As melhores séries de 2020

Os jornalistas de cultura e televisão do EL PAÍS analisam as principais produções televisivas do ano

O melhor de 2020

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El País
Josh O'Connor e Emma Corrin como o Príncipe Charles e a Lady Di na quarta temporada de 'The Crown'.
Josh O'Connor e Emma Corrin como o Príncipe Charles e a Lady Di na quarta temporada de 'The Crown'.Des Willie (EL PAÍS)
The Crown
Netflix

A série criada e escrita por Peter Morgan na Netflix permanece em nível de excelência com uma quarta temporada que entra nos anos oitenta da Grã-Bretanha através da família real. Nesta ocasião, a rainha Elizabeth II de Olivia Colman teve de dividir os holofotes com a Lady Di de Emma Corrin e a Margaret Thatcher de Gillian Anderson, em uma interpretação tão próxima da realidade que chega a causar admiração. O trio de mulheres está no centro de uma das melhores temporadas da série, ao lado de um príncipe Charles interpretado por Josh O’Connor, que provocou irritação em Buckingham e arredores. A produção luxuosa e os roteiros bem cuidados, que constroem uma ficção maravilhosa a partir de acontecimentos reais, permitem que um elenco de primeira linha brilhe, deixando seus papéis no ponto mais alto: na próxima temporada o elenco será renovado para refletir a passagem do tempo, como já foi feito na terceira. O nível está mais alto do que nunca. Por Natalia Marcos.

Michaela Coel Podria destruirte
Michaela Coel, em 'I may destroy you'Laura Radford
I may destroy you
HBO

Arabella Essiedu é estuprada duas vezes, talvez mais. Não está claro como aconteceu, pelo menos no princípio. Esta jovem escritora que surgiu no Twitter acorda um dia com as imagens borradas da noite anterior, nas quais em vez de se fechar para terminar o livro que deve aos seus editores, vai para uma noitada: vê o rosto de um homem, distorcido, que resfolega enquanto movimenta os quadris. É difícil para ela aceitar; não é uma imagem, mas uma lembrança. Alguém a drogou e a estuprou naquela noite. Se essa história tivesse sido escrita por qualquer um, seria o drama que se lê no papel. Mas é assinada (e produzida, estrelada e codirigida) por Michaela Coel, ganense criada em Londres, alguém com talentos únicos e multifacetados, especialmente para misturar gêneros e tonalidades. Ao atuar ela não se esquiva de sua capacidade para a comédia física, o que só agrava o drama: sua Arabella é um cervo arisco, uma luz sombria, um palhaço triste. Depois do estupro, o mundo é outro. É um lugar dividido entre agressores e protetores (e no caso de um amigo gay, as duas coisas dependendo do dia). O prazer é uma atividade de risco. Trauma, bagagem emocional e catalisador da vida ao mesmo tempo. É o mundo do Me Too, e Coel, que sofreu uma agressão sexual semelhante na vida real, o retrata com grandes pinceladas e incisões, com sangue e água oxigenada, ou seja, à perfeição. Por Tom C. Avendaño.

O Baby Yoda, na segunda temporada de 'The Mandalorian'.
O Baby Yoda, na segunda temporada de 'The Mandalorian'.Lucasfilm Ltd. (EL PAÍS)
The Mandalorian
Disney +

Que a Disney está espremendo o universo de Star Wars talvez para além de suas possibilidades (e da paciência do público) é uma obviedade. Que no cinema ela falhou no que se refere à qualidade, também. Mas em meio a toda essa maquinaria de fazer dólares, a série criada por Dave Filoni e Jon Favreau atingiu o equilíbrio perfeito na força, essa energia onipresente e invisível que estabiliza, entre outras coisas, a relação entre e bem e mal. É o produto perfeito para a própria companhia (e seus movimentos de marketing) e para os mais fanáticos pela saga, cheio de surpresas, referências e personagens de outras séries (de animação) da saga, mas também funciona para o espectador leigo, que encontra um conceito que nos últimos tempos parece ter sido desvalorizado e que sempre foi básico no funcionamento da televisão: episódios semanais divertidos, simples na trama (dito a título de elogio), sem complicações. Claro, com meios quase de uma superprodução, o que também ajuda. Por Álvaro P. Ruiz de Elvira.

Cate Blanchett en un instante de Mrs America
Cate Blanchett em Mrs. America
Mrs. America
Fox Premium

Comandada por uma particularmente precisa Cate Blanchett no papel de Phyllis Schlafly, uma ambiciosa política ultraconservadora que preferiu se afastar, ciente de que a batalha no mundo dos homens de seu partido ―o Republicano― estava perdida e ser alguém na luta contra os direitos de seu próprio gênero, Mrs. America revive as figuras-chave das diferentes facções do feminismo norte-americano, de Gloria Steinem a Betty Friedan, e seus fascinantes confrontos ―debates públicos com aspecto de ringues de boxe verbal― na corrida pela aprovação da ERA, a Emenda da Igualdade de Direitos, nos 53 Estados do país. Tão brilhante é a encarnação de cada uma delas ―incluindo a personagem que gira entre os dois mundos e está na origem do melhor capítulo da temporada, o oitavo, Houston, Sarah Paulson― como necessário retrato do momento, pois o inconcebível é por que uma série como Mrs. America não tinha existido até agora. Como é possível que todo tipo de ficção documental tenha sido feita sobre as mais diversas reivindicações e nenhuma jamais tenha parado para contar a história da luta pelos direitos das mulheres? Só por entender como o sistema domestica e explora todos os movimentos que o enfrentam ―políticos de um lado e de outro usaram as feministas e as antifeministas para ganhar votos e depois as abandonaram à própria sorte― e, é claro, pela complexidade da mudança de paradigma que garantiu liberdade à metade da população mundial a série merece um lugar de honra nesta lista. Por Laura Fernández.

Trailer de 'Veneno', no idioma original em espanhol.
Veneno

HBO MAX

Dor e glória tem um final alternativo, que não é aquele último plano de um Almodóvar rodando finalmente seu filme autobiográfico, mas a cerimônia de entrega dos prêmios Goya em janeiro, em que esse mesmo filme autobiográfico levou os principais troféus, o que deu um lustre heroico ao sofrimento do cineasta e protagonista. O mundo real completou então a história na tela. A ficção penetrou na realidade e vice-versa. Veneno teve um percurso semelhante: a história contada pela ficção de Javier Ambrossi e Javier Calvo, a vida da vedete trans Cristina Ortiz, não termina mais com sua morte, no último capítulo. A excelente série espanhola que a mitifica teve um sucesso tão avassalador ―não só na Espanha, mas nos Estados Unidos, onde acaba de estrear― que é impossível ignorar a segunda vida que deu a Ortiz como ícone popular (não só como trans, mas também), um símbolo que examina e redime o pior da Espanha dos anos noventa, ilumina a luta trans de anos anteriores e mostra o caminho para uma geração futura. Este epílogo é indissociável da história contada na tela. Uma série que inventa uma forma tão original de imaginar e filmar a Espanha merecia figurar nesta lista por seus méritos televisivos. Uma série LGTBIQ com tanto alcance, talvez também, por méritos sociais. Uma série que, com esses dois elementos, provocou este final, sem dúvida. Por Tom C. Avendaño.

Uma cena da série espanhola 'Antidisturbios'.
Uma cena da série espanhola 'Antidisturbios'.Movistar + (MOVISTAR)
Antidisturbios
Movistar + (Ainda não estreou no Brasil)

A câmera de Rodrigo Sorogoyen se torna mais um dos policiais da tropa de choque que têm de fazer um despejo em condições difíceis. Uma câmera na mão acompanha esta fictícia Unidade de Intervenção Policial em um cortiço no centro de Madri onde dezenas de pessoas tentam impedir o despejo. A coisa não sai bem, pelo menos na trama. A série da Movistar+ escrita pelo próprio Sorogoyen e por Isabel Peña, por outro lado, é uma das melhores produções do ano. Tomando como ponto de partida a atividade de seis policiais da tropa de choque e a investigação da Corregedoria a partir desse despejo, a história desvenda uma trama de corrupção com diferentes ramificações que uma policial miúda, obstinada e que não suporta que lhe façam armadilhas nem no jogo de tabuleiro Trivial Pursuit tenta esclarecer. Por Natalia Marcos.

Trailer de 'How To with John Wilson', no idioma original, em inglês.
How to with John Wilson
HBO

Se você tivesse de descrever How To With John Wilson para um amigo, talvez a melhor coisa a fazer fosse dizer: “Assista e depois me conte”. Esta série documental é uma das experiências mais engraçadas e criativas da televisão este ano, mas é diferente de tudo que você já viu. É uma lição de vida em que um homem usa Nova York como paleta para falar sobre andaimes, memória ou prepúcios. Tudo isso banhado em uma camada de nostalgia e ternura inesperada em uma produção para rir às gargalhadas. Uma loucura da HBO que tem mais personalidade visual do que a maioria das séries em exibição atualmente. A imagem é o seu roteiro e cada captura vai fazer você se perguntar como conseguiram encaixar tudo para que funcionasse. Então, como você descreveria How To... para um amigo? Muito fácil: John Wilson é o melhor narrador da nossa vida e até a coisa mais insignificante tem um enorme significado. Por Eneko Ruiz Jiménez.

Cena de 'O que fazemos nas sombras'.
Cena de 'O que fazemos nas sombras'.
O que fazemos nas sombras
Fox Premium

Os vampiros vivem entre nós há séculos. E em lugares com tão pouco glamour como Staten Island, bem perto de Nova York, mas não é a mesma coisa... Longe da elegância e da tristeza dos sugadores de sangue de Entrevista com o Vampiro ou da gravidade do mestre Drácula, os vampiros protagonistas desta série, incluindo Colin, um humano que se alimenta não de sangue, mas de sugar a energia daqueles que o rodeiam sendo um chato, representa a humanidade na base de uma boa comédia. Eles são tão lamentáveis e patéticos quanto qualquer um de nós. E a graça desta ficção criada pelos neozelandeses Taika Waititi e Jemaine Clement a partir de seu filme do mesmo nome reside no fato que reconhecemos isso como espectadores. A segunda temporada mostrou excelente maturidade com uma mistura de humor negro simples, situações absurdas (muito na linha de The Office), slapstik e matizes góticos. Por Álvaro P. Ruiz de Elvira.

Trailer de 'Pátria'
Pátria

HBO

O roteirista Aitor Gabilondo diz que Matria seria um bom título alternativo para Pátria, o romance fenômeno e agora série da HBO sobre duas famílias em confronto no País Basco por causa do terrorismo da ETA e suas consequências. Além disso, Fernando Aramburu conta que esse é o nome para o qual sua obra foi traduzida em alguns países escandinavos. Porque, para além das virtudes muito analisadas desta história para retratar uma época dolorosa na Espanha, Pátria é definida por duas mulheres, Miren e Bittori, que estabelecem com seus personagens o claro-escuro de uma sociedade matriarcal. Tudo em Ane Gabarain e Elena Irureta (famosas para quem viu séries em basco; desconhecidas para o resto) é real, desde sua maneira de falar, suas expressões, a maneira como se agarram àquele afeto glacial tão basco quanto o bacalhau ao pil pil [tradicional prato da gastronomia local]. Tudo é tão real que dói. “Um faroeste de mulheres”, disse Gabilondo uma vez sobre Pátria. É muito mais, sim, mas capta isso como ninguém. Por Eneko Ruiz Jiménez.

Cena de 'Normal people'.
Cena de 'Normal people'.
Normal people
Starzplay

Ninguém gosta de Marianne no colégio. Ela é bonita, esperta e faz o que quer, mas algo a predispõe a se deixar pisar pelos outros ou, pelo menos, a viver afastada de tudo o que acontece. Marianne gosta de Connell, e Connell gosta de Marianne, eles se sentem inevitavelmente atraídos, mas ele tem medo de perder seu status, aquele do tipo que, sem deixar de ser um bom aluno, é apreciado pelos rapazes populares, em parte porque estes se aproveitam dele, mas isso não importa porque o que ele quer é fazer parte de algo, não se sentir um esquisitão. Por isso, quando ele começa a dormir com Marianne, finge que nada disso está acontecendo, e ela aceita porque é assim que as coisas funcionam para ela. Marianne tem uma péssima relação com o irmão, uma relação de submissão doentia, uma espécie de sadismo psicológico que alimenta seu isolamento. Mas as coisas mudam quando o casal, que está dolorosamente atraído ―ela quer que ele a ame acima de tudo, ele não pode deixar isso acontecer porque não quer deixar de ser quem é no colégio―, vai para a universidade e começa a se afastar, embora nunca o suficiente, porque o que sentem não lhes permite pensar em outra coisa. Foi difícil, foi complicadíssimo levar para a tela pequena a poderosa intimidade que a prosa de Sally Rooney transmite no livro Pessoas normais, mas o resultado ―que teve a participação da própria autora, e nada menos de uma coreógrafa de cenas de sexo, em que a alta voltagem é marcada pela vulnerabilidade― é brilhante, um marco do deslocamento social da geração pós-millennial (e do jovem canal de streamig Starzplay). Por Laura Fernández.

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