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Jurada de morte pelo PCC na tampa do marmitex

Juíza de Boa Vista, Joana Sarmento de Matos é ameaçada também pelo Comando Vermelho e pela facção venezuelana Sindicato. Sua rotina é marcada pela presença de dois guardas armados com fuzis, que fazem sua segurança 24 horas por dia

Joana Sarmento de Matos Jurada de morte pelo PCC na tampa do marmitex

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Gil Alessi

Joana Sarmento de Matos veste com habilidade o colete à prova de balas sobre o vestido verde de bolinhas brancas. A juíza da Vara de Execuções Penais de Boa Vista coloca a pesada peça sem bagunçar o cabelo nem deixar que ele prenda nos brincos de argola. Seus movimentos têm a desenvoltura de quem parece estar apenas enrolando um cachecol no pescoço. Afinal, este é um ritual repetido milhares de vezes. Responsável por decidir sobre a soltura de presos, mudança de regime e transferências de lideranças para o sistema penitenciário federal —o grande temor das organizações criminosas—, Joana teve a cabeça colocada a prêmio pelas maiores facções da América do Sul, o PCC e o CV, e também pelo Sindicato, grupo formado por traficantes venezuelanos que atuam no Estado. “Recebi ameaças das três”, diz com uma voz tranquila e pausada.

Não fosse o colete azul-marinho e a presença de dois guardas armados com fuzis, haveria um clima de normalidade dentro de seu gabinete no Fórum Criminal da capital roraimense, onde ela concedeu esta entrevista após dois meses de negociações. Mas não há nada de normal envolvendo a rotina da magistrada. Ao longo de seis anos de atuação no Judiciário, as ameaças contra sua vida se contam às dezenas. A maior parte delas foi interceptada durante revistas nas celas da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (PAMC) e da Cadeia Pública. Algumas chegaram a mencionar o bairro onde ela reside. Curiosamente, uma das ordens mais recentes para que a juíza fosse assassinada não foi escrita em papel: “Como eles não têm acesso à folha e cadernos para escrever ali dentro, eles [o presos] têm escrito [as ameaças] na tampa do marmitex de alimentação deles”.

As ameaças à magistratura não são raras no Brasil. “É algo que acontece com o juiz, não é incomum. Mas em um Estado de fronteira é muito, muito problemático. Se você for olhar a situação aqui [Roraima] e no Paraná [faz fronteira com o Paraguai], por exemplo, vai ver que magistrados são ameaçados em maior proporção. Estados que são rotas [de tráfico de drogas]”, diz.

Nos últimos anos, Roraima, como boa parte dos Estados do Norte do país, se tornou um campo de batalha da guerra das facções. A fronteira com a Venezuela, país que, apesar de não ser grande produtor de cocaína, é conhecido por ser território livre para o tráfico de drogas, despertou o interesse dos principais grupos criminosos do país. As consequências da disputa por territórios se fizeram sentir nas ruas e atrás das grades, onde a violência mudou de patamar: “Passamos a ver mais homicídios com o requinte de crueldade típico das facções. Cabeça decepada, braço decepado. Sempre tivemos homicídios, mas eram assassinatos cometidos sem esse grau de violência”. O descontrole da situação ganhou as manchetes em janeiro de 2017, após o massacre ocorrido na PAMC, no qual 33 presos foram mortos de maneira cruel dentro do presídio.

A partir do massacre, o sistema penitenciário de Roraima foi colocado sob intervenção federal em uma tentativa de recuperar o controle das unidades. Isso acirrou os ânimos dentro das unidades do Estado, e aumentou a pressão sobre Joana: “Antes da intervenção basicamente quem tomava conta do sistema prisional eram os presos. Do portão pra dentro eles mandavam. Aí com a presença de agentes federais ocorreu a retomada de obras e o estabelecimento de procedimentos e rotinas penitenciárias. Presos que ficavam literalmente soltos dentro da unidade passaram a ficar recolhidos durante a maior parte do dia. E a partir do momento que as lideranças passam a cumprir pena efetivamente dentro da cela, isso potencializou as situações de ameaça e de estresse”, explica a juíza.

Para evitar o pior, os últimos seis anos da vida da magistrada foram marcados por uma série de medidas protetivas, que, na prática, a tornam quase uma prisioneira da profissão e de uma série de protocolos. Joana vai do fórum para casa, de casa para o fórum. E só. “Nada de chopp com os amigos depois do expediente”, conta. Sempre sob escolta armada, ela anda em carro blindado e sempre com seu colete à prova de balas. “Coisas aparentemente básicas que qualquer pessoa faz, para mim envolvem um planejamento, preciso perguntar para a Assessoria Militar se eu posso fazer aquilo. Até rotinas básicas da vida doméstica em casa. Por exemplo, eu não vou a um mercado fazer compra, seguramente, há cinco anos. Quem faz compras na minha casa é meu esposo. Tudo envolve uma adaptação de rotina muito grande”, explica.

Pedalar pelas ruas do bairro, um hobby adotado pela juíza para “desestressar” e começar uma rotina de exercícios físicos, durou pouco: foi desaconselhada pelos responsáveis por sua segurança. Ir a um restaurante? “Ah é algo bem raro, bem raro, a não ser no período de férias. Envolve uma logística tão grande, acionar o pessoal da escolta, etc, que aí no final eu prefiro nem ir mesmo. Peço a comida na minha casa.” Mesmo nas férias, as restrições continuam. “Volta e meia o pessoal da segurança me liga e fala ‘olha, não posta isso [nas redes sociais], porque você está dando informação de onde você está”, afirma.

Todas essas precauções não são um exagero. O Brasil é um país onde grupos criminosos têm como uma tradição nefasta assassinar juízes em retaliação a sentenças ou medidas de endurecimento de pena. O caso mais emblemático envolveu a magistrada Patrícia Aciolly, morta em 2011 por milicianos em Niterói, no Rio de Janeiro. Em 2003 o juiz Antônio José Machado Dias foi assassinado em Presidente Prudente (SP) a mando do PCC. Naquele mesmo ano motoqueiros mataram o juiz Alexandre Martins de Castro Filho em Vila Velha (ES). Ele fazia parte de um grupo especial que investigava as ações do crime organizado no Estado. “Essa situação de ameaça aos juízes que eventualmente se concretiza em alguns casos é um atestado de que o Estado não está funcionando da forma que deveria”, diz Joana.

Ela também desempenha a função de juíza corregedora, sendo responsável por avaliar as condições dos presídios, do ponto de vista sanitário e alimentar. Assim, Joana visita todas as unidades, onde fica frente a frente com os presos que a querem ver morta. “Eu não sinto medo, eu sinto tristeza, na verdade. Psicologicamente, o dia que eu vou nas unidades prisionais é o dia mais cansativo para mim emocionalmente, porque ninguém em sã consciência vai achar normal uma pessoa presa em uma cela que deveria ter três pessoas e tem cinco ou seis, completamente superlotada”, diz.

Este mês a assessoria militar responsável pelas medidas de segurança envolvendo a juíza divulgará um novo relatório, feito com base nas ameaças recebidas, e que em tese poderá determinar um relaxamento na rotina de Joana. Indagada se vislumbra a possibilidade de um afrouxamento das medidas espartanas de proteção a que está submetida, a magistrada dá de ombros. “Será que vão dizer que as coisas estão mais tranquilas e eu vou poder retomar minha vida? Eu fico sempre com essa expectativa, quero sempre o melhor para mim. Mas a percepção que eu tenho é que não vai melhorar”, conclui resignada. “Mas assim, graças a Deus estou viva. São escolhas, né? Toda escolha tem as suas consequências. E agora estamos com as consequências”.

Apesar da situação estressante, a juíza acredita que ainda está em uma situação privilegiada diante de outros casos. “Mesmo em uma condição bem adversa, posso contar com os meninos [da escolta], um carro blindado, um colete. Existem pessoas no Brasil que atuam na área de Direitos Humanos e estão em situação de ameaça e com um risco muito maior do que o meu”. Vale a pena abrir mão de tanto por um trabalho? “Tem períodos em que eu tenho a percepção que a gente está enxugando o gelo no deserto do Saara ao meio-dia, e em outros tenho a sensação que a gente está conseguindo avançar”, diz. E como está agora? “Enxugando gelo no no deserto do Saara”.

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CRÉDITOS:

Reportagem: Gil Alessi

Edição de texto: Carla Jimenez e Talita Bedinelli

Fotos: Alexandre Noronha, Fernando Souza e Silva Santos

Desenho - Desenvolvimento: Alfredo García

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