Uma nova geração de brasileiros escreve mais um capítulo da história da migração no continente
Descendentes dos venezuelanos nascidos aqui fortalecem os vínculos das famílias que saíram de seu país em busca de um futuro com mais oportunidades
No dia 12 de outubro, Dia das Crianças, a Operação Acolhida, liderada pelo Exército e pela Acnur, o braço da ONU para os refugiados, decidiu promover uma festa de confraternização para os pais venezuelanos abrigados. Cerca de 60 crianças de distintas famílias participaram. Dessas, 32 eram crianças brasileiras filhos de venezuelanos. Em 2018 virou pauta do noticiário nacional a história das grávidas venezuelanas que atravessavam fronteira para ter seus filhos no Brasil em melhores condições. Roraima tem dez partos por dia de venezuelanas, segundo disse o governador Antonio Denarium em fevereiro deste ano.
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O vínculo com o Brasil fica mais estreito para essas famílias, que passam a carregar a nacionalidade brasileira entre os seus. Ao mesmo tempo, o país vai se transformando com uma nova geração que conta a história do ciclo de imigração dos venezuelanos que partiram deixando para trás uma nação despedaçada. “Daqui a 18 anos eles vão poder votar, e depois até se candidatar a algum cargo público, quem sabe vestir a farda do Exército”, brinca o coronel Emílio Brandão, da Operação Acolhida, responsável pelo programa de interiorização de famílias venezuelanas. “Essa cadeia não acaba aqui não, muito pelo contrário. É uma história que só está começando”, completa.
Em Osasco, na Grande São Paulo, Saray Velandria, deu à luz Gianluca há sete meses. É irmão de Isabela, de três anos, que chegou com a mãe e o pai, Robert, no Brasil, vindos da cidade de Maturin. “Eu fugi da Venezuela”, resume Saray, que chegou por Pacaraima no dia 16 de fevereiro de 2018. A fuga, no caso, era da crise econômica, que a tirou da faculdade e que deixou seu marido sem emprego. “Eu estava grávida e ter alguma consulta médica era muito difícil, não faziam exames nos hospitais”, relata Saray. Quando Isabela nasceu não havia dinheiro para comprar fralda “e assim não dava pra ser”, diz. Seu marido vendeu um celular para comprar as passagens de ônibus e chegar à fronteira com o Brasil. Depois de passar por Pacaraima e Boa Vista chegaram a São Paulo onde a vida começou a melhorar.
Hoje Saray trabalha numa creche em Osasco, e Robert está trabalhando há três meses na área de almoxarifado da prefeitura do município. Isabela vai com a mãe para a creche e Gianluca fica aos cuidados de uma tia paterna, que seguiu o exemplo de Robert e se mudou para o Brasil. “Me sinto aliviada de sair da Venezuela. Sinceramente, vejo minha vida aqui”, constata Saray, que providencia os documentos para tirar o RG verdinho de Gianluca e também a residência definitiva no Brasil. Aos poucos se acostuma com a cultura. Em sua casa se ouve música venezuelana para matar a saudade. Mas já se renderam ao sertanejo de Marília Mendonça e Gustavo Lima.
De volta
Há ainda a possibilidade de que descendentes brasileiros um dia voltem com seus pais para a Venezuela. Em Pacaraima, num terreno perto de um dos abrigos da Operação Acolhida, nasceu uma comunidade venezuelana que já ganhou descendentes brasileiros. “Somos em 180 famílias, e já 12 crianças nasceram aqui”, conta Deiri Campos, uma das líderes do local, batizado de Bela Esperança. Deiri é avó de Neidali, de 16 meses.
― Nasceu aqui então?, pergunto a Deiri, que conserva a juventude aos seus 35 anos.
― Sim, responde, com um ar entre a resignação e a tristeza.
“O coração gostaria de estar do outro lado da fronteira, eu era feliz na Venezuela”, admite ela. Há algo maior, contudo, que a sustenta. “Aqui ninguém passa fome”, diz ela, com firmeza, como para atenuar a saudade da sua terra. As crianças de Bela Esperança estavam indo à escola, mas com a pandemia se divertem ali mesmo. Deiri não se vê em outro lugar do Brasil que não seja Pacaraima, a 16 quilômetros de Santa Elena de Uairén. “Gosto de viver aqui, pois me sinto perto do meu país”.
Deiri veio para o Brasil há dois anos, atrás dos irmãos e do pai, um pastor batista, que se mudou para o Brasil em 2014. “Estamos aqui pelos nossos filhos”, relata Deiri, que trouxe 3 filhos e iria buscar o quarto, de 8 anos, depois que tudo estivesse ajeitado. Mas veio a pandemia, e a fronteira fechou, sem dar chance a Deiri de reencontrar seu rebento. Ficou com o pai, de quem Deiri se separou. Fala quase todos os dias com ele. “Quero ir aí comer frango”, diz ele, entusiasmado com uma certa fartura que ele distingue onde a mãe se encontra. Deiri não vê a hora de poder buscar o filho. A fé faz suportar as dificuldades. O pai de Deiri realiza cultos no local, de segunda a sexta. Em espanhol.
A ideia de viver em um abrigo da Operação Acolhida foi cogitada, mas sua família não se adaptou. Apareceu então a oportunidade de compra do lote, e seu pai aproveitou. As casas foram se acumulando, apesar de o local ser uma área de risco, cortado por um riacho que acumula lixo. Ainda assim, a vida se acomodou, e hoje já são entre 500 e 600 pessoas morando na área. Com exceção dos 12 herdeiros brasileiros, são todos venezuelanos vindo de distintas cidades. Fazem bicos, recebem benefícios do Governo, como Bolsa Família e auxílio emergencial, e dividem despesas para conviver nesse espaço como um meio de sobreviver ao imponderável. “Quando Maduro tombar, nós voltaremos”, garante Deiri.
Esta reportagem é resultado do laboratório de produção de jornalismo “Refugiados e Migrantes” e faz parte da série de publicações realizadas com apoio da Fundação Gabo e Acnur