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Morre Vincent Lambert, o homem que encarnou o debate sobre a morte digna na França

O enfermeiro estava havia uma década tetraplégico e em estado vegetativo. Faleceu nove dias depois de ser desconectado, após uma longa batalha judicial

Silvia Ayuso
Vincent Lambert, em foto de 2015 divulgada pela família.
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Vincent Lambert já descansa em paz. O francês de 42 anos, tetraplégico e em estado vegetativo desde que sofrera um acidente de trânsito em 2008, morreu nesta quinta-feira, às 8h24 (3h24 em Brasília), nove dias após o hospital de Reims, onde estava internado, desconectar as máquinas que o mantinham com vida. Seu caso havia se transformado num símbolo do debate sobre o direito à morte digna na França, depois de uma longa e dura batalha judicial que dividiu a família e levou toda a sociedade a refletir sobre as leis relativas ao fim da vida e à eutanásia. De um lado estavam os seus pais, católicos tradicionalistas que se opunham ao que chamavam de uma “eutanásia encoberta” e que tentaram sua desconexão até o último momento, por meio de todos os recursos legais possíveis. Do outro estava sua mulher, Rachel Lambert, e a maior parte dos seus familiares, que argumentavam que Vincent não teria querido continuar vivendo nas condições que esteve durante mais de uma década. O problema é que Lambert não deixou por escrito seus desejos num testamento vital, o que marcou o complexo processo que agora chega ao fim com sua morte.

“É o que esperávamos há anos. Estávamos prontos há anos, é o racional. Vincent estava em estado vegetativo e não teria querido viver assim. Espero que descanse em paz”, declarou François Lambert, sobrinho de Vincent e um dos principais porta-vozes da parte da família que defendia uma morte digna para o enfermeiro. O sobrinho expressou sua esperança de que agora a família possa ter seu luto na intimidade. “Para mim, o caso Lambet termina hoje”, disse.

Mas realmente termina? O promotor Mathieu Bourrette, de Reims, ordenou a autópsia, que será realizada nesta sexta-feira em Paris, para “conhecer as causas da morte” de Lambert. A decisão não implica que exista uma suspeita de algum ato criminoso e nada tem a ver, explicou, com a denúncia apresentada pelos advogados dos pais. Na última segunda-feira, eles disseram que consideravam “inevitável” a morte de seu filho e que não tentariam impedi-la por meio da Justiça, como haviam feito desde 2013, quando Vincent foi desconectado pela primeira vez. Embora tenham conseguido deter o processo em duas ocasiões – a última delas, em 20 de maio –, suas vitórias sempre foram por questões de procedimento, não de fundo, já que todos os tribunais, incluindo o de Estrasburgo, apoiaram a decisão dos médicos de interromper o tratamento. Mas seus advogados, que qualificaram a morte de Lambert como “crime de Estado”, denunciaram o médico de Lambert, Vincent Sánchez, e sua equipe por “tentativa de homicídio voluntário”.

Tampouco termina com o caso Lambert o debate na França e em outros países – na quarta-feira, o papa Francisco pediu que se reze “pelos doentes que são abandonados até os deixarem morrer” – sobre o direito à morte digna e inclusive à eutanásia, palavra que para muitos ainda é um tabu.

A eutanásia é ilegal na França, mas a possibilidade de deixar morrer uma pessoa em estado irrecuperável é prevista pela lei Leonetti (nome do deputado que a elaborou), de 2005. A norma estabelece que os cuidados médicos “não devem se prolongar como uma obstinação irracional” e que, no momento em que pareçam “inúteis, desproporcionais ou sem outro efeito a não ser a manutenção artificial da vida, podem ser suspensos ou não empreendidos.” A lei foi atualizada em 2016 para incluir uma “sedação profunda e continuada”, a fim de que o paciente não sofra até que a morte aconteça.

A complexidade do caso Lambert colocou em dúvida a idoneidade da norma. A lei Leonetti é suficiente? A ministra da Justiça, Nicole Belloubet, qualificou-a como “muito equilibrada e muito sensível”. Mas não há consenso sobre o tema nem sequer no partido República em Marcha (LREM), do presidente Emmanuel Macron, nem na maioria da Assembleia Nacional.

Jean-Louis Touraine, deputado do LREM e professor de medicina, que ano passado publicou uma coluna de opinião no Le Monde a favor da eutanásia assinada por 155 deputados (muitos deles aliados de Macron), considera que a lei atual é muito vaga na hora de estabelecer o que constitui uma “obstinação irracional”. O caso Lambert também evidenciou a falta de garantia de que os desejos do paciente serão respeitados. Primeiro, porque a decisão final está nas mãos dos médicos; e depois porque, caso não haja um testamento vital, não se estabelece uma hierarquia para decidir quem da família terá a voz principal.

François Lambert também criticou o tempo excessivo que um paciente pode levar para morrer, já que os médicos decidem se o processo de fim da vida se estenderá por dias ou até duas semanas, para evitar que sejam acusados de eutanásia. “Não seria ruim que a lei autorizasse que (o processo) fosse mais rápido e que, para isso, houvesse um protocolo” unificado no país inteiro e voltado à “proteção” do paciente, afirmou dias atrás o sobrinho, que decidiu estudar Direito a partir do caso do tio.

Segundo a Associação pelo Direito de Morrer Dignamente (ADMD), esse é outro argumento de peso para legalizar a eutanásia. “É preciso deixar a hipocrisia e permitir que uma pessoa possa partir em poucos minutos e sem sofrimento. Não esperar dias e dias, o que constitui um sofrimento para o paciente e seus familiares”, denunciou seu presidente, Jean-Luc Romero, em referência ao longo tempo que Lambert demorou para morrer, chamando-o de “eutanásia a fogo lento”. O Governo não parece considerar essa possibilidade por enquanto, ainda que, segundo uma pesquisa de março, 96% dos franceses sejam favoráveis a alguma forma de legalizar a eutanásia.

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