Proibir operações policiais em favelas do Rio de Janeiro poupou 30 vidas, estima estudo
STF já atingiu maioria em votação do plenário virtual sobre a continuidade da medida, elogiada por moradores. “Os ministros não imaginam o que é carregar os corpos dos seus”, diz ativista
A liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin proibindo operações policiais em favelas do Rio de Janeiro em meio à pandemia de coronavírus salvou, pelo menos, 30 vidas em um mês. Essa é a estimativa presente no estudo desenvolvido pelo Geni (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos) da Universidade Federal Fluminense (UFF), divulgado nesta segunda-feira, com análise das mortes e ações entre 5 de junho e 5 de julho.
O período é exatamente de um mês desde que a liminar de Fachin passou a valer. A redução é drástica. Operações policiais diminuíram 78% na comparação com os meses anteriores, as mortes em tiroteios caíram 70% e a quantidade de feridos, 50%.
Segundo o levantamento, não há ligação direta entre as mega operações em favelas com a redução da criminalidade. Ao contrário: sem ações, os números de crimes diminuíram.
Enquanto as operações reduziram 78% desde a ADPF 635 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), nome técnico para a liminar dada pelo STF, os homicídios diminuíram 48% e os crimes contra o patrimônio, 40%, entre os dias 5 de junho e julho.
Segundo Daniel Hirata, pesquisador da UFF, o estudo pretendia responder a duas perguntas: qual a relação das operações com os índices de criminalidades e qual impacto da liminar de Fachin sobre as mortes.
“Já faz três décadas que as operações são o grande instrumento na segurança”, afirma. “E mostram que as operações não são um método eficiente para o controle do crime, pelo contrário, parecem incrementá-lo”, explica Hirata.
A estimativa é de que, nesses 31 dias, 30 vidas foram poupadas. Há no estudo a queda pela metade da morte de policiais ao longo do mês em ações, com apenas uma morte. Ao longo de um ano, a projeção é de que aproximadamente 360 pessoas deixarão de morrer de forma violenta em ações policiais caso a proibição de Fachin seja mantida.
“O número de vidas salvas poderia ser ainda maior se pudéssemos considerar, o que é mais difícil projetar, os efeitos de preservação da vida também sobre a paz e garantia de funcionamento dos serviços de saúde e ajuda comunitária”, cita Hirata.
O defensor público Daniel Lozoya vai além e destaca dados oficiais da violência policial no Rio de Janeiro nos últimos meses. “Na pandemia, 177 e 129 pessoas foram mortas pelas polícias em abril e maio. Em junho, já sob vigência cautelar, foram 34 casos”, explica, tomando por base dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), órgão oficial do governo fluminense.
A continuidade da ADPF começou a ser votada no plenário do STF nesta terça-feira em plenário virtual, e já conseguiu maioria de seis votos, ante apenas um contrário, do ministro Alexandre de Moraes ― os outros quatro ministros têm até esta quarta-feira para votar. Segundo moradores de favelas do Rio de Janeiro, a medida já deveria ter acontecido antes da pandemia do coronavírus, mas, se está vigente, deve permanecer.
João Pedro: protegido da Covid-19, morto pelo Estado
“Veio para dar uma amenizada, não é um alívio ainda”, resume Renata Trajano, dos coletivos Favelas na Luta e Papo Reto, denunciando que existem operações extraoficiais ocorrendo nas comunidades, como o Complexo do Alemão. “Só pararam de matar um pouquinho, mas continuam nos matando”, afirma.
Segundo ela, o racismo do sistema Judiciário interfere diretamente na vida de moradores de favelas. Inclusive, destaca que no STF há maioria de ministros “brancos, homens”. “Não vejo como parceiros de ninguém, ainda mais da minha gente”, critica.
“Os ministros nunca vão se colocar em nossos lugares, nunca imaginam o que é estar aqui e passar o que se passa aqui. De como é carregar os corpos dos seus, viver sob tiroteios intensos”, afirma Renata.
Em sua decisão a favor da proibição de ações policiais, Fachin citou como exemplo o assassinato do adolescente João Pedro, 14 anos, morto dentro de casa enquanto brincava com os primos no Salgueiro, favela de São Gonçalo, região metropolitana do Rio.
À época, o ministro sustentou que “nada justifica que uma criança de 14 anos de idade seja alvejada mais de 70 vezes”. “O fato é indicativo, por si só, de que, mantido o atual quadro normativo, nada será feito para diminuir a letalidade policial, um estado de coisas que em nada respeita a Constituição”, sustentou o ministro
Mãe de João Pedro, Rafaela Matos participou da apresentação dos resultados da pesquisa. Ela vê como positiva a proibição, pois “está provado que tem poupado vidas”. “Não vai trazer meu filho de volta. Se tivesse aprovado antes, o João Pedro estaria aqui junto com a gente. Sou a favor para que outras vidas venham a ser poupadas”, afirma.
A mãe detalhou que estava esperando seu filho dentro de casa, respeitando as regras de isolamento social, quando tudo aconteceu. “Estava protegendo o João de um vírus e ele foi morto por um vírus muito pior: o do Estado que mata, que deveria proteger, zelar pela vida das crianças e adolescentes”, desabafou.
Giselle Florentino, integrante do Direito à Memória e Justiça Racial, alerta para um acréscimo das ações com mortes na Baixada Fluminense, em especial nos últimos dez anos, desde a implementação das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) na capital.
“[A proibição] Resultou rapidamente em uma diminuição nas mortes cometidas por policiais na Baixada Fluminense e demonstra que a política de confronto armado nas ruas e vielas sempre resultam em mortes do povo negro”, afirma, dizendo ser necessário atacar “o racismo institucionalizado”.
Reportagem originalmente publicada no site da Ponte Jornalismo em 3 de agosto de 2020.