Périplo de criança vítima de estupro incluiu exposição de seu nome por militante do PSL

Família da menina registrou um Boletim de Ocorrência contra Pedro Teodoro, fundador do Projeto Família Cristã em São Mateus e pré-candidato a vereador, que revelou o nome de menina em suas redes sociais

Balões a favor do aborto foram pendurados em frente ao Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), no Recife, onde a menina realizou o procedimento.DIEGO NIGRO (EFE)

O périplo da menina que engravidou aos 10 anos, vítima de um estupro em São Mateus (ES), incluiu extravagâncias desde que o caso ganhou a atenção da ministra Damares Alves. A pressão psicológica sofrida pela família não ocorreu somente na porta do Centro Integrado Amaury de Medeiros (Cisam), no Recife, onde o aborto foi realizado na última segunda-feira. Quando o caso foi revelado, no início de agosto, a sua família recebeu a visita ingrata de diversos religiosos dentro da própria casa, que pressionaram a menina a mudar de ideia quanto à realização de um aborto legal. Pedro Teodoro, pré-candidato a vereador pelo PSL na cidade, foi um deles. A família da menor registrou um Boletim de Ocorrência (B.O) na delegacia da cidade no sábado, 15, informando que Pedro Teodoro invadiu a residência da família pelo quintal, chamou pela avó da criança e disse que se algo ocorresse com a garota, seria a avó a culpada.

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No B.O ao qual o EL PAÍS teve acesso, o familiar que registrou a ocorrência afirma que Pedro Teodoro colocou “pressão psicológica” sobre a avó, e que ela chegou a desmaiar. De acordo com o boletim, Teodoro também publicou o nome da garota no Facebook. “Todos a favor da vida me ajudem a levantar a # acima”, escreveu ele, logo abaixo do nome da criança. “Não se paga um mal cometendo outro maior ainda”, escreveu. Ainda segundo o boletim de ocorrência, Pedro Teodoro só saiu da residência da família depois de ser empurrado para fora. E que, ainda assim, ele teria seguido, do lado de fora, com palavras e orações “sobre o fato”. O EL PAÍS procurou contato com Pedro Teodoro pelo Instagram, sem sucesso, e está à espera de seu posicionamento para incluir sua versão dos fatos.

A exposição da identidade da menina fere o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Na segunda-feira, a Justiça determinou que as redes sociais apagassem todas as publicações que levassem o nome da criança. A determinação ocorreu depois que a extremista bolsonarista Sara Giromini publicou a identidade da menina e o endereço do hospital onde ela realizaria o procedimento no Recife. Nesta terça-feira, as contas do Twitter, Instagram e YouTube de Sara Giromini saíram do ar.

Pedro Teodoro continua bastante presente nas redes sociais, onde se define como “empreendedor, palestrante, escritor, acadêmico de ciência polícia e fundador do Projeto Família Cristã”. Suas publicações defendem a família, os valores cristãos e condenam o aborto. No dia 6 de março deste ano, ele se filiou ao PSL de São Mateus, de acordo com uma publicação no Facebook do diretório municipal da sigla.

Bola de neve

O caso foi virando uma bola de neve desde que a menor, vítima de estupro, esteve no hospital e se detectou a gravidez no dia 8. O assunto ganhou forte repercussão e, segundo testemunhas em São Mateus, uma pressão radical conservadora depois de a ministra Damares Alves, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, chamar a atenção para o caso. Uma foto publicada no dia 13 de agosto mostram Alinne Duarte de Andrade, coordenadora geral do Fortalecimento de Garantia de Direito de Crianças e Adolescentes da pasta, e o ouvidor Wender Benevides Matos, em frente à 18ª delegacia da Polícia Civil de São Mateus. Como a própria ministra relata em seu post, desde a segunda, 10, o ministério se envolveu no caso.

Os emissários da ministra chegaram a solicitar reunião com o promotor do caso no Ministério Público, Fagner Andrade Rodrigues, e com o juiz Antonio Moreira Fernandes, mas eles não compareceram. No dia 13, foram enviadas cartas ao juiz Fernandes por entidades religiosas oferecendo suporte e atendimento para que a vítima fosse acolhida por elas e assim pudesse seguir a gestação. A menor estava grávida de 22 semanas, e manter a gravidez seria um risco de morte para ela. Uma dessas entidades religiosas é seguida pela ministra Damares nas redes sociais.

Apesar da pressão, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo tomou a decisão de autorizar a interrupção da gravidez da criança no dia 14. Ao fim e ao cabo, a mesma ministra reconheceu em seu Instagram que prevaleceu na sentença favorável ao aborto “a vontade da menina, da família da menina e dos médicos”. No final de semana, a vítima precisou contar com uma rede de proteção contra o assédio de radicais conservadores para viajar ao Recife e realizar o procedimento. Mas não se livrou de palavras perversas vindas de um médico e uma pediatra que entraram na clínica em que estava para tentar demovê-la da decisão do aborto.

A família agora enfrenta o novo périplo da volta para casa em São Mateus, uma cidade de 130.000 habitantes, onde não há outro assunto que não o da criança de 10 anos. Apesar da presença ostensiva de radicais, a rede de apoio se move para preservar a menina. O Governo do Estado do Espírito Santo tem dado o suporte para a vítima e sua família para protegê-las de ataques de radicais. Também os responsáveis pelo caso, ao magistrado Fernandes e ao promotor Rodrigues, receberam um manifesto de apoio com mais de 1.000 assinaturas de juristas, integrantes de tribunais, de Defensorias e de Ministérios Públicos de vários Estados, além de centenas de entidades, deputados e pessoas físicas que apoiaram suas decisões.

Direito sem data-limite

No dia 8 de agosto, a criança foi acompanhada de uma tia até o hospital de São Mateus, a cerca de 200 quilômetros da capital Vitória, queixando-se de dores abdominais. Um exame comprovou que ela estava grávida, de 22 semanas. A uma assistente social, a menina contou que foi estuprada pelo tio, e que sofria abusos por ele desde os seis anos de idade. A partir de então, a família da vítima tentou atendimento no Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (Hucam) em Vitória para a realização do aborto, previsto em lei em casos como o dela, mas o hospital se recusou a realizar o procedimento alegando razões “técnicas”. O fato de estar de 22 semanas (5 meses) seria o prazo limite, segundo a nota técnica do Ministério da Saúde para o assunto. Mas o Código Penal não especifica essa data-limite para assegurar a realização do procedimento. A menor acabou sendo acolhida no Recife, no último domingo, onde realizou o procedimento no Centro Integrado Amaury de Medeiros (Cisam). O tio da menina está preso.



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