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78 anos de prisão para os acusados pelas mortes na boate Kiss, “para que nunca se repita”

A pena mais alta, de 22 anos e seis meses, coube ao sócio administrador da casa de shows, Elissandro Spohr. Um habeas corpus preventivo evitou que os quatro condenados pela morte de 242 pessoas fossem presos ao fim do julgamento

Fotos das vítimas do incêndio na Boate Kiss, expostas do lado de fora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Fotos das vítimas do incêndio na Boate Kiss, expostas do lado de fora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.Juliano Verardi
Marcelo Soares
São Paulo -

Os quatro réus no caso do incêndio da boate Kiss foram condenados pelo tribunal do júri, por homicídio com dolo eventual. Seriam conduzidos à prisão logo após a leitura da sentença, mas um habeas corpus preventivo concedido a um dos acusados evitou que fossem imediatamente presos. Na sentença, o juiz Orlando Faccini Neto enfatizou a necessidade de penas para sinalizar que a sequência de erros que levou à tragédia não deve se repetir.

“No caso de perda de entes, como no presente, a pena criminal há de comunicar aos familiares o grau de respeito que lhes devota o Estado”, disse o juiz Orlando Faccini Neto em sua sentença. A tragédia matou 242 pessoas e deixou outros 636 sobreviventes com variados graus de sequelas, incluindo perda de mobilidade e problemas respiratórios.

As penas somam 78 anos. Elissandro Spohr, sócio administrador da boate, foi condenado a 22 anos e 6 meses de prisão; Mauro Hoffmann, sócio financeiro, a 19 anos e meio; Marcelo de Jesus dos Santos, cantor da banda Gurizada Fandangueira, e Luciano Bonilha Leão, produtor de palco do grupo, foram condenados a 18 anos. Elissandro mandou comprar e instalar a espuma inadequada; Marcelo usou a luva com efeitos pirotécnicos que iniciou o incêndio; Luciano comprou e acionou os efeitos.

O juiz Faccini citou o livro Todo dia a mesma noite, de Daniela Arbex, para lembrar as consequências da tragédia para as famílias. “O que lhes foi tirado não foi obra do acaso, de um raio, de um tufão, de um furacão”, disse. “Foi obra humana.”

Após a sentença, os familiares se reuniram em círculo, de mãos dadas numa ampla sala do tribunal. Flávio da Silva, um dos líderes da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, fez um breve pronunciamento. “Não temos motivo algum para comemorar, exceto pela aplicação da Justiça”, disse. “Esta vitória não é nossa, é da população. Que sirva de lição a alguns empresários, para que tomem tento e saibam que, se falharem, poderão ser punidos. Que sirva de exemplo para que esta tragédia da Kiss nunca mais se repita”. Ao romper o círculo, os pais receberam com abraços e aplausos os promotores que cuidaram da acusação. Enquanto os aplaudiam, diziam em voz alta o nome dos filhos, sobrinhos e irmãos que perderam na tragédia.

A escritora Daniela Arbex, citada na sentença, visitou Santa Maria 15 vezes nos últimos anos e já conversou com grande parte dos familiares das vítimas. Durante o julgamento, estava no fórum ao lado deles. Após a leitura da sentença, uma das mães lhe disse que nunca sentiu tanta vontade de viver nos últimos anos quanto hoje. “Esse julgamento, para eles, é o fechamento de um ciclo, e eles têm participação nisso porque lutaram muito para que essas pessoas fossem colocadas no banco dos réus”, disse a escritora. “Vejo como um rito de passagem para eles.”

Janeiro de 2013

O incêndio da boate ocorreu em Santa Maria (RS) na madrugada de 27 de janeiro de 2013, numa festa que visava arrecadar fundos para a formatura de estudantes de agronomia da Universidade Federal de Santa Maria. A casa estava lotada. Durante o show da banda Gurizada Fandangueira, o vocalista usou uma luva com efeitos pirotécnicos. As faíscas incendiaram a espuma acústica, inadequada para o local. Os extintores de incêndio estavam vazios e o fogo se propagou. A combustão do material liberou gás tóxico de cianeto, o mesmo usado em câmaras da morte pelos nazistas.

No Foro Central de Porto Alegre, foi reconhecida pelo júri a responsabilidade dos réus no caso, ainda que todos eles tenham se declarado ignorantes dos riscos que assumiam. Faccini Neto considerou o dolo eventual nesse caso (quando, embora não se tenha a intenção de matar, assume-se o risco) até mais grave do que o dolo direto, pelas dimensões da tragédia. O dolo, disse, não tem a ver com o estado psicológico dos réus, ou seja, não depende da vontade ou exatamente da consciência do risco.

Tudo o que se refere ao caso envolve números altos: 242 mortos, 20.000 páginas, 200 volumes e nove anos de tramitação, sempre à vista das câmeras defronte à mesa do juiz. O julgamento durou dez dias, no júri mais longo do Judiciário gaúcho. Nos primeiros oito, depuseram 14 sobreviventes e 19 testemunhas arroladas pela defesa e pela acusação, além do sócio administrador da boate. No nono, depuseram os três últimos réus, e houve debates entre o Ministério Público e dos advogados da defesa. No último dia, antes da votação do júri, acusação e defesa fizeram suas tréplicas.

Nos momentos mais tensos, os parentes das vítimas se retiraram do plenário para atendimento na enfermaria e na sala de apoio onde voluntários recebem os familiares. Entre outras vezes, isso ocorreu quando foram exibidos vídeos da entrada dos bombeiros no prédio na noite do incêndio, com cadáveres no chão. Também aconteceu no episódio em que a advogada de um dos réus leu uma carta psicografada, supostamente ditada pelo espírito de uma das vítimas, solicitando a absolvição, e quando o sócio financiador ofereceu um terreno fora do centro da cidade para plantar 242 flores em homenagem às vítimas num lugar onde as pessoas pudessem visitar para tomar chimarrão.

Para cada um dos réus, os seis jurados precisaram responder sobre se houve o fato e se o acusado foi autor ou participante. Se mais de três jurados negassem que houve participação, o réu seria imediatamente absolvido. Para os outros réus, os jurados precisavam decidir se deveria haver absolvição, causa de diminuição de pena ou circunstância de aumento de pena.

Os debates anteriores à sentença, ocorridos nos últimos dois dias, tiveram falas acaloradas, com muita elevação de vozes e acusações de parte a parte. Do lado da acusação, os promotores apontaram contradições nos depoimentos e apelaram à proporcionalidade da pena buscada. Se o caso fosse julgado como homicídio culposo (sem intenção), a pena máxima seria de seis anos. Com dolo eventual, a pena poderia chegar a seis anos. O promotor David Medina da Silva argumentou a favor desta caracterização, baseando-se em uma interpretação mais recente da lei. Sua colega Lúcia Helena Callegari usou documentos, trechos de vídeo, transcrições de depoimentos e tabulação de quantas testemunhas se referiram a alguns fatos para dar o contraponto às afirmações feitas pelos réus. “Todos nós choramos por Santa Maria, mas não podemos chorar de novo. Se desclassificarem ou absolverem, estarão dizendo: façam, que não dá nada!”, disse Callegari, argumentando pela condenação dos quatro réus.

Defesa

Do lado da defesa, embora todos argumentassem que a tragédia foi uma fatalidade e acusassem os órgãos públicos de omissão, houve desigualdade de táticas jurídicas. Os advogados dos sócios da boate lançaram mão de documentos que visavam a delimitar a responsabilidade dos seus clientes, eximindo-os de conhecimento do risco e sempre citando a negligência dos poderes públicos. Pediram a desclassificação do crime de homicídio doloso. Já os defensores dos membros da banda Gurizada Fandangueira procuraram apelar à emoção dos jurados. Ressaltaram suas origens humildes e as dificuldades financeiras e trabalhistas pelas quais passaram desde a tragédia. Argumentaram pela inocência dos clientes.

Jader Marques, que defende o sócio administrador Elissandro Spohr, sustentou que seu cliente fosse condenado, mas não por homicídio com dolo eventual, afirmando que Spohr desconhecia os riscos da espuma. O administrador afirmou que desconhecia até mesmo o fato de que a banda costumava usar artefatos pirotécnicos no palco. “Para haver dolo é preciso haver consciência. E ele não tinha essa consciência da espuma”, afirmou o advogado.

Mário Cipriani, advogado do sócio financiador Mauro Hoffman, tentou demonstrar que seu cliente não participava das decisões artísticas da boate, não sabia de shows pirotécnicos, foi induzido ao erro ao acreditar que o ambiente estava em conformidade com a lei e havia se retirado da parceria meses antes devido a divergências sobre finanças. “O Mauro não agia na sorte, agia na confiança”, disse. “O Mauro confiou no seu sócio administrador, que, por sua vez, confiou no engenheiro e nos órgãos públicos”.

Tatiana Borsa, defensora do cantor que usou o artefato pirotécnico na luva, buscou caracterizar o cliente como alguém que só queria proporcionar alegria para o público. Perguntou a ele repetidas vezes se saiu de casa naquela noite querendo matar alguém. Criticou as autoridades da cidade por sua omissão e o Ministério Público pela não inclusão de autoridades entre os réus. ”Eles existem para nos dar segurança, não para vir aqui e se eximir”, afirmou. Ao final de sua fala, tornou-se meme nas redes sociais ao, junto aos seus assistentes, tocar a gravação da leitura de uma carta supostamente ditada pelo espírito de um dos mortos pedindo a absolvição dos réus.

Jean Severo, advogado de Luciano Bonilha Leão, elevava a voz até para fazer perguntas ao seu cliente, em cujo peito chegou a dar tabefes para pedir sua dor. De maneira teatral, rasgou uma página do livro O crime doloso, publicado em 2005 pelo promotor David Medina, questionando a validade da palavra do agente público (um novo livro do promotor, lançado nesta semana e ainda não disponível nas livrarias digitais, traria interpretação mais atualizada da lei). Também dirigiu palavras ásperas a testemunhas e assistentes de defesa. “Vocês acham que esses quatro são loucos, que iam colocar fogo no lugar e ficar lá dentro?”, questionou Severo.

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