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Santa Maria reabre suas feridas com o julgamento da boate Kiss

Na expectativa pelo resultado do júri de quatro acusados pelo incêndio que matou 242 pessoas e deixou 636 feridos em 2013, familiares revivem o trauma e contam como enfrentaram o luto nos últimos nove anos

Kellen Giovana Leite Ferreira, sobrevivente do incêndio na boate Kiss. "A última vez em que corri foi para salvar a minha vida", disse em depoimento no juri.
Kellen Giovana Leite Ferreira, sobrevivente do incêndio na boate Kiss. "A última vez em que corri foi para salvar a minha vida", disse em depoimento no juri.Marcio Pimenta

No júri de um caso de morte, a presença da família da vítima é sempre importante. Quando a morte se multiplica por 242, como no caso da boate Kiss, ela ganha outras proporções —sociais, jurídicas e intimamente pessoais no caso de quem viu parte dos seus sonhos sumirem em fogo e fumaça tóxica. É o caso de Marilene, Neuci, Gabriel, Vanessa e Ana Zélia, que dividiram suas histórias com o EL PAÍS, enquanto acompanham, em Porto Alegre, o julgamento que poderá, finalmente, responsabilizar os culpados pelo crime.

O júri ocorre na capital gaúcha, a 290 quilômetros de Santa Maria, onde houve o incêndio. A defesa dos quatro acusados requisitou e obteve a transferência do foro para reduzir a carga emocional das sessões. Há estimativas de que sete a cada dez santamarienses seriam próximos a alguém que morreu ou sobreviveu à noite de 27 de janeiro de 2013. Ainda assim, as famílias legitimamente precisavam acompanhar o possível desfecho de um pesadelo que já dura oito anos e dez meses.

Além do homicídio das 242 pessoas, os sócios da casa noturna Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, o músico Marcelo de Jesus dos Santos e o produtor Luciano Bonilha são acusados da tentativa de homicídio de outras 636 pessoas que ficaram feridas naquele dia. Os dois primeiros por, segundo o Ministério Público, terem assumido o risco de matar ao usarem uma espuma inflamável para isolar a acústica da boate, terem mantido a casa superlotada e impedido, por meio dos seguranças, que as pessoas saíssem sem pagar o consumo em meio ao incêndio. Os outros dois, por terem usado fogos de artifício destinados para uso em áreas externas dentro do local e apontado o artefato para o teto, o que iniciou a queima do revestimento inflamável e levou à tragédia.

Logo no primeiro dia, o depoimento de Kelen Giovana Leite Ferreira, 28, emocionou quem assistia ao júri. O juiz Orlando Faccini Neto separou uma categoria especial de testemunhos para o depoimento de alguns dos sobreviventes. Firme, Kelen respondeu a todos os questionamentos evitando perguntas capciosas. A foto dela com a prótese da perna sobre a mesa se tornou um dos símbolos do julgamento. No dia do incêndio, sua sandália ficou presa no tornozelo, cortando a circulação e causando a amputação de parte da perna direita. “A última vez em que eu corri foi para tentar me salvar da morte”, disse. Ela sofreu queimaduras em 18% do corpo, ficou internada por 78 dias e fez várias cirurgias. Relatou seu processo de recuperação da autoestima. Por onde passasse, era parada pelos familiares e sobreviventes que estavam lá.

Por meio de uma “vaquinha”, com a participação de parentes, amigos, vizinhos, comerciantes, políticos e outros conhecidos, cerca de 40 membros da Associação das Vítimas da Tragédia de Santa Maria (AVT-SM) se prepararam para passar duas semanas em Porto Alegre acompanhando o julgamento. A prefeitura de Santa Maria lhes cedeu um ônibus. O Exército lhes ofereceu um hotel de pouso para dormir. Restaurantes locais e a centenária fundação Pão dos Pobres lhes ofereceram refeições. O dinheiro arrecadado comprou-lhes lanches e o Judiciário gaúcho lhes cedeu três salas. Uma é a do telão, onde o julgamento é transmitido para quem não puder estar no tribunal. Outra é a do serviço médico. A terceira sala é onde os familiares buscam abrigo com mais frequência.

Nessa sala, ficam os profissionais e voluntários que prestam apoio a esses familiares. Trata-se de uma inovação interessante, segundo um representante da OAB-RS que visitou a sala para fotografar o ambiente. Há água, café, biscoitos, cadeiras, cuidados pessoais como acupuntura, diálogo e muitos abraços. Alguns voluntários acompanham as famílias desde o primeiro dia, como no caso da enfermeira Patrícia Curti Bueno, que trabalhou no socorro inicial às vítimas. Todos se conhecem pelo nome próprio. Todos sabem o nome dos filhos que os colegas perderam na tragédia.

A relação entre as apoiadoras —quase todas são mulheres— e os familiares precisou ser construída de maneira gradual. Para ganhar a confiança de quem perdeu tanto, a primeira barreira a ser superada pelos servidores que se dedicaram a eles foi dissociar o papel do servidor público da péssima imagem da administração municipal. No inquérito original, a Polícia Civil apontou negligência da prefeitura quanto à fiscalização da boate. Já aos servidores da saúde e da assistência social coube o atendimento, o acolhimento e o abraço numa hora tensa. No julgamento atual, o ex-prefeito César Schirmer deve depor na condição de testemunha, o que desagrada aos membros da associação quase tanto quanto o fato de ele ter sido nomeado secretário da segurança pública três anos após a tragédia.

“Não viemos para atender, viemos para estar junto com eles”, diz Patrícia, observando que nessa condição os profissionais não usam jaleco. “A gente ri, a gente chora, a gente conversa”. No final de 2014, acompanharam um pequeno grupo de pais de vítimas numa visita a Buenos Aires, para conhecer a boate República Cromañon nos dez anos do incêndio que matou 194 jovens. Lá, eles conheceram outros pais que, apesar de falarem outra língua, entendiam perfeitamente seus pensamentos.

A primeira conversa com Patrícia foi interrompida pela chegada da mãe de uma das vítimas, que levava no peito o rosto e o nome do filho perdido e estava furiosa com o sarcasmo dos advogados de defesa dos réus. Sentou-se e chorou, frustrada. Foi acolhida com um abraço pela médica Maria Letícia Ikeda, que lembrou a força que essa mãe tem demonstrado por tantos anos. Outra colega lhe trouxe um copo d’água. Em poucos minutos, indignada mas refeita, ela voltou ao plenário.

***

Os fatos daquela noite são sobejamente conhecidos: a festa organizada para arrecadar recursos para a formatura de agronomia; a boate lotada, com fila até a esquina; o show da banda Gurizada Fandangueira; o artefato pirotécnico nos primeiros acordes de um sucesso pop da época cuja simples menção abala os familiares; a espuma, a fumaça, a aglomeração, os corpos pisoteados e a incerteza sobre quem saiu e quem ficou; o resgate que virou a madrugada; os corpos empilhados no estacionamento do supermercado; o velório coletivo para uns e os meses de internação na UTI para outros; os quase nove anos de andamento do processo.

Pessoais demais são os detalhes. Não é preciso ter conhecido pessoalmente nenhuma das vítimas para ter uma história assim.

Para mim, como repórter, foi um momento marcante. Eu visitava a família em Porto Alegre quando fui acordado pelos meus chefes de então. Fui um dos primeiros profissionais da imprensa fora do RS a chegar ao local, quando todos os corpos já haviam sido recolhidos, mas ainda havia pés de sapato e pulseirinhas VIP da boate abandonados na sarjeta. Passei uma semana na cidade cobrindo os primeiros desenvolvimentos. Já na primeira noite, fui ao ginásio Farrezão acompanhar o velório coletivo, onde a visão de dezenas de caixões acompanhados de famílias enlutadas foi o primeiro impacto. O segundo foi o de, por dever profissional, precisar anotar as histórias do máximo possível de vítimas. Era preciso engolir o choque, abordar famílias devastadas e, com tato, pedir para ouvir um pouco sobre aquela quase criança num caixão aberto ou fechado. As fórmulas usuais de cortesia para abrir uma conversa não se aplicavam: não era “boa noite” e obviamente não estava “tudo bem”. Na terceira família, percebi que o que eles mais queriam era falar sobre aquele jovem cheio de futuro interrompido. Na quinta família, eu já chegava perguntando quem aquele colorado ou aquela prenda queria ser e o que lhe fazia feliz.

Pelas anotações do meu bloquinho da época, a oitava família foi a do estudante de economia Odomar Gonzaga Noronha, morto aos 27 anos. Era uma das poucas famílias negras que lá estavam. Muito unidos, apoiando-se uns aos outros. Na época, anotei: “Supervisor Lj Americanas. Cursava ciências econômicas. Videogame, jogos online, filmes. Senhor dos Anéis. Ia pouco em festa.”

Vanessa era uma das irmãs de Odomar que estavam lá. Aos 29 anos, ela representava a família no julgamento ao lado de outra irmã, Cristiene. Na última sexta-feira, no saguão do Foro Central de Porto Alegre, ela contou como janeiro de 2013 foi o mês em que sua família “foi do céu ao inferno”. Quinta filha, havia acabado de passar no vestibular, para jornalismo, na Universidade Federal de Santa Maria, no começo de janeiro. Festejaram o mês todo porque todos os irmãos agora eram universitários. Ela mesma não foi à boate Kiss e, depois daquela noite, nunca mais quis ir a baladas. Odomar também não costumava sair muito, e originalmente tinha ido a outra boate com quatro colegas da rede de lojas onde era supervisor, e até deu carona para outras irmãs. O que aconteceu entre a carona e a identificação do corpo é uma incógnita para a família.

Cristiene Noronha, irmã de Odomar Gonzaga Noronha, morto aos 27 anos.
Cristiene Noronha, irmã de Odomar Gonzaga Noronha, morto aos 27 anos.Marcio Pimenta

No dia em que Odomar não voltou para casa, a família se dividiu, tomando ônibus distintos para procurar o irmão em diferentes hospitais e postos de saúde, sempre com informações desencontradas. Apenas puderam confirmar seu destino no Centro Desportivo Municipal, próximo ao local do velório, para onde os corpos foram levados por falta de espaço nos hospitais. Na rua sem saída onde os Noronha viviam, a tragédia bateu de porta em porta: além de Odomar, outros três vizinhos também não voltaram. “Foram anos tristes de luto, o mano era uma pessoa muito alegre”, diz. A mãe até hoje não se recuperou do choque, por isso Vanessa escolhe bem o que conta ou deixa de contar aos pais de tudo o que vê no julgamento.

A diarista Marilene dos Santos Soares, 52, é mãe de Nathiéle e sogra de Alan, irmão de Tailan, que por sua vez era namorado de Bruna. Os quatro morreram na Kiss. A foto da estudante de licenciatura em educação especial sorrindo enquanto olhava sobre os ombros circulou o mundo. “Ela gostava muito de tirar fotos, e sempre que eu via uma reportagem sobre a tragédia lá estava ela sorrindo”, conta. “Era como se ela estivesse me passando um recado, para que eu ficasse bem”. Amigos encontraram a imagem da filha na capa de um jornal, durante viagem a São Paulo, e lhe trouxeram esse exemplar que Marilene guarda em casa com carinho.

O rosto da filha de 21 anos sorrindo com os dentes perfeitos de que tanto se orgulhava estava no peito de Marilene enquanto conversávamos. As camisetas com fotografias, uniforme dos frequentadores da sala de apoio, também foram a armadura utilizada no centro de Santa Maria no dia 27 de cada mês até o distanciamento social imposto pela pandemia de coronavírus. “A gente anda pelo centro com essa camiseta e nos olham como a um ser estranho”, queixa-se. Frases soltas no ar da cidade, como “deixa eles descansarem”, minimizam a importância da busca das famílias pela responsabilização dos envolvidos e pedem essa armadura.

Apenas com os encontros fortuitos com a imagem da filha, porém, seria impossível ficar bem. Nos primeiros anos do luto, Marilene insistiu em cursar o supletivo do ensino fundamental e médio, pois havia parado de estudar na sexta série. Na última vez em que havia encontrado a filha, 11 dias antes do incêndio, combinaram de sair juntas para comprar material escolar (ela acabou usando os cadernos de Nathiele). Ao longo dos últimos quase nove anos, Marilene também recorreu à ajuda de médicos e psicólogos. Um dos sonhos interrompidos de Nathiele era justamente o de estudar psicologia após trabalhar com educação especial. Embora morasse em outro município, Marilene e o marido com frequência visitavam Santa Maria em busca de apoio.

A família da dona de casa Neuci de Almeida Konzen, a Cica, 54, não teve o mesmo acesso ao apoio por viver a 174 km de Santa Maria, em Manoel Viana. Jéssica, 21, a filha mais velha, foi a primeira da família a ingressar no ensino superior. Para que ela fosse morar em Santa Maria, Cica e o marido João, secador de cereais, deram a ela alguns dos seus próprios móveis e eletrodomésticos. Esses sonhos morreram quando a filha e seu namorado, Cássio, foram celebrar a vida na boate. Na última conversa que tiveram por telefone, insistiu por três vezes que a filha não saísse, porque tinha um mau pressentimento. Não conseguiu dormir antes das 4h naquela madrugada, e acordou com a pior notícia que uma mãe poderia receber.

Longe do apoio profissional mais próximo do caso, ela e João tiveram todos os sintomas mais conhecidos de depressão. Ela conta que chegou a tomar 20 comprimidos por dia (hoje toma dois). A cura e o conforto vieram de uma neta, nascida de um namoro de adolescência do filho mais novo, após a perda de Nathiele. Cica criou a neta como se fosse uma filha, e veem nela traços da personalidade de Nathiele. Católica, aproximou-se do espiritismo em busca de entender melhor esses sinais.

Marilene Santos Soares e Sérgio Leandro Soares
Marilene Santos Soares e Sérgio Leandro SoaresMarcio Pimenta

“Fica tranquila, eu sei contar uma piada se o assunto ficar pesado”, disse Gabriel Rovadoschi Barros, 27, à mulher que o acompanhava, preocupada com a entrevista. Sempre reflexivo, não precisou fazer nenhuma piada durante a conversa nos degraus do Fórum Central. Gabriel é um dos raros sobreviventes que acompanharam a caravana rumo a Porto Alegre. Ele, que conseguiu sair da boate praticamente ileso, enfrenta diariamente o local onde perdeu dois amigos.

“Eu não precisava ter sido dilacerado para me remontar”, diz.

Calouro tímido de jornalismo, tinha 18 anos quando foi à boate naquela noite, a convite de uma estudante de zootecnia que havia conhecido no dia anterior. Encontrou dois amigos, com quem conversava em frente ao posto do DJ Bolinha na hora em que percebeu o tumulto. Ouviu que era briga e que era fogo, o que seria determinante para tomar a decisão de por qual lado ir. Na dúvida, decidiu sair. O que o salvou, conta, foi usar a camiseta para filtrar o ar. Nos metros finais de sua fuga da boate, precisou pisar sobre corpos que estavam caídos no chão. “Eu era muito magro, então lembro de escolher quem fosse maior e tivesse as costas mais largas para machucar o mínimo possível”, diz. Só quando já estava a salvo, encontrou a garota que o convidou para ir ao local e percebeu que os amigos haviam ficado para trás. Avisou aos bombeiros que a estudante estava ferida nas pernas e com os dedos deslocados. “Quem estiver caminhando está bem”, lhe disseram.

Gabriel Rovadoschi Barros, sobrevivente da tragédia
Gabriel Rovadoschi Barros, sobrevivente da tragédiaMarcio Pimenta

Resgatado pela mãe, foi levado a um pronto-socorro mais distante com a garota e mais um rapaz que conseguira sair. Este precisou ficar internado: tinha as narinas queimadas pela fumaça de cianeto gerada pela queima da espuma inadequada instalada pela boate para afastar queixas pelo isolamento acústico. As complicações respiratórias que Gabriel teve foram mínimas: suas maiores sequelas foram comportamentais. Sua segunda balada foi sua última. O assédio de programas de TV sensacionalistas aos sobreviventes fez com que ele se desiludisse com o jornalismo e desistisse do curso que havia iniciado. Decidiu estudar psicologia e, no ano passado, começou na UFSM um mestrado em distúrbios da fala.

Ele estuda a afasia, a perda da fala em decorrência de traumatismo neurológico. Embora a tragédia pela qual passou não tenha sido diretamente o motivo da escolha, ele vê paralelos no campo da metáfora. “Nunca me identifiquei como vítima, passei anos sem falar no assunto a quem não soubesse”, diz. Há um par de anos, ele resolveu enfrentar seu trauma procurando o grupo de familiares. De maneira ainda mais drástica, quando saiu de casa ele foi morar com amigos num prédio quase ao lado da boate Kiss, no centro de Santa Maria. Todo dia, ao sair de casa, ele vê o cenário da noite em que tantos —incluindo ele mesmo— foram dilacerados. Atualmente, a carcaça do prédio ainda está de pé. De tempos em tempos, a fachada recebe novas camadas de pichação com frases de protesto. Existe um plano de demolir e construir um memorial no lugar. Ele já foi planejado, mas a aprovação saiu pouco antes da pandemia.

***

Ana Zélia Paz, professora aposentada de matemática em Santiago, quase na fronteira com a Argentina, não tem filhos. Estava na sala de acolhimento assistindo pelo celular à formatura de um sobrinho, o novo médico da família. Tia e confidente de Andressa Paz, estava lá representando o irmão e a cunhada, que nunca mais foram os mesmos, mas sobretudo a si própria. Por quase nove anos, evitou assistir aos vídeos abundantemente disponíveis na internet que mostravam a noite da tragédia. Era doloroso demais. Lá, ela viu pela primeira vez o ambiente onde a sobrinha de que tanto se orgulhava passou seus últimos momentos. “Eu precisava saber. Eu precisava ver”, disse.

Andressa, 20 anos, estudava Tecnologia em Agronegócio, um dos cursos oferecidos pelo Centro de Ciências Rurais da UFSM. Naqueles dias muito quentes do final de janeiro de 2013, logo após a tragédia, digitei para me auxiliar nas reportagens a lista de mortos que eram ligados à universidade numa planilha. Dos 238 que haviam falecido até aquele momento, 112 estudavam na UFSM. Destes, mais da metade circulava pelo mesmo prédio: 26 na Agronomia, que convocou a festa; 16 na Tecnologia de Alimentos; 15 na Medicina Veterinária; 5 na Zootecnia. No curso de Andressa, duas pessoas morreram.

Por isso, no meio daquela cobertura, fiz questão de tirar uma tarde para visitar o centro. Ao entrar na universidade, no bairro de Camobi, uma faixa de luto estava disposta no pórtico. Passando uma ponte seca, entrava-se à direita no planetário e à direita estavam os “prédios rurais”, pintados de verde. Devido a uma greve, comum em universidades federais, o segundo semestre de 2012 só acabaria no final de fevereiro. Nos corredores, os murais refletiam a normalidade pré-tragédia, com ofertas de ajuda para formatar trabalhos de conclusão e convites para uma cavalgada no começo de fevereiro. Pela manhã, eu havia presenciado a formatura mais triste possível: sem música e sem toga, cercados apenas pelos pais, estudantes de Zootecnia colaram grau para não perderem o prazo da inscrição no mestrado. Ao final, depositaram as poucas flores da decoração em frente à boate, junto às fotos dos colegas perdidos.

Tomei um chimarrão no gabinete do professor Thomé Lovato, coordenador do CCR, para saber mais sobre o perfil dos alunos, sobre o capital humano perdido. Chimarrão era uma de suas especialidades: foi pesquisador da exigência nutricional de mudas de erva-mate. Numa região fortemente ligada ao agronegócio, explicou ele, são cursos onde as famílias de agricultores apostam seu futuro. Muitos dos alunos eram os primeiros de suas famílias a entrarem no ensino superior. São cursos de excelência, na área de maior desenvolvimento tecnológico da universidade. Um dos mortos, lembrou, era um doutorando que defenderia sua tese em poucas semanas. Nos dias que se seguiram à tragédia, contou Lovato, muitos pais foram ao prédio para conhecer os ambientes por onde os filhos circulavam, estudavam e pesquisavam.

“Foi uma perda incalculável dos projetos das famílias de preparar os filhos para seguir o negócio”, disse o professor. “Muitas ficaram sem herdeiros”.

***

No saguão do fórum central, cada um dos familiares tem uma ideia diferente do que seria Justiça nesse caso —nem todas elas ao alcance do júri. Ainda que avaliem que faltem réus importantes no plenário, a esperança de fim à impunidade dos responsáveis é compartilhada pelos familiares.

Uma das pessoas ouvidas pela reportagem contou de alguém que esteve a centímetros de distância, no plenário, do cantor da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo Jesus dos Santos. Suas mãos tremeram de vontade de derramar seu copo d’água na cabeça do músico que acionou o dispositivo pirotécnico que queimou a espuma inadequada que, sem extintores adequados, liberou o gás cianeto que se concentrou no ambiente enquanto o caminho da única porta do local ficava bloqueado pelo tumulto. Um pouco de água em quem iniciou o fogo, avaliou, não traria a filha de volta, mas lavaria a alma. Desabafou com um dos líderes do grupo, que lhe afiançou: se alguém ali perdesse a compostura, os advogados dos réus usariam isso a favor deles e tudo poderia ser perdido.

Vanessa conta que, além da perda do convívio de pessoas queridas, uma das coisas que mais doem é ouvir pelas ruas a frase “deixem os mortos descansarem”. Até porque quem nunca mais descansou desde então foram os vivos. Nas conversas no saguão do fórum, ouvi relatos sobre alcoolismo, depressão, suicídio, dissolução de famílias. Ouvi relatos de avós que até morrerem reclamaram que a neta parou de visitar a família depois de ir estudar em Santa Maria ―última memória que guardaram antes do trauma.

Nas primeiras semanas após a tragédia, pelo Brasil inteiro, empresas, repartições públicas e prédios residenciais correram para se adequar às regras anti-incêndio. Chegaram a faltar extintores para reposição. Houve fiscalizações em diversos estabelecimentos, com multa para casos de inadequação. Passados alguns meses, isso deixou de ser um assunto popular. Em Santa Maria, os efeitos foram mais duradouros. Na UFSM, alma mater da maior fatia dos mortos, os prédios inaugurados nos últimos anos têm menos andares, mais saídas, escadas e portas mais largas e extintores de incêndio visíveis. Os bares da cidade contam com mais espaços ao ar livre.

Dependendo da severidade da sentença, é possível que haja novas regulamentações de combate a incêndios. Punições podem dar o exemplo do risco que um estabelecimento corre ao negligenciar a segurança.

“Minha ideia de justiça neste caso é que ninguém mais precise ser emboscado”, disse Gabriel. “Carreguei um sentimento de culpa por muito tempo, mas essa culpa não é minha. É preciso poder dizer de quem ela é”, afirma, sabendo que só se pode falar em culpados após o julgamento. Ele usava a camiseta feita pelo grupo para lembrar os sete anos da tragédia, em janeiro de 2020. Ela traz nas costas dizeres fortes a respeito: “O sistema envenena. A corrupção mata. A impunidade enlouquece.”

Com uma cultura de segurança reforçada, será mais raro que familiares de outros jovens tenham de perder o sono por nove anos.

Gabriel Rovadoschi Barros mostra a camiseta feita para lembrar a tragédia, em 2020
Gabriel Rovadoschi Barros mostra a camiseta feita para lembrar a tragédia, em 2020Marcio Pimenta

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