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“Preferia minha casa de antes. Acho que não sobrou nada”, o trauma das crianças das Bahamas

15.000 pessoas estão em busca de casa e comida após a passagem do furacão Dorian pelo país caribenho

Pablo Guimón
Uma das afetadas pelo Dorian, em 8 de setembro, e o que resta de sua casa destruída pelo furacão nas Bahamas.
Uma das afetadas pelo Dorian, em 8 de setembro, e o que resta de sua casa destruída pelo furacão nas Bahamas.Ramón Espinosa (AP)
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A nova vida começa, por exemplo, aqui. Neste hangar de um aeroporto chamado Odyssey, na ilha de Nova Providência, onde aterrissam muitos dos aviões que retiram moradores da Grande Bahama e das Ilhas Abaco, arrasadas há duas semanas pelo furacão Dorian, o mais brutal que já abalou esta parte do mundo desde que há registros.

Socorristas e soldados vão e vêm, as hélices e os reatores cobrem tudo com um ruído denso, e os sobreviventes saciam a fome em barracas de comida. As crianças podem esperar em uma sala humilde com brinquedos, enquanto os adultos fazem fila para se registrar em algumas das mesas atendidas por voluntários.

Francelus Junius, 36 anos. Residente na ilha de Grande Ábaco. Mulher e dois filhos. Pertences: nada. Nenhum membro da família ou amigo que possa cuidar deles.

Depois de registrada, a família passa por uma avaliação médica. Se seu estado exigir, serão enviados para hospitais. Junius recebe quatro pontos de sutura ali mesmo em um corte que tem na parte de trás do pescoço e os atendentes limpam suas feridas nas costas. São encaminhados para o abrigo de Fox Hill, ao sul da capital. Já é noite. Em um micro-ônibus, com um grupo de desconhecidos que serão seus companheiros de quarto por tempo indeterminado, são transferidos para sua nova moradia.

Em uma catástrofe dessa natureza, “as necessidades não diminuem, vão se diversificando”, explica Laurent Duvillier, do escritório da UNICEF para a América Latina e o Caribe. “Houve muita solidariedade nos primeiros dias, e isso é muito bom. Mas é preciso pensar na sustentabilidade. Não se trata apenas de sobrevivência na primeira semana, mas de meses até que a vida possa ser retomada. Muitas famílias perderam tudo. Há também outras que, embora suas casas ainda estejam de pé, ficaram desempregados. Os negócios estão fechados. Muitos vivem do turismo, mas a infraestrutura está destruída, e quem virá de férias para estas ilhas nos próximos seis meses? Sem renda, milhares de famílias não poderão reconstruir suas casas nem suas vidas.”

Ventos de até 300 quilômetros por hora e chuvas torrenciais, golpeando durante 48 horas, eliminaram do mapa populações inteiras do norte do arquipélago. Oficialmente, há 52 mortos, um número que todos sabem que engordará com algumas das 1.300 pessoas ainda desaparecidas. Cerca de 70.000 pessoas foram afetadas pelo furacão. Um total de 15.000, de acordo com a Agência de Gerenciamento de Emergências do Caribe, ainda precisa de abrigo ou comida. Quase 4.000 foram para os Estados Unidos. E mais de 5.000 para a ilha de Nova Providência. Dessas, 2.000 foram transferidas para um dos seis abrigos habilitados na capital, Nassau.

Do lado de fora do abrigo de Fox Hill, Francelus Junius passa a quarta manhã de sua nova vida conversando com outros homens à sombra de uma árvore. Como os milhares de turistas nos hotéis all-inclusive espalhados pelas praias de areia branca dessa mesma ilha, Junius usa uma pulseira. A dele é branca, que o identifica como um dos 230 evacuados que residem no refúgio. "Todas as manhãs espero que seja meu último dia aqui", diz ele. “Não é só por todos viverem aqui amontoados, é que não se tem nada para fazer. Você come o que eles te dão, veste o que te dão. É humilhante.” “Nós realmente agradecemos muito por tudo, mas não podemos ficar. Temos que sair daqui”, acrescenta Kenel Dieujuste, de 58 anos, que está ao lado.

No abrigo, explica a deputada Shonel Ferguson, que coordena a assistência no local, procuram "envolver os refugiados em um casulo de amor e apoio". Cem voluntários do bairro, identificados com pulseiras vermelhas, se revezam para ajudar os flagelados neste chalé pintado de azul claro, que normalmente funciona como um centro comunitário. Cinco mulheres preparam a comida na cozinha, outras organizam roupas doadas pelos vizinhos, esfregam o chão ou ajudam na enfermaria ou nas mesas de informações. Em um amplo espaço aberto, duzentos colchões, espreguiçadeiras e berços onde as pessoas dormem lado a lado. Há amor, há apoio, mas pouca intimidade.

O elefante na sala, claro, é o trauma que todo mundo carrega consigo e que é pouco compartilhado. Em Fox Hill, fala-se mais sobre o futuro incerto do que do passado. Mas, inevitavelmente, circulam histórias. Como a de um jovem haitiano que acaba de deixar o abrigo para voltar ao seu país. Algumas semanas atrás, depois de anos trabalhando e economizando na ilha de Grande Ábaco, ele finalmente conseguiu trazer o filho, que permanecia com os avós no Haiti, para morar com ele. Mas o furacão chegou e tirou a vida do pequeno. "Agora o sentimento de culpa o atormentava", explica Ferguson.

“Todos sofreram um grande trauma, mas não lhes pedimos que nos contem. Normalmente, podemos ver nos olhos deles quando sentem angústia demais. Temos psicólogos para conversar com eles”, explica o deputado Michael Foulkes, que nesta manhã supervisiona o trabalho no abrigo.

Para restaurar a normalidade, uma prioridade são as crianças. Neste refúgio há 55, variando de alguns meses a 17 anos. No total, de acordo com estimativas do UNICEF a partir de dados do Governo, cerca de 18.000 crianças foram expostas ao impacto do furacão em todo o país. "Nos abrigos, há crianças com experiências extremamente traumáticas", explica Duvillier, do UNICEF. “Falamos sobre destruição total, de ver parentes mortos ou afogados. Elas vivem com isso dentro e agora é preciso tentar tirar isso delas.”

Na entrada do abrigo, um garoto de oito anos de idade empurra um conjunto de cadeiras para se sentar para comer na rua com seus novos amigos. Quando lhe perguntam como é sua nova vida, responde que "meio a meio". "Aqui está bom, tem muita gente e tem brinquedos", explica. “Bem, eu preferia minha casa antes, mas vi quando caiu. Acho que não resta mais nada.”

“É preciso ajudar as crianças a superarem a perda”

Nesta quinta-feira, foi realizado um dia de matrículas escolares em massa dos 10.000 alunos que, segundo o Ministério da Educação, foram deslocados de suas regiões pelo Dorian. Todos receberão um lugar em uma escola, livros e uniformes, para que possam retornar à sala de aula na semana que vem. Antes, o UNICEF realizou oficinas de treinamento com os educadores, para lhes dar ferramentas para ajudar as crianças a superar seu trauma.

Michal Bar, da IsraAid, é um dos profissionais que ministraram essas oficinas. "O objetivo é fazer com que as crianças, na medida do possível, expressem seus sentimentos de maneira menos verbal", explica. “Elas não podem conversar com os pais, porque também estão traumatizados. Não queremos mexer diretamente nas feridas, mas fortalecer sua capacidade de se expressar.”

"Se uma criança está traumatizada, quanto vai aprender na escola?", pergunta Jacqueline, educadora local que participou das oficinas. “As crianças deslocadas precisam se adaptar ao novo ambiente. Começar uma nova vida. Muitas continuam aflitas e é preciso ajudá-las a lidar com a perda. Não há solução rápida.”

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