Milícias do Rio se articulam cada vez mais com prefeituras e casas legislativas, aponta estudo

Levantamento mostra que os criminosos utilizam igrejas evangélicas pentecostais para azeitar sua relação com líderes políticos e influenciar até em associações de moradores

Vista área da comunidade Rio das Pedras, dominada pela milícia, no Rio de Janeiro.RICARDO MORAES (Reuters)

As milícias do Rio de Janeiro articulam-se cada vez mais com nichos do poder político, principalmente prefeituras e casas legislativas ―além do já tradicional vínculo com as polícias. Essa é a principal conclusão de um estudo realizado ao longo de um ano pela Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos formada por promotores, policiais, jornalistas, ativistas e especialistas em dados que analisam o controle territorial de grupos armados em áreas da região metropolitana do Rio.

Os pesquisadores apontam que o vínculo original das milícias com as elites políticas e econômicas locais começa com uma “colaboração discreta e pontual” com profissionais da Polícia Militar, algo que, segundo eles, tornou-se estrutural, chegando até a indicações para cargos de comando, nomeação para chefia de batalhões, definição de focos prioritários de operações policiais e desenhos abrangentes de abordagem. “Em função dessa tendência, em certas áreas da região metropolitana do Rio de Janeiro e adjacências a polícia pode estar operando como braço auxiliar dos interesses do grupo miliciano local”, escrevem os analistas.

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Em comunidades como Rio das Pedras e parte de Campo Grande, que se caracterizam por uma dominação realizada por grupos específicos, com algum tipo de enraizamento no lugar, a relação milícia/Estado é mais latente: formam-se articulações até com atores sociais locais, principalmente líderes comunitários, através de instituições como as associações de moradores. Os pesquisadores relatam, por exemplo, que não são raros os casos em que a milícia indica os candidatos locais. Durante a pesquisa, também foram colhidos relatos de que milicianos chegaram a fundar associações de moradores para mobilizar a Defensoria Pública da União e assegurar o acesso de habitantes de comunidades a habitações do programa Minha Casa Minha Vida.

Os pesquisadores alertam que essa expansão dos interesses milicianos a instâncias dos poderes legislativos locais pode ter relação, “ainda que parcialmente”, com as mortes violentas de candidatos a vereadores nas eleições de 2016 em diversos municípios da região metropolitana do Rio. Naquele pleito municipal, a milícias estiveram por trás de seis de 13 assassinatos de candidatos apenas na Baixada Fluminense, de acordo com a Delegacia de Homicídios da região. A menos de um mês para as eleições deste ano, os analistas defendem que “um esforço suprapartidário é necessário para garantir o voto livre e a proteção a candidatos”.

O estudo também mostra que o estreitamento das relações de milicianos com lideranças políticas se dá por meio da articulação com igrejas evangélicas pentecostais —que servem também para a lavagem de dinheiro de atividades ilícitas. Os centros religiosos legitimam as milícias na esfera local, porque, através deles, os criminosos realizam trabalho social, como a distribuição de cestas básicas e sopa comunitária, por exemplo. Em algumas comunidades, os pesquisadores receberam relatos de pastores que chegam a “abençoar” as práticas milicianas, afirmando tratar-se de uma obra “sagrada” e que “Deus, de tempos em tempos, manda um grupo de pessoas para limpar o mundo do mal”.

Expansão

As milícias se expandiram territorialmente nas últimas duas décadas, com discurso de antagonistas do tráfico de drogas e “protetores” de moradores de comunidades, mas o que se vê atualmente, alertam os pesquisadores, é uma simbiose entre milícia e narcotráfico. Para suprir as carências que o Estado não cobre, os criminosos controlam serviços básicos, como transporte, distribuição de gás e TV a cabo, além de manterem em seu leque de negócios a agiotagem, grilagem, loteamento de terrenos, construção e revenda irregular de habitação, assassinatos contratados, tráfico de armas, contrabando, roubo de cargas, receptação de mercadorias e revenda de produtos.

De acordo com a análise da Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos, é essa diversificação de suas atividades econômicas o que lhes dá vantagem técnica sobre narcotraficantes na gestão dos negócios e no controle territorial. Uma pesquisa inédita sobre a expansão das organizações criminosas na capital fluminense com dados de 2019 mostrou que as milícias já dominam um quarto dos bairros do Rio de Janeiro, controlando quase 60% do território da cidade. O estudo foi feito pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF), o datalab Fogo Cruzado, o Núcleo de Estudos da Violência da USP, a plataforma digital Pista News e o Disque-Denúncia.

“Por constituírem um projeto de poder, as milícias demandam soluções de enfrentamento diferentes das adotadas contra as demais facções criminosas”, dizem os pesquisadores. “Às prefeituras, cabe preservar a dimensão pública de serviços apropriados irregularmente por milicianos, para enfraquecer as bases de sustentação desses criminosos”, acrescentam em nota técnica.


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