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O advogado judeu que lutou pelas liberdades dos nazistas

Aryeh Neier, fundador do Human Rights Watch, conta por que em 1977 defendeu uma passeata de saudosistas de Hitler diante de vítimas do Holocausto

Juan Carlos Galindo
O líder neonazista Frank Collin (com o braço estendido), em uma manifestação em novembro de 1978 em Saint Louis.
O líder neonazista Frank Collin (com o braço estendido), em uma manifestação em novembro de 1978 em Saint Louis.Bettmann (Bettmann Archive)
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Em abril de 1977, o líder neonazista Frank Collin anunciou que ele e seu grupo de seguidores fariam uma manifestação em Skokie (Illinois), uma próspera e tranquila localidade de 70.000 habitantes, em sua maioria judeus, que abrigava a maior concentração de sobreviventes do Holocausto nos Estados Unidos depois de Nova York. Após uma decisão judicial que os proibia de passearem com suásticas, uniformes e parafernália nazista entre vítimas do genocídio, Collin recorreu à União Americana das Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês) para que defendesse seu direito à liberdade de expressão e manifestação, garantido na Primeira Emenda da Constituição norte-americana.

Aryeh Neier (Berlim, 83 anos) fugiu da Alemanha com seus pais quando era criança e, depois de passarem vários anos como refugiados no Reino Unido, chegaram aos Estados Unidos em 1947. A maior parte da família pereceu nos campos de extermínio. Ativista das liberdades civis e direitos humanos desde sua época de estudante secundarista, Neier presidia a ACLU naquele momento e aceitou o caso sem hesitar. “Acho que me lembro bem de tudo, talvez tenha esquecido algumas coisas, mas o que aconteceu eu tenho gravado”, rememora por telefone, com voz orgulhosa, da sua casa em Nova York. “Nunca me arrependi, sempre acreditei que estava fazendo o certo. Skokie teve um grande impacto no conceito que a opinião pública tinha sobre a defesa da liberdade, e com o tempo cada vez mais gente nos Estados Unidos e talvez em algum outro lugar achou que acertamos.”

Defender os nazistas sendo judeu

“O direito de se reunir e falar livremente e sem necessidade de autorização deveria ser incontestável”, dizia o primeiro relatório da ACLU, em 1920. Entretanto, os habitantes de Skokie, memória viva do assassinato de seis milhões de judeus, se rebelavam ao grito de “Nunca mais” e não compreendiam a postura desta organização. A decisão de Neier desencadeou uma tempestade social, pressões financeiras sobre a ACLU (que se sustentava graças às mensalidades dos sócios), um intenso debate midiático e um processo judicial que o ativista, fundador depois da Human Rights Watch, contou em Defending My Enemy: American Nazis in Skokie, Illinois, and the Risks of Freedom (Defendendo meu inimigo: nazistas norte-americanos em Skokie, Illinois, e os riscos da liberdade, inédito no Brasil), que o Instituto Berg publica agora publica em espanhol, com tradução de Nuria Brufau.

Aryeh Neier, em seu escritório em 2019.
Aryeh Neier, em seu escritório em 2019.Jakob Gatzka

O relato tem uma forte carga simbólica, uma vez que aqueles nazistas norte-americanos eram uma força extravagante e irrelevante em termos de representação política e distribuíam tanto ódio entre suas facções como contra os outros. O que estava em jogo em Skokie ia muito além. Assim como seu admirado John Milton ―um dos grandes guias morais da sua luta, junto com Hannah Arendt e a juíza Ruth Bader Ginsburg, com quem colaborou estreitamente― Neier acreditava que, em igualdade de condições, a verdade triunfaria sempre. Daí que era preciso deixar cada um dizer o que quisesse, por mais que doesse. “Não estou tão seguro hoje em dia de que a verdade prevaleça sempre contra o mal”, confessa com pesar quando as redes sociais, as fake news e a cultura do cancelamento surgem na conversa.

Neier traça em seu livro, além disso, um preciso desenho da história da luta pela liberdade de expressão no mundo anglo-saxão ―das leis contra a difamação na Inglaterra de Elizabeth I até o século XX nos Estados Unidos―, para provar que os argumentos contra as liberdades dos nazistas de Skokie eram os mesmos que foram usados durante, por exemplo, os anos mais sombrios da repressão macartista, e chega assim a uma conclusão clara: “A história é eloquente: a liberdade dos nossos inimigos deve ser defendida se quisermos conservar a nossa”. “Acredito”, prossegue agora na entrevista, como se fosse uma ampliação daquele texto, “que esse é um dos grandes motivos para defender a liberdade de expressão, porque sempre há mais possibilidades de que aqueles que têm menos poder político sejam as vítimas de qualquer proibição deste direito. Para as pessoas é vital poder denunciar os abusos que sofrem”.

Suásticas e emendas

“E eu, sendo judeu, como posso me negar a defender a liberdade, mesmo que para os nazistas?”, resume Neier em seu ensaio. Embora na tradição europeia sobre os crimes de ódio a postura deste advogado seja mais complicada, nos Estados Unidos contava com um forte aparato legal por trás. A Suprema Corte de Illinois deixou isso claro em sua sentença de 27 de janeiro de 1978 sobre Skokie, em seu trecho sobre a suástica e as manifestações com uniformes militares: “A Primeira Emenda constitucional ampara a liberdade inclusive de defender que o Governo possa ser deposto mediante o uso da violência (...). Portanto, a proibição de um símbolo que parece repugnante com vistas a uma ‘tradição’ que todo norte-americano tem a liberdade de rejeitar e criticar publicamente é claramente inconstitucional”.

Defending My Enemy se tornou um texto fundamental quando do seu lançamento, em 1979. “Há nas ações de Neier uma coragem e uma determinação forjadas na condição de refugiado, como o foram também Raphael Lemkin e Fritz Bauer. Em seu legado encontramos disciplina, obediência, inteligência e humanismo, e sobretudo uma maneira de inovar e pôr em prática os paradigmas de liberdade que os direitos humanos representam. Para Neier, defender o direito à liberdade de expressão do partida nazista dos Estados Unidos representou a responsabilidade de estar à altura dos ideais da democracia e do Estado de direito”, afirma Joaquín González, codiretor do Instituto Berg.

Em 9 de julho de 1978, depois de 16 meses de polêmicas e batalhas judiciais, um punhado de nazistas se manifestou no parque de Marquette (Chicago). Era o lugar habitual para a apresentação de sua parafernália, e preferiam ficar por lá a ir até Skokie, uma localidade menor, e que só usaram para se fazerem notar depois que um juiz de primeira instância os proibiu de se concentrarem no Marquette. Depois, o movimento seguiu na indigência intelectual e voltou para a escuridão social, o maior triunfo para Neier e os defensores radicais da liberdade do inimigo.

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