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Malcolm Gladwell: “Nós inflamos a importância da política em nossas vidas”

Pablo Guimón

De descobrir pequenas histórias por trás de grandes coisas e grandes histórias por trás de pequenas coisas vive este jornalista e escritor britânico radicado em Nova York. Assim ele se tornou uma estrela intelectual do nosso tempo. Seus livros, artigos e podcasts têm legiões de seguidores. Sua missão: ajudar as pessoas a compreenderem parcelas complexas do conhecimento, como a científica. E, diante das miragens do carisma e da falsidade, antepor o rigor e o conhecimento.

Malcolm Gladwell, em seu apartamento em Manhattan, onde concedeu esta entrevista.
Malcolm Gladwell, em seu apartamento em Manhattan, onde concedeu esta entrevista.Vincent Tullo

O encontro com o estranho assume um mistério especial quando o motivo do encontro é um ensaio que ele escreveu sobre os encontros com estranhos. O estranho é Malcolm Gladwell, 56 anos, britânico criado no Canadá e residente em Nova York, repórter talentoso que virou um fenômeno cultural. E o ensaio Falando com Estranhos (no Brasil, publicado pela Editora Sextante) alerta justamente contra a tentação de nos precipitarmos ao tirar conclusões das pessoas: somos, afirma, projetados para interpretar mal.

Puro território Gladwell. Em suas reportagens para a The New Yorker, em seus livros best-sellers, em seus podcasts ouvidos por milhões de pessoas se aprende que Elvis Presley, por um fracassado ato freudiano, não conseguia se lembrar de uma frase específica do fragmento recitado da letra de Are You Lonesome Tonight? Que as lagostas têm serotonina. Que a dislexia tem sido a chave do sucesso de alguns dos melhores advogados dos Estados Unidos. Que existe uma receita de ketchup objetivamente perfeita. Ou que, provavelmente, Sylvia Plath não teria se suicidado se não tivesse um forno a gás em sua casa.

A viagem gladwelliana é de ida e volta entre o grande e o pequeno. São as histórias profundas por trás das coisas superficiais e as histórias superficiais por trás das coisas profundas. Ou, como diz o lema do podcast Revisionist History, "uma jornada pelo que negligenciamos e o que interpretamos mal". A fórmula o fez vender milhões de exemplares de seus livros (O Ponto da Virada, Fora de Série Outliers, O que Passa na Cabeça dos Cachorros e Outras Aventuras, David e Golias, a Arte de Enfrentar Gigante, pela Editora Sextante, e Blink – a Decisão num Piscar de Olhos, Editora Rocco), dar concorridas palestras em todo o mundo, tornar-se uma das 100 pessoas mais influentes do mundo, segundo a revista Time, e erguer um pequeno império de podcasts, mídia que absorve agora grande parte de seu interesse.

O encontro é no apartamento de Gladwell, em Manhattan, que ocupa os dois últimos andares de uma casa de tijolos no West Village. A entrevista transcorreu algumas semanas antes de um novo coronavírus trancar metade do mundo em suas casas e fazer de Nova York um dos epicentros da pandemia global. Certamente Gladwell, que dedicou uma extensa reportagem à gripe letal de 1918 e que em O Ponto da Virada argumenta que as tendências se expandem seguindo as mesmas leis que as epidemias, teria pontos de vista interessantes a expressar. Mas em seguida ele teve que mergulhar na nova temporada de Revisionist History e não tinha outra data para falar novamente com este jornal.

Você afirma que cometemos pelo menos três erros quando conhecemos uma pessoa: a tendência de buscar a veracidade, que nos leva a supor que as pessoas com quem estamos lidando são sinceras; a ilusão de que o que essa pessoa sente está transparecendo em seu rosto; e não considerar o contexto do encontro. Como esses três vieses afetam o encontro com um estranho?

Eu deveria ser extremamente cauteloso sobre qualquer conclusão que tire sobre você. Quando o vejo pela primeira vez, quero saber se é amigável ou não, quero saber se está entusiasmado ao fazer isto. Há muitas coisas que gostaria de saber sobre você. Mas as evidências de que disponho para esses julgamentos é tão limitada e fraca que eu deveria me abster. Suponhamos que você se comporte de maneira muito reservada durante toda a entrevista. Nunca sorri, não parece me escutar. Isso poderia significar muitas coisas. Essa pode ser sua maneira de ser. Pode ser que algo terrível tenha acontecido com você antes de vir aqui, algo de que não faço a menor ideia. Ou pode ser que você não queira fazer isto. Portanto, se detecto falta de entusiasmo ou indiferença em você, não sei o que isso significa e, portanto, nem deveria tentar saber.

A tendência a buscar a veracidade nos faz interpretar mal as pessoas. A alternativa, deixar de ter confiança em estranhos, é ainda pior?

“Se você confia nas pessoas, se sai melhor na hora de construir relações e organizações. Os que confiam são os que espalham seus genes”

Nós dois tínhamos uma ideia preconcebida sobre a veracidade neste encontro. Mas eu mais que você, porque você pelo menos sabia como eu era fisicamente. Eu não fazia nenhuma ideia. Poderia ter feito uma pesquisa no Google antes de nos encontrarmos, mas não fiz. Só aceitei sua palavra de que é correspondente do EL PAÍS. Qual a probabilidade de que esteja mentindo? Muito pequena, mas não é zero. Se tivesse cedido a essa desconfiança, se não tivesse me inclinado à veracidade e assumido que você é quem diz ser, teria destruído este encontro por completo. Porque a primeira coisa que teria dito, ao encontrá-lo na porta, seria pedir que me mostrasse um documento de identidade ou ligasse para o seu editor para confirmar que você é quem diz ser. Isso teria dado início a um padrão completo de desconfiança e, além disso, teríamos perdido 20 minutos de entrevista.

A evolução não deveria ter nos tornado melhores em detectar mentiras?

Tim Levine, criador da teoria do viés da veracidade, defende o contrário: que o que a evolução fez é recompensar-nos não por nossa capacidade de detectar mentiras, mas por nossa capacidade de confiar nos outros, apesar de tudo. Se você confia nas pessoas, é melhor na hora de construir relações e organizações, na comunicação, e tudo isso é tão vantajoso que essas pessoas, as que confiam, são as que espalham seus genes. As pessoas paranoicas não espalharam seus genes porque estavam tão frustradas, tinham relacionamentos tão problemáticos com outras pessoas que não eram elas que venciam a competição evolutiva.

O jornalismo, ao qual você dedicou a maior parte de sua vida adulta, consiste em grande medida em encontrar-se com estranhos.

Uma das coisas importantes que você aprende como jornalista é a frequência com que você se engana com as pessoas. Essa é a razão pela qual fazemos reportagens, falamos com mais de uma pessoa, checamos dados. É porque, à medida que você ganha mais experiência, você se torna mais consciente de quão falhos são nossos julgamentos iniciais e com que frequência as pessoas, deliberadamente ou não, nos dizem coisas que não são verdadeiras. Ser jornalista é uma lição interessante sobre este problema de entender as pessoas. Há muito poucas profissões nas quais você é de modo rotineiro exposto à ideia de que é difícil ler as pessoas. Os advogados, os policiais, os professores, os médicos. Em muitas profissões, não se tem essa experiência em primeira mão sobre a dificuldade de entender alguém.

E escrever livros? Não é uma forma de falar com estranhos?

Suponho que sim. Uma das coisas em que você pensa quando escreve é que precisa fazer isso de uma maneira que atravesse as diferenças entre as pessoas.

Mas você acredita conhecer bem o seu leitor. Em certa ocasião, citou uma espécie de retrato falado: homem, 45 anos, três filhos, de Atlanta, engenheiro ...

Sim. Não é que seja meu leitor comum, mas estive uma vez sentado em um avião ao lado dessa pessoa e me pareceu ser o meu leitor arquetípico. Não lia muitos livros, estava muito ocupado, mas era intelectualmente aberto e curioso. E não necessariamente concordava comigo em tudo. Ficava muito feliz em discordar de mim e continuar lendo. Essa é a minha característica favorita nos meus leitores. Não estou tentando convencê-los, só envolvê-los, fazê-los pensar sobre alguma coisa.

Também tem em mente a economia de tempo.

De fato. Acho que nós, escritores, às vezes nos esquecemos que produzimos livros em um mundo em que há um grande número de concorrentes. Não somos a única opção do leitor quando chega em casa à noite. E acho que isso significa que devemos estar muito atentos à forma como apresentamos as informações. Os livros precisam ser melhores, mais concisos, mais relevantes. Os dias em que você poderia escrever um livro de 800 páginas e esperar que as pessoas o terminassem ficaram no passado, não estamos mais em 1910.

Apresentar a pesquisa científica para pessoas que não têm tanto tempo. Essa seria uma definição correta do que você faz?

Malcolm Gladwell, em seu apartamento de Manhattan, onde foi realizada esta entrevista.
Malcolm Gladwell, em seu apartamento de Manhattan, onde foi realizada esta entrevista.Vincent Tullo

A separação entre o público em geral e o mundo dos especialistas aumentou. Hoje há muitíssimo conhecimento que está além do alcance da típica pessoa inteligente e educada. Antes, por exemplo, uma boa porcentagem de jovens podia consertar um carro. O carro era algo que estava ao seu alcance. Hoje é impossível. E isso aconteceu em um grande número de áreas. Os campos de conhecimento não são mais acessíveis, precisam de tradutores. E é isso o que eu faço.

Outra opção diante dessa complexidade do mundo, conforme sugerido pelo ministro conservador britânico Michael Gove, é não ouvir os especialistas.

É estúpido. Defendo exatamente o contrário. Precisamos ouvir os especialistas, mas precisamos de ajuda. Precisamos de jornalistas que façam o esforço de traduzi-los para nós.

Viajamos mais, expandimos nossas relações virtualmente nas redes sociais. Mas alguns autores, como Bill Bishop, no livro The Big Sort, defendem que atualmente nos distribuímos em comunidades alarmantemente homogêneas, que nos relacionamos cada vez mais com pessoas que vivem, pensam e votam como nós. Você acha que hoje temos mais relações com estranhos do que antes ou menos?

Eu diria que mais. Especialmente se você olhar para longe. Milhares de anos atrás, uma pessoa que morava em um vilarejo da Espanha nunca deixava seu vilarejo. Nunca conhecia ninguém que não fosse católico. Nunca conhecia alguém que não trabalhasse com as mãos. E 50% de seus relacionamentos eram com pessoas com quem estava relacionada por sangue. Nunca tinha conhecido alguém de uma etnia diferente. É verdade que hoje estamos organizados por classes, de maneiras interessantes. Mas nossas interações diárias podem ser com pessoas completamente diferentes de nós.

As ideias com as quais você trabalha se prestam a inúmeras leituras políticas, mas pode-se dizer que você deliberadamente as evita. É tão intencional quanto parece?

Sim. Não estou tão interessado em política. Ou sim, estou, mas sinto que outros escrevem sobre política muito melhor do que eu. Também acho que muitas dessas questões, se você as vincula à política, as torna menos interessantes.

Estamos politizados demais?

Nós inflamos a importância da política em nossas vidas. A maioria das coisas que afetam minha própria felicidade não tem nada a ver com ela, tem a ver com decisões e ações tomadas por meus amigos, meu empregador, as empresas, as pessoas que conheço. Nossas vidas são muito mais ricas do que muitos discursos políticos sugeririam.

Algumas críticas que você recebe são por simplificar demais, mas também é criticado por extrair muito de coisas que não precisam de tanta explicação. Em que ponto entre esses dois extremos você prefere se situar?

“Somos muito tendenciosos em favor de pessoas que são carismáticas ou atraentes, e isso arruína nosso detector de verdades”

Não presto muita atenção a meus críticos. Só acho que meu trabalho é simplificar as coisas. Acho que é por isso que sou útil no mundo. E também é meu trabalho às vezes complicar as coisas. Fazer as pessoas verem que há uma história complexa por trás de tudo que parece óbvio. Acho que cavar fundo é divertido. Desconstruir as coisas até o que importa. Dizer: "Isto é tão complicado que sei que você nunca tinha pensado nisto, eu vou te ajudar".

Há um elemento de autoajuda em sua escrita?

Eu sou um tipo estranho de escritor de autoajuda. Como um escritor de autoajuda intelectual. Não estou interessado em te ajudar na sua vida amorosa, ou a combater a depressão ou a perder peso, mas minha meta é a mesma que a dessas pessoas. É ajudar as pessoas a resolver questões em suas vidas, dando-lhes acesso a corpos de conhecimento com os quais provavelmente não estão familiarizadas.

Como chegou a essa peculiar especialização profissional? Seguindo as teorias de seus livros, pode-se dizer que no The Washington Post alcançou essas 10.000 horas de experiência que o tornaram especialista em um assunto, e na The New Yorker alcançou seu ponto de inflexão.

Sim, não está mal. Passei 10 anos no Washington Post aprendendo meu ofício e o deixei quando senti que havia adquirido algum tipo de maestria. Foi na The New Yorker que transformei essa preparação em algo mais significativo, de valor mais duradouro. Ninguém lê os artigos que escrevi para o Post, mas eles foram necessários para definir a estrutura das coisas que faço agora.

E os podcasts? Há seções de Revisionist History com mais de três milhões de ouvintes. Um mundo totalmente novo para um narrador, não?

Comecei a fazê-los como uma espécie de diversão há cinco anos, quando um amigo sugeriu que fizesse. Pensei que faria alguns episódios, mas isso me cativou. É uma nova e maravilhosa maneira de contar histórias. Muito mais direta, muito mais emocional. É um trabalho de equipe. Há todo tipo de vantagem. Encontrar um novo meio é maravilhoso. Leva algum tempo para pôr em ação toda a infraestrutura crítica, então, você tem uma liberdade incrível.

Não há um cânone.

Exato. Não há cânone. O mundo não tem expectativas. Não há ninguém com quem se comparar, porque não há uma geração anterior. Se você escreve música clássica hoje, enfrenta um legado extraordinário. Se fizesse no século XVII, havia muito menos com quem competir. O rock and roll em 1960 estava com as portas abertas. Hoje há uma montanha de críticos prontos para te dizer o que funciona e o que não funciona. Nos podcasts estamos nesse período mágico do começo, e eu desfruto muito. O campo inteiro é positivo. Outros podcasters querem que você seja bem-sucedido porque querem que toda mídia tenha sucesso. É maravilhosa essa ideia de que estamos todos juntos nisto, é algo que busquei a vida toda.

Acha que a literatura tradicional está em decadência?

O rádio não desapareceu quando a televisão chegou. As novas formas de expressão nunca suplantam as anteriores, elas simplesmente agregam. É difícil encontrar uma forma literária que tenha morrido. O que geralmente acontece é que adicionamos algo novo e há uma quantidade crescente de fertilização cruzada.

Quem é um estranho? Em outras palavras, quando alguém deixa de ser um estranho?

Em certo sentido, uma parte de cada pessoa é sempre estranha. Uso o termo de forma muito ampla deliberadamente. Porque mesmo as pessoas que você conheceu toda a sua vida podem ser estranhas. Você pode estar casado com uma pessoa que você não entende completamente. Podemos até ser estranhos para nós mesmos. Todos temos razões que não podemos explicar adequadamente ou reações que não fazem sentido para nós. Existe um elemento permanente e inevitável de mistério na maneira como operamos e na maneira como operam as amizades, mas o problema é obviamente mais agudo na pessoa que encontramos pela primeira vez, que é a definição clássica de estranho.

Você diz que, às vezes, para emitir um julgamento sobre uma pessoa é melhor não a conhecer pessoalmente.

Acho que é o passo lógico seguinte. Se a evidência que coletamos é tão falha, não estaríamos melhor sem ela? Os especialistas em detecção de mentiras dizem que, se você quer tentar determinar se alguém está mentindo, o mais eficaz é não olhar para ele, só escutar o que ele diz ou ler o que escreveu. Afastar o canal mais ruidoso. Somos muito tendenciosos em favor de pessoas carismáticas ou atraentes, e isso arruína nosso detector de verdade. Retirar informações melhora a capacidade de fazer um julgamento correto sobre alguém.

Qual é, então, seu conselho na hora de se relacionar com um estranho?

Adie o quanto for possível qualquer julgamento duradouro. E esteja disposto a revisar constantemente suas conclusões sobre as pessoas. Compreenda que os padrões de comportamento humano existem, mas podem levar muito tempo para emergir.

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