Para os “homens de bem”, só algumas pessoas têm direito a ter direitos
Nesta quinta-feira, o Brasil tem enormes possibilidades de ser eleito para mais um mandato no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Caberá ao Estado usar tal mandato para fazer avançar a proteção de minorias e grupos vulneráveis
Os “homens de bem” têm declarado de forma explícita: existe uma diferença entre humanos. Ela não é de raça e nem de cor. Não é de religião e nem de status social. Trata-se de uma diferença mais profunda. Uns, segundo esse grupo, têm direito a ter direitos. Os demais? Não são humanos o suficiente para ter o direito a ter direitos. Essa fronteira entre homens de bem e o restante da humanidade é invisível. Como se fosse desenhada sobre a areia, essa linha aparece e desaparece em locais diferentes, conforme a situação exige. Um garoto que rouba uma carteira num ônibus certamente merece um esculacho. Um homem de bem que evade alguns milhões para não pagar impostos merece, obviamente, um advogado.
Não é por acaso que, em uma era em que a democracia é golpeada todos os dias, há um termo que passou a ser alvo de ataques frequentes: os direitos humanos. Sim, aquele arcabouço de leis que prevê a proibição da tortura, as garantias de liberdade e a possibilidade de se defender. Aquele sistema que também estabelece o direito à saúde, à educação e, acima de tudo, à vida. Passou a ser lugar comum no Brasil questionar a conveniência dos direitos humanos, visto por uma ala do país como sinônimo de um pacote de leis que defende bandidos. Mas defende de quê? Da Justiça? Ou de justiceiros, herdeiros de uma sociedade escravocrata, racista e injusta? Em cada ocasião que ouvimos o ódio ao conceito de direitos fundamentais, vale a pergunta: quem é que tem medo dos direitos humanos? Num Estado falido, será que a tortura empregada por agentes em supostos interrogatórios vem mesmo daqueles com a ambição de garantir a segurança e Justiça a uma população?
O medo dos direitos humanos, no fundo, é o medo de que tenham de dar explicações, de investigar, de ser transparentes na busca de criminosos. De uma forma indireta, ao apelar para que direitos fundamentais sejam respeitados, escancara-se o despreparo do Estado para garantir a segurança de seus cidadãos. E não a proteção de bandidos.
Quando esse arcabouço de leis coloca as mulheres num mesmo patamar de direitos em relação aos homens, não faltam aquelas vozes que, na surdina, reclamam de que está havendo um “exagero”. Num país com 164 estupros por dia, ouvimos recentemente um chanceler reclamar que o moralismo estava ultrapassando a realidade da época vitoriana, que “hoje olhar para uma mulher já é uma tentativa de estupro” e que estava “preocupado com a demonização da sexualidade masculina”.
Mas quem tem medo de tal situação senão aquele que vê nesses direitos humanos um limite ao seu poder? Quando um Estado é convidado a reparar um dano histórico a um grupo da sociedade explorado por 300 anos, rapidamente ouvimos vozes de que não é justo com os nossos filhos ter de competir contra cotas. “Eu não sou culpado pela escravidão. Eu falo com todos”, garantem, numa referência certamente ao porteiro, ao segurança e ao lixeiro. Fala-se com todos no Brasil. Mas para dar ordens. Para exigir respeito. Mas será que todos são também escutados?
Quando o direito à defesa é ignorado ou violado, rapidamente há quem tome as dores para alertar que o crime precisa ser combatido. Que há uma “inversão” do papel entre os delinquentes e aqueles que querem combater o crime. Um versão do século 21 para a ideia de que os fins justificam os meios.
Numa democracia, tal atitude é simplesmente um crime, além de ser sua própria ruína. Robert Bolt, em sua peça A Man for All Seasons, traduz em um diálogo encenado no século 16 o falso dilema de que certas pessoas não mereceriam nossas nobres instituições. Na cena, o advogado William Roper questiona Thomas More sobre o fato de ser adequado defender um homem que seria um representante das forças do mal na sociedade.
Então, você daria ao Diabo o benefício da lei — exclamou Roper. Sim. O que você faria? Abriria uma grande estrada pelo direito para agarrar o Diabo?, perguntou More. Eu cortaria toda a lei na Inglaterra para isso, respondeu Roper. E quando a última lei for derrubada e o Diabo se virar contra você, onde é que você se esconderá se todas as leis foram destruídas?, alertou More. Este país está repleto de leis, de costa a costa, as leis dos homens, não as de Deus! E se você as cortar, você realmente acha que pode ficar de pé diante dos ventos que soprariam então? Sim, eu daria ao Diabo o benefício da lei, por minha própria segurança!
Evocar o estado de direito ou direitos humanos, portanto, é garantir nossa própria sobrevivência e liberdades fundamentais. Onde está consolidada a relação de que estados que não seguem regras básicas de respeito ao ser humano são mais seguros? Onde estão os indícios de que um estado que mata é aquele que mais liberdades assegura aos “cidadãos de bem”? Onde estão as provas de que um Estado que dribla o estado de direito é quem vai garantir a liberdade? Se essa linha entre nós e eles é desenhada sobre a areia, que garantias temos de que um dia não seremos colocados do outro lado da fronteira por dar a mão na rua a quem desejarmos, ler o que sonharmos, orar por quem nos inspira?
Nesta quinta-feira, dia 17, o Brasil tem enormes possibilidades de ser eleito para mais um mandato no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Caberá ao Estado usar tal mandato para fazer avançar a proteção de minorias e grupos vulneráveis, do estado de direito e do espaço democrático. Justamente para que toda a sociedade seja preservada em seus direitos fundamentais. A defesa dos direitos humanos é a defesa da civilização. É a garantia de Justiça e o único caminho para a paz. Não existem atalhos. Para isso, teremos de defender, diariamente, o direito de todos. Do rei e do diabo. E inclusive de nossos maiores adversários.
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