“A inocência termina quando arrancam da pessoa a ilusão de que ela gosta de si mesma”
Leia um dos ensaios do livro ‘Rastejando até Belém’, de Joan Didion, publicado no Brasil pela Editora Todavia, com tradução de Maria Cecilia Brandi
Certa vez, em plena estação seca, escrevi com letras enormes, cruzando duas páginas de um caderno, que a inocência termina quando arrancam da pessoa a ilusão de que ela gosta de si mesma. Embora agora, alguns anos mais tarde, eu me admire que uma mente em conflito consigo própria tenha, todavia, feito um registro minucioso de todos os seus tremores, recordo com uma clareza constrangedora o sabor particular daquelas cinzas. Era uma questão de amor-próprio extraviado.
Eu não tinha sido escol...
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Sobre o amor-próprio
Certa vez, em plena estação seca, escrevi com letras enormes, cruzando duas páginas de um caderno, que a inocência termina quando arrancam da pessoa a ilusão de que ela gosta de si mesma. Embora agora, alguns anos mais tarde, eu me admire que uma mente em conflito consigo própria tenha, todavia, feito um registro minucioso de todos os seus tremores, recordo com uma clareza constrangedora o sabor particular daquelas cinzas. Era uma questão de amor-próprio extraviado.
Eu não tinha sido escolhida pela Phi Beta Kappa. Esse fracasso não poderia ter sido mais previsível ou menos ambíguo (eu simplesmente não cumpria os critérios requeridos), mas isso me deixou desconcertada; de alguma maneira eu me imaginava como uma espécie de Raskólnikov acadêmico, curiosamente isenta das relações de causa e efeito que atrapalhavam os outros. Embora até a garota mal-humorada de dezenove anos que eu era devesse ter reconhecido que a situação carecia de uma real magnitude trágica, o dia em que não entrei para a sociedade honorária Phi Beta Kappa marcou o fim de alguma coisa, e a palavra que define essa coisa pode muito bem ser “inocência”. Perdi a convicção de que os semáforos sempre estariam verdes para mim, a agradável certeza de que aquelas virtudes um tanto passivas, de cujos méritos estava convencida quando criança, me garantiriam automaticamente não só a chave da Phi Beta Kappa, mas também a felicidade, a honra e o amor de um homem bom; perdi certa fé comovente no poder totêmico das boas maneiras, do cabelo arrumado e da competência comprovada pelo teste Stanford-Binet. O meu amor-próprio estava afixado a esses amuletos tão duvidosos, e naquele dia me peguei com a apreensão perturbadora de quem se deparou com um vampiro sem ter um crucifixo à mão.
Embora voltar a atenção para si seja um negócio no mínimo desconfortável, um pouco como tentar cruzar uma fronteira com documentos emprestados, agora me parece ser a única condição necessária para construir o verdadeiro amor-próprio. O autoengano continua sendo o engano mais difícil, a despeito da maioria das nossas platitudes. Os truques que funcionam com os outros não servem de nada no beco luminoso onde alguém marca encontros secretos consigo mesmo: nenhum sorriso sedutor e nenhuma bela lista de boas intenções vão funcionar aqui. A pessoa embaralha suas cartas marcadas de forma espalhafatosa, porém em vão: a gentileza pelo motivo errado, o triunfo visível que não envolveu esforço real, o ato aparentemente heroico do qual sentiu vergonha. O fato triste é que o amor-próprio não tem nada a ver com a aprovação dos outros que, afinal de contas, são enganados com bastante facilidade; não tem nada a ver com a reputação que, como disse Rhett Butler a Scarlett O’Hara, é algo de que pessoas corajosas podem abrir mão.
Abrir mão do amor-próprio, por outro lado, é como ser o espectador relutante e único de um interminável documentário que detalha seus próprios fracassos, os reais e os imaginários, com novas cenas emendadas a cada exibição. Tem o copo que você quebrou de raiva, a dor na cara de X; e agora olha só essa cena, da noite em que Y voltou de Houston, veja a asneira que você fez. Viver sem amor-próprio é passar uma noite acordada — em que o leite morno, o fenobarbital e a mão dormente sob a colcha estão fora do alcance —, somando os pecados por ação e omissão, as traições de confiança, as promessas sutilmente quebradas, os dons irrevogavelmente desperdiçados por preguiça, covardia ou descuido. Por mais que adiemos, no fim acabamos deitados sozinhos naquela cama notoriamente desconfortável, aquela que arrumamos para nós mesmos. Se dormimos nela ou não, depende, é claro, se nos respeitamos ou não.
Reclamar que pessoas bastante improváveis, pessoas incapazes de se amar, parecem dormir com facilidade é não entender nada da questão, assim como não entende nada quem acha que o amor-próprio necessariamente tem a ver com estar precavido, faça chuva ou faça sol. Há uma superstição segundo a qual o “amor-próprio” é uma espécie de encantamento de serpentes, algo que mantém quem dele dispõe trancado em um Éden imaculado, longe de camas estranhas, conversas ambivalentes e problemas em geral. Mas não é assim que funciona. O amor-próprio não tem a ver com o aspecto das coisas, ele diz respeito a uma paz distinta, uma reconciliação privada. Embora Julian English, o desleixado suicida de Encontro em Samarra, e Jordan Baker, a desleixada e desonesta incurável de O grande Gatsby, pareçam candidatos igualmente improváveis ao amor-próprio, Jordan Baker o tinha, mas Julian English, não. Tendo um talento para a acomodação, mais frequente em mulheres do que em homens, Jordan adotou suas próprias medidas, criou sua própria paz e evitou ameaças a essa paz. “Detesto pessoas desleixadas”, ela disse a Nick Carraway. “Com a presença de duas delas pode haver um acidente.”
Pessoas dotadas de amor-próprio, como Jordan Baker, têm a coragem de seus erros. Sabem o preço das coisas. Se decidem cometer adultério, não saem correndo em seguida num acesso de má consciência, para receber a absolvição das partes prejudicadas; nem se queixam indevidamente da injustiça, do imerecido constrangimento de serem consideradas corresponsáveis. Em suma, pessoas que têm amor-próprio demonstram certa dureza, uma espécie de audácia moral; apresentam o que antes era chamado de caráter, uma qualidade que, embora valorizada em sentido abstrato, às vezes perde terreno para outras virtudes negociáveis de forma mais imediata. A medida de que esse prestígio é escorregadio é a tendência de pensar em caráter como algo vinculado apenas a crianças comuns e a senadores dos Estados Unidos derrotados na campanha à reeleição, de preferência nas primárias. No entanto, o caráter — a disposição de aceitar a responsabilidade pela própria vida — é a fonte de onde brota o amor-próprio.
Amor-próprio é algo que nossos avós conheciam bem, quer o tivessem, quer não. Desde a juventude estava incutida neles certa disciplina, a consciência de que para viver cada um faz coisas que não exatamente quer fazer, deixa medos e dúvidas de lado, contrapõe confortos imediatos à possibilidade de confortos mais amplos, até intangíveis. A eles, no século XIX, era admirável, mas não notável, que Gordon Paxá vestisse um terno branco limpo e protegesse Khartoum contra Mahdi; não lhes parecia injusto que a maneira de libertar terras na Califórnia envolvesse morte, dificuldade e sujeira. Num diário escrito no inverno de 1846, uma emigrante de doze anos chamada Narcissa Cornwall observou com frieza: “O Pai estava ocupado lendo e não reparou que a casa estava ficando cheia de índios desconhecidos até que a Mãe tocou no assunto”. Mesmo sem ter nenhuma pista do que a Mãe disse, é quase impossível não se impressionar com todo o incidente: o pai lendo, os índios entrando, a mãe escolhendo palavras que não fossem alarmantes, a criança registrando o evento devidamente e notando ainda que aqueles índios em particular não eram, “para nossa sorte”, hostis. Os índios eram simplesmente parte do donnée.
De uma maneira ou de outra, os índios sempre o são. Mais uma vez, a questão é reconhecer que qualquer coisa que vale a pena tem seu preço. Pessoas que se respeitam estão dispostas a aceitar o risco de que os índios sejam hostis, de que o empreendimento vá à falência, de que a relação não venha a ser do tipo em que todo dia é dia de festa porque você está casado comigo. Elas estão dispostas a investir algo de si mesmas. Podem não jogar, mas quando jogam sabem o que está em jogo.
Esse tipo de amor-próprio é uma forma de disciplina, um hábito mental que não se pode fingir, mas que se pode desenvolver, treinar, incentivar. Uma vez me sugeriram, como antídoto para o choro, enfiar a cabeça em um saco de papel. Parece que há uma razão fisiológica para isso, tem a ver com o oxigênio. Mas o efeito psicológico por si só é incalculável. Com a cabeça metida numa sacola de mercado, fica extremamente difícil continuar se considerando especial como a Cathy em O morro dos ventos uivantes. Há casos parecidos relacionados a todas as pequenas disciplinas, desimportantes em si mesmas. Imagine manter qualquer tipo de arroubo, comiserativo ou carnal, sob uma ducha fria.
Mas essas pequenas disciplinas são valiosas apenas na medida em que representam outras maiores. Dizer que a batalha de Waterloo foi vencida nos campos esportivos de Eton não equivale a dizer que Napoleão poderia ter sido salvo por um curso intensivo de críquete; oferecer jantares de gala na floresta tropical não teria nenhum sentido se a chama tremeluzente das velas no cipó não evocasse disciplinas mais fortes e profundas, valores há tempos instilados. É uma espécie de ritual, que nos ajuda a lembrar quem e o que somos. E para se lembrar, é preciso antes ter sabido.
Ter tino do valor intrínseco que constitui o amor-próprio é, potencialmente, ter tudo: a capacidade de discernir, de amar e de ficar indiferente. Carecer desse tino é ficar trancado dentro de si, paradoxalmente inapto tanto para o amor quanto para a indiferença. Se não temos amor-próprio, por um lado somos forçados a desprezar aqueles que têm escassos recursos para se relacionar conosco, que percebem tão pouco que não enxergam nossas fraquezas mortais. Por outro lado, somos subjugados por todos aqueles que encontramos, e ficamos estranhamente determinados a vivificar — já que nossa autoimagem é insustentável — as falsas noções que eles têm de nós. Nos lisonjeia pensar nessa compulsão de agradar aos outros como sendo um traço atraente: a essência da empatia imaginativa, a prova da nossa boa vontade em dar. É claro que farei o papel de Francesca quando você for Paolo, e o de Helen Keller quando quem quer que seja interpretar Annie Sullivan: nenhuma expectativa é inapropriada, nenhum papel é tão absurdo. À mercê daqueles que não merecem o nosso respeito, desempenhamos papéis fadados ao fracasso antes de estrelá-los, e cada derrota gera um novo desespero ante a urgência de adivinhar e atender à próxima demanda que nos for feita.
Trata-se do fenômeno às vezes chamado de “alienação de si”. Nos estágios avançados, não atendemos mais o telefone, porque alguém pode querer alguma coisa; e a ideia de que poderíamos dizer não sem nos afogar em autorrepreensão é estranha a este jogo. Todo encontro exige muito, dá nos nervos, drena o desejo; e o espectro de algo tão pequeno quanto uma carta não respondida desperta uma culpa tão desproporcional que respondê-la se torna inviável. Dar às cartas não respondidas o peso adequado, nos libertar das expectativas dos outros, nos entregar de volta a nós mesmos — aí reside o poder imenso e singular do amor-próprio. Sem ele, pode-se acabar descobrindo a última volta do parafuso: você foge para encontrar a si mesmo, mas acaba chegando a uma casa vazia.
1961
Joan Didion é um ícone do jornalismo literário norte-americano, autora de cinco romances e dez livros de não ficção, entre eles Rastejando até Belém (Editora Todavia, 2012), publicano no Brasil com tradução de Maria Cecilia Brandi (240 páginas).
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