas em confessar que tinha mais amigos do que amigas (entre eles, Jack Nicholson) porque considerava que as mulheres não eram confiáveis. Como consequência, se obstinava em se comportar segundo as regras permitidas somente aos homens em Hollywood: viver depressa, fazer o que tinha vontade, dizer o que pensava. “Nos oitenta, se um ator ia ao camarim se assumia que estava se preparando para uma cena intensa. Se uma atriz fazia o mesmo, se assumia que estava menstruada”, lamentou. Mas isso não significava que se dava bem com todos os homens.

Debra Winger e Robert Redford em ' Perigosamente Juntos'. Getty Images

Winger odiou cada minuto da filmagem de Perigosamente Juntos ao ponto de, mesmo enquanto o promovia, dizer ao The New York Times que haviam prometido a ela uma comédia sofisticada na tradição de A Costela de Adão, mas acabou sendo um filme de ação genérico que “chacoalhava os espectadores até caírem seis dólares do bolso”. Acrescentou que se sentiu como “um pão francês em uma sacola de pão de forma”. “Recebi o papel que seria de Bill Murray, mas nunca planejei fazer um filme pirotécnico. Imagine minha consternação ao me encontrar pulando no East River enquanto pensava em A Costela de Adão”.

Uma noite, esperando para começar a filmar, gelada até os ossos, perguntou ao seu colega Robert Redford como suportava aquelas condições subumanas. Ele respondeu que amenizava as esperas calculando o dinheiro que ganhava enquanto não fazia nada. Winger fez os cálculos e percebeu que, apesar de ser a atriz mais bem paga do momento, para ela não compensava tanto como para Redford. Ao acabar a filmagem a atriz demitiu sua agência de representação CAA, a mais poderosa de Hollywood. Durante os anos seguintes sua desmotivação a levou a recusar papéis que lançariam carreiras para outras atrizes: Veludo Azul, Sintonia de Amor, Atração Fatal, Ghost e Uma Equipe Muito Especial, que aceitou, mas abandonou quando soube que Madonna estaria no elenco. Antes de cada filmagem passava meses se preparando mentalmente para o personagem e ao terminar ia para a estrada e dirigia durante semanas.

Sua relação com a imprensa soltava faíscas graças ao conflito que ela representava: os veículos de comunicação ficavam loucos com sua franqueza, inédita nas estrelas de Hollywood e, ainda que ela não gostasse de dar entrevistas, não podia evitar gerar manchetes incendiárias. Winger se negou a atender os jornalistas que visitaram o set de O Céu Que Nos Protege, mas fez a eles a seguinte observação: “John [Malkovich] e Bernardo [Bertolucci] já falarão com vocês, porque são prostitutas da imprensa; John quer ser um modelo de passarela”. Sua terceira indicação ao Oscar em 1994 por Terra das Sombras prometia uma maturidade esplêndida para uma mulher que, apesar de sua má reputação profissional, continuava sendo uma das atrizes mais prestigiosas dos Estados Unidos. Uma das poucas que conseguia irradiar magnetismo parecendo uma mulher normal. Mas em 1995 sua data de validade expirou, aos 40 anos, e decidiu que já havia tido o suficiente.

Três semanas depois de começar a filmagem de Divine Rupture, cuja produção havia colocado em polvorosa a aldeia irlandesa de Ballycotton, os produtores sumiram com o dinheiro e toda a equipe, incluindo Marlon Brando (que se assegurou de receber um milhão de dólares adiantado) e Johnny Depp, arrumou as malas e foi embora no dia seguinte. Debra Winger preferiu ficar e pagar do seu bolso todos os aldeãos que haviam trabalhado na filmagem. Então dirigiu pela Irlanda com seu segundo marido (o ator Arliss Howard; Winger antes foi casada com Timothy Hutton, com quem tem um filho, entre 1986 e 1990) e durante uma parada desceu do carro, ficou de pé pensativa e exclamou: “Acabou, estou farta”.

Debra Winger com Timothy Hutton, com quem tem um filho e foi casada entre 1986 e 1990. Getty Images

Ao voltar aos Estados Unidos assinou sua saída do sindicato de atores e colocou o documento em seu espelho para vê-lo todos os dias. “Há anos queria parar”, contou ao New York Magazine em 2001. “Cansei de escutar a mim mesma dizendo que queria abandonar. De começar as entrevistas dizendo: ‘Odeio as entrevistas!’. Então vá. Parei de ler roteiros e não me importei mais. Não saí de Hollywood, caminhei para outro lugar. Sabia exatamente para onde ia”. Deixar de ser atriz, interpretando vidas de outras mulheres, foi a única forma que encontrou para começar a viver sua própria vida autêntica.

Passou a viajar, tomar conta de sua fazenda, ser mãe para seus três filhos, dar um curso em Harvard e trabalhar em algumas peças de teatro com seu marido. “Nada é comparável à libertação que senti. Sem fazer castings, sem esperar ligações, sem depender do julgamento dos outros”, disse. Winger parou de ler os poucos roteiros que recebia e mudou o número do telefone. Estava tão feliz indo trabalhar de bicicleta que chorava durante todo o trajeto. “Minha própria vida era mais apaixonante do que qualquer história que pudesse viver nas telas”.

Debra Winger em uma festa realizada em 2018 em Nova York.Getty Images

Hoje, com 65 anos recém-completados, Winger está empenhada em desmitificar Hollywood e a si mesma, começando por sua condição de defensora da causa das atrizes maduras (Arquette nunca a avisou de que o documentário se chamaria Procurando Debra Winger): “Eu e Michelle Pfeiffer temos a mesma idade. Começamos neste negócio juntas, mas agora parece minha irmã mais nova. Como algo assim pode acontecer? Todo mundo assume que você quer parecer mais jovem. Ninguém sequer questiona. O fotógrafo e o editor de foto assumem que você quer apagar tudo de sua cara”. Winger, que falou de discriminação sexista nos anos oitenta quando mais ninguém ousava, hoje se nega a sentir pena de suas colegas. “As pessoas que ganham montes de dinheiro por seu trabalho deveriam se calar. Se você quer fazer um lifting faça um lifting, mas depois não saia por aí explicando que o fez por pressão”, disse ao The Independent.

Winger encoraja as atrizes maduras a ter aspecto de mulheres maduras em vez de aparentar 30 anos até os 70 com o que ela chama de “rostos costurados”. “Tenho certa compaixão por mulheres como Nicole Kidman, a quem evidentemente olharam o rosto e o cortaram como se fosse um objeto. Eu não quero ser a defensora das rugas, mas você se transforma nisso se fala abertamente sobre o tema. A sociedade torna invisíveis as mulheres de certa idade. Lembram de nossas mães? Lembram como as achávamos inconvenientes? Na primeira etapa da minha vida levantei a tocha das mulheres ferozes e espertas. E agora sinto que posso interpretar as mulheres invisíveis”, resumiu. Debra Winger afirma que ninguém a reconhece na rua, porque também não a reconheciam quando era a atriz mais famosa de Hollywood. Seu físico comum foi seu melhor aliado dentro e fora das telas e ela mesma definiu seu rosto como “a cara que não importa”.

Debra Winger saiu de seu retiro para alguns filmes (O Casamento de Rachel) e séries de televisão (In Treatment, The Ranch). Mas sua carreira não voltou a decolar, em parte, porque o que mais interessa à cultura sobre Debra Winger é sua reputação de atriz impossível e seu desaparecimento em 1995: ela foi a única que se atreveu a dar o exemplo. O maior símbolo que Debra Winger pode representar hoje é a incapacidade de Hollywood para criar personagens à altura de seu talento. “As pessoas continuam me fazendo perguntas como se eu fosse Yoda, como se tivesse as respostas sobre a maturidade feminina nessa indústria. Mas eu não tenho as respostas”, lamentou em 2010. “Só sei que sou uma das pessoas mais felizes que conheço, mas isso pode ser porque não conheço muita gente”. Debra Winger detesta os desenlaces fechados, mas por fim ela encontrou seu próprio final feliz. “Meu único conselho, se envelhecer os preocupa, tenham menos espelhos em casa”.

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