Farmácias venderam mais de 52 milhões de comprimidos do “kit covid” na pandemia

Hidroxicloroquina, propagandeada por Bolsonaro, teve mais de 1,3 milhão de caixas vendidas no país

Ao lado do ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, o presidente Bolsonaro segura uma caixa de hidroxicloroquina da empresa Apsen e diz que, no caso dele, o medicamento “deu certo”. “Sou a prova disso”, afirmo.
Bianca Muniz Bruno Fonseca (Agência Pública)

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Farmácias brasileiras venderam mais de 52 milhões de comprimidos de quatro medicamentos do chamado “kit covid” em um ano de pandemia: sulfato de hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e nitazoxanida. Segundo levantamento exclusivo da Agência Pública, foram vendidos mais de 6,6 milhões de frascos e caixas desses quatro remédios de março de 2020 a março de 2021.

Os números representam apenas as vendas desses medicamentos em farmácias privadas, isto é, não incluem o que foi aplicado em hospitais ou dispensado em postos do Sistema Único de Saúde (SUS). 

De acordo com o levantamento da Pública, dentre os quatro medicamentos, o que teve mais comprimidos vendidos foi a hidroxicloroquina —que o presidente Bolsonaro anunciou tomar quando foi diagnosticado com covid-19. Foram mais de 32 milhões de comprimidos vendidos desde março de 2020, um total de 1,3 milhão de caixas.

Desde o fim de março de 2020, a hidroxicloroquina entrou para a lista de medicamentos sujeitos a controle especial, junto à cloroquina, por decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Foi essa mudança na classificação que permitiu contabilizar a venda de hidroxicloroquina nessa base de substâncias.

A própria Anvisa reconheceu que a inclusão dos medicamentos na categoria tinha o objetivo de “coibir a compra indiscriminada de medicamentos” devido à pandemia, embora já tivesse alertado à época que “não existam estudos conclusivos sobre o uso desses fármacos para o tratamento da covid-19”. A bula da hidroxicloroquina prevê que ela seja utilizada para tratar malária ou certas doenças autoimunes, como lúpus e artrite reumatoide. 

Em segundo lugar nas vendas, a azitromicina, um antibiótico, teve mais de 13 milhões de comprimidos vendidos em farmácias brasileiras no mesmo período —mais de 3 milhões de caixas. Diferentemente da hidroxicloroquina, a azitromicina já estava no grupo de medicamentos sob controle especial ao menos desde 2010, quando a Anvisa definiu regra para controle de antibióticos. A venda da azitromicina nas farmácias brasileiras passou de uma média de 711.000 comprimidos por mês em 2019 para 1 milhão ao mês durante a pandemia. O uso previsto da azitromicina em bula é para o tratamento de doenças como bronquite, pneumonia, sinusite e faringite.

Tanto a hidroxicloroquina quanto a azitromicina tiveram o seu pico de vendas em março de 2021, mês com mais mortes por covid-19 desde o início da pandemia. Março foi também o mês com mais óbitos registrados na história do país, segundo cartórios de registro civil.

Já a ivermectina e a nitazoxanida, dois vermífugos, não estiveram na categoria de medicamentos de controle especial durante toda a pandemia —ou seja, os dados registram apenas uma parte da venda desses medicamentos nas farmácias brasileiras. A nitazoxanida entrou para o grupo de controle especial em abril e a ivermectina em julho. Em seguida, em agosto, o presidente Bolsonaro afirmou nas suas redes sociais que a Anvisa iria facilitar o acesso à hidroxicloroquina e ivermectina e que a população poderia comprar os medicamentos “com uma receita simples”. Em setembro, a ivermectina e a nitazoxanida foram excluídas da classificação da Anvisa de controle especial, permitindo o reaproveitamento da receita e a compra de mais remédios sem a necessidade de uma nova prescrição.

Nesse período em que os dois medicamentos estiveram sob controle especial, o pico de vendas da ivermectina ocorreu em agosto de 2020. Já o da nitazoxanida ocorreu em julho.

Procurada pela Pública, a Anvisa respondeu que “não é possível emitir considerações sobre nenhum dado ou informação específica” em relação aos dados de venda dos medicamentos apurados pela reportagem.

Goiás é onde mais se vendeu “kit covid” proporcionalmente

Foi o Estado de Goiás onde foram vendidas mais caixas dos quatro medicamentos do kit covid em relação ao tamanho da população. É lá também onde mais se vendeu caixas de azitromicina proporcionalmente. Já o Distrito Federal foi onde mais foram vendidas hidroxicloroquina e ivermectina em relação à população, e o Amapá onde as vendas de nitazoxanida foram maiores proporcionalmente.

Por sua vez, São Paulo ocupa o topo entre os estados onde mais foram vendidos os quatro medicamentos do kit covid em número absoluto — cerca de 1,5 milhão de caixas, mais de um quinto do total vendido em farmácias brasileiras na pandemia. 

“Não há dúvida que o uso off-label (fora da finalidade da bula) é o responsável pelas grandes vendas desses e de outros medicamentos do ‘kit covid’, que muitas vezes são colocados em lugares estratégicos nos balcões das farmácias para chamar a atenção dos clientes”, afirma o pesquisador do Instituto de Física de São Carlos da USP e especialista em química medicinal, Adriano Andricopulo. “O aumento das vendas está associado à expectativa das pessoas, que infelizmente ainda é grande, de obter os possíveis benefícios terapêuticos e se protegerem contra a doença. Mas, esses medicamentos simplesmente não funcionam: o ‘kit’ não serve pra nada”, diz.

O uso de medicamentos do “kit covid” foi defendido e incentivado publicamente pelo presidente Jair Bolsonaro para o “tratamento precoce” da covid-19, apesar de ser desaconselhado ou refutado por órgãos de saúde e pesquisa nacionais e internacionais. Segundo protocolo da Organização Mundial da Saúde (OMS) de março de 2021, a hidroxicloroquina não é recomendada para pacientes com covid-19 independentemente do quadro de gravidade da doença; e a ivermectina é desaconselhada, exceto em pesquisas clínicas. 

No Brasil, diretores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) afirmaram que não há medicamentos para prevenir ou tratar precocemente a doença; a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) não recomenda o tratamento e a Associação Médica Brasileira (AMB) publicou que os quatro medicamentos do kit não possuem eficácia científica comprovada e deveriam ser banidos do tratamento da covid-19. O Conselho Federal de Medicina, contudo, diz não apoiar nem condenar o tratamento precoce e defende que médicos podem definir o melhor tratamento para os pacientes.

Registros de efeitos adversos de medicamentos do “kit covid” aumentaram na pandemia

Com milhões de comprimidos vendidos, os registros de efeitos adversos causados pela administração de medicamentos do kit têm aumentado no Brasil. Desde abril do ano passado, a Anvisa recebeu 456 notificações de efeitos adversos sobre o uso dos quatro medicamentos do “kit covid” medicamentos. A quantidade é dez vezes mais que no mesmo período anterior, de abril de 2019 a abril de 2020.

Das notificações durante a pandemia, 173 foram graves. Os efeitos relatados mais comuns são sintomas cardiovasculares —como distúrbios no ritmo dos batimentos cardíacos —, dano hepático, diarreia e náuseas.

Segundo a pesquisadora em farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Ana Paula Herrmann, todo medicamento tem efeitos adversos, embora muitas vezes os benefícios para a sua indicação superam os riscos. De acordo com ela, isso não ocorre com o kit covid. “O problema é que na ausência de benefícios, tudo o que sobra são os riscos. E aí não há nada que justifique o uso, porque os riscos podem, muitas vezes, serem imprevisíveis”. Herrmann comenta que efeitos adversos como arritmia e lesão renal causados pela associação de hidroxicloroquina e azitromicina são esperados, mas outros são desconhecidos porque até então estes medicamentos estavam restritos a um certo grupo de pacientes, e não eram utilizados por uma grande parte da população. 

Quem são as empresas que vendem o “kit covid” no Brasil

No Brasil, 23 empresas detêm o registro dos quatro medicamentos do “kit covid” que foram vendidos nas farmácias: sulfato de hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e nitazoxanida. Dentre elas, a EMS, do Grupo NC, é a única a produzir os quatro medicamentos que a  reportagem apurou. O presidente do grupo, Carlos Sanchez, é apontado como um dos 30 bilionários do país no levantamento da Revista Forbes e, segundo reportagem, esteve presente no jantar em que Bolsonaro se reuniu com empresários, no dia 7 de abril, em São Paulo. A EMS conseguiu a aprovação da Anvisa para conduzir um estudo clínico com a hidroxicloroquina em pacientes com covid-19. Além da EMS, o Grupo NC também detém a Germed, que produz sulfato de hidroxicloroquina, azitromicina e nitazoxanida.

Procurada pela reportagem, a EMS afirmou que “orienta que os medicamentos ivermectina, hidroxicloroquina, azitromicina e nitazoxanida sejam utilizados conforme as indicações das respectivas bulas, sob prescrição médica” e que “esses profissionais são os únicos habilitados a prescrever o uso adequado destes medicamentos, seguindo os protocolos de medicina”. Já a Germed respondeu que “orienta que azitromicina, ivermectina e nitazoxanida sejam utilizados conforme as indicações nas respectivas bulas e sempre sob prescrição médica”.

De acordo com reportagem do Globo, Renato Spallicci, presidente da Apsen, que produz o Reuquinol (forma comercial da hidroxicloroquina), foi recebido no Ministério da Saúde antes do governo publicar o protocolo que orientou o uso do medicamento em casos leves de covid-19

Procurada pela reportagem, a Apsen afirmou que “produz o sulfato de hidroxicloroquina no Brasil há 18 anos, com foco no tratamento de pacientes crônicos com lúpus e artrite reumatoide e recomenda sua utilização apenas nas indicações previstas em bula, que são aprovadas pela Anvisa”. A empresa reforçou que “não há aprovação de nenhum órgão regulador da saúde, nem da OMS, para sua utilização no tratamento da COVID-19.

A Sanofi Medley é a única empresa estrangeira autorizada a comercializar a hidroxicloroquina no país. A farmacêutica francesa tem como acionista o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que defendeu o medicamento no combate ao coronavírus. Em nota para a reportagem, a empresa disse que “hoje, os medicamentos à base de hidroxicloroquina da Sanofi (Plaquinol) são oficialmente registrados em mais de 60 países para uso em algumas doenças dermatológicas e reumatológicas, assim como para malária e lúpus, em alguns países como o Brasil. Atualmente, as indicações aprovadas de Plaquinol não incluem o tratamento ou prevenção de covid-19 em nenhum lugar do mundo.”

Empresas que detêm registro dos medicamentos do “kit covid” apurados pela reportagem

Abbott Laboratórios do Brasil

Aché Laboratórios Farmacêuticos

Althaia Indústria Farmacêutica

Antibióticos do Brasil

Apsen Farmacêutica

Beker Produtos Fármaco Hospitalares

Brainfarma Indústria Química e Farmacêutica

Cosmed Industria de Cosmeticos e Medicamentos

Ems / Ems Sigma Pharma

Eurofarma Laboratórios

Farmoquímica

Galderma Brasil

Germed Farmaceutica

Laboratório Teuto Brasileiro

Legrand Pharma Indústria Farmacêutica

Momenta Farmacêutica

Nova Quimica Farmacêutica

Prati Donaduzzi & Cia

Sandoz do Brasil Indústria Farmacêutica

Sanofi Medley Farmacêutica

Supera Farma Laboratórios

UCI Farma Indústria Farmacêutica

Vitamedic Indústria Farmacêutica

Metodologia:

Foram exportados os dados públicos referentes à venda de medicamentos industrializados controlados e antimicrobianos de janeiro de 2018 a março de 2021. O período considerado para as análises referentes à pandemia foi de março de 2020 a março de 2021. Filtramos as vendas de medicamentos com os princípios ativos azitromicina, ivermectina, nitazoxanida e sulfato de hidroxicloroquina. Limpamos as bases e calculamos a quantidade de comprimidos por embalagem (dos medicamentos vendidos nessa forma farmacêutica). Foram consultados os dados de notificações de farmacovigilância entre 1 de abril de 2019 e 1 de abril de 2021 no painel da Anvisa. Filtramos os medicamentos com os princípios ativos azitromicina, ivermectina, nitazoxanida e hidroxicloroquina/sulfato de hidroxicloroquina.

Os dados finais usados na reportagem estão aqui.

Reportagem publicada originalmente na Agência Pública

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