Enem mantém integridade apesar das ameaças de mudança do Governo Bolsonaro

Exame “com a cara do Governo” não teve questões polêmicas e abordou temas como passividade política, racismo, escravidão e indígenas. Nos últimos dias, servidores denunciaram tentativa de censura e interferência ideológica na prova

Estudantes chegam para o primeiro dia de prova do Enem 2021. Tomaz Silva/Agência Brasil

A primeira prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2021, realizada neste domingo, manteve a integridade da avaliação, apesar da ameaça de interferência denunciada por servidores e das provocações públicas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que declarou na última segunda-feira que a prova teria “a cara do Governo”. “Não houve, não haverá interferência na montagem da prova por parte de qualquer Governo”, defendeu o ministro da Educação, Milton Ribeiro, em entrevista coletiva após a aplicação da prova. “Talvez, se tivesse alguma interferência, pode ser —falo hipoteticamente— poderia ser que algumas perguntas nem estivessem ali”, afirmou.

O exame não trouxe questões que eram comuns em edições anteriores, como as referentes à ditadura militar, tema ausente desde que Bolsonaro assumiu a presidência. Mas houve perguntas relacionadas ao racismo, aos indígenas, e à erotização do corpo feminino, que também são tabus para a atual administração. O tema da redação, “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”, tinha como proposta que os candidatos fizessem uma reflexão sobre a participação da população nos serviços do país, um problema que, para o ministro da Educação, foi “descoberto” pela gestão de Bolsonaro quando o auxílio emergencial da pandemia não chegou a todos os necessitados, porque eles não possuíam documentos para isso.

Contra-ataque

Nem mesmo a ausência de quase 1 milhão de alunos no Enem com o menor número de inscritos em 16 anos desanimou a contra-artilharia do ministro da Educação, escalado para defender o Governo desde que a crise do Inep, instituto responsável pelo exame, entrou em curso, com a denúncia dos servidores de que a prova estaria sofrendo censura e pressão ideológica —37 dos funcionários abriram mão de seus cargos ao denunciar as irregularidades.

Dados divulgados neste domingo indicam uma taxa de abstenção de 26%, menor do que no ano anterior, de 52,3%, conforme anúncio do presidente do Inep, Danilo Dupas. “O Enem foi um sucesso”, celebrou Ribeiro. Ao todo, 2,3 milhões de candidatos compareceram ao primeiro dia do exame. “O mais importante não é o número de inscritos, mas de quem vem fazer a prova”, afirmou.

Ribeiro criticou a demora das escolas públicas em retomarem o ensino presencial, atacou professores e relatou problemas anteriores à gestão Bolsonaro. “As escolas privadas abriram muito mais cedo e elas também tinham os meios virtuais para poderem exercer e darem suas aulas online. Mas vamos lembrar: Nosso Governo tem três anos. A questão da deficiência virtual não é um problema que começou a existir há três anos. Nos outros governos também existia”, defendeu. “Os professores das escolas públicas não queriam dar aulas. E os senhores sabem muito bem do que estou falando”, criticou.

Sobre as denúncias dos servidores em relação à interferência da prova, Danilo Dupas voltou a dizer que se trata de uma questão interna.

“Com a cara do Governo”

Na análise de professores especialistas, o Enem trouxe questões que permitem medir os conhecimentos que os candidatos deveriam ter ao concluir o ensino médio. Ocimar Alavarse, especialista em avaliações educacionais do país, destaca que as perguntas são elaboradas seguindo critérios técnicos rigorosos, com seleção de professores e referências em matrizes de conhecimento que norteiam os conteúdos do ensino médio. “Os itens passam por três revisões antes de irem para a pré-testagem. Há um rígido controle, um protocolo. O risco, denunciado pelos servidores, era de que este protocolo não fosse seguido. E, quanto mais pessoas vendo a prova, maior a possibilidade de vazamento”, avalia.

“O pedagógico prevaleceu ao político”, avaliou Fernando Santo, gerente de inteligência educacional e avaliações do Poliedro. “Se, por um lado, destaca-se a ausência de questões sobre a ditadura, é louvável a presença de itens sobre a questão indígena brasileira. Ao menos seis itens abordam essa temática. Além disso, destaca-se a menção a músicos brasileiros em diversas questões. Foram citados Gonzaguinha, Chico Buarque, Nelson Sargento, Abel Ferreira e, em especial, o Zé Ramalho, com Admirável gado novo”, analisa.

Para Daniel Perry, do Curso Anglo, o Enem “não apresentou polêmicas, mas dialogou com temas da atualidade, como a passividade política, a erotização do corpo feminino, o racismo, a questão indígena.” Mas houve mais temas recorrentes que ficaram de fora, como a já mencionada ditadura militar. “O que não caiu, que costumava cair em edições anteriores, foram questões relacionadas às pautas da comunidade LGBTQIA+. Em diversas edições, esse tema permeou testes, seja na área de história, sociologia, ou mesmo em torno da filosofia. Também não caiu a história antiga, especialmente Grécia e Roma, quando era abordada a participação política.”

Thiago Braga, autor de Língua Portuguesa do Sistema Ph, destacou a importância da reflexão proposta pela redação. “É uma importante discussão, já que muitas pessoas não conseguem ter acesso a registro civil ainda. E a gente fala em analfabetismo digital, desemprego, sendo que muitas pessoas não conseguem nem ter acesso a direitos mais básicos, porque não são reconhecidas pelo Estado”, ponderou. A segunda parte do Enem será aplicada no próximo fim de semana.

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