‘Game of Thrones’: Daenerys, a rainha das cinzas
Faltando um capítulo para o final da série, o argumento se encaminha para um novo trono maldito
A batalha final de Game of Thrones, exibida na noite passada, começou no tempo da fantasia (os castelos, navios, dragões, cavalos e cavaleiros de sempre sobre o tabuleiro) para acabar de forma abrupta no nosso tempo, com homens, mulheres e crianças cobertos de sangue e cinza, que infelizmente não nos são tão alheios. Um inquietante túnel do tempo em que o diretor do episódio (outra vez o obscuro Miguel Sapochnik) guardou um simples detalhe: em toda a reta final do episódio, nem a Khaleesi nem seu único dragão vivo, Drogon, apareceram em primeiro plano na tela. Ficaram reduzidos assim a um ente desumanizado e abstrato que apenas cuspia terror e fogo. Todas as guerras são iguais, e uma série que gosta de jogar com o espetáculo das estratégias militares tinha pelo menos que reconhecer isso.
Daenerys havia prometido na sétima temporada que ela não seria, como seu pai, a Rainha das Cinzas, mas a fome de poder corrompe tudo, e também a ela, a Destruidora de Correntes. Reduzida a um monstro como seus inimigos, Game of Thrones liquida assim a sua principal heroína. De quase uma década de viagem resta agora apenas o epílogo, e só cabe esperar que os outros personagens vivos, Tyrion, Jon Snow, Arya, Sansa e Bran Stark, fujam de perto dela. No caso dos irmãos Stark, o destino parece claro, o norte. No de Jon Snow, quem dera fosse voltar para o “verdadeiro norte” junto com seu lobo Fantasma (se me perguntarem, o verdadeiro amor de sua vida), mas neste momento ele é a única ameaça ao trono de sua tia; e a Tyrion, cumpridos seus piores pesadelos e sendo o último dos Lannister, só resta viver para contar.
Desde a sétima temporada a ameaça de um final assim, amargo para todos, estava sobre a mesa. A execução do Lorde Varys, “a voz do povo”, nos primeiros minutos do episódio confirmava os piores presságios. Sapochnik, que assinou alguns dos melhores capítulos da série, entre eles A Batalha dos Bastardos e A Longa Noite, voltou a demonstrar sua capacidade de se movimentar em meio ao caos. Novamente um roteiro de poucas palavras, com duelos entre irmãos, multidões encurraladas, onde os escombros de uma cidade enterram tudo. O sonho de um mundo melhor está aniquilado. No único encontro frente a frente entre os dois personagens principais, Jon Snow e Daenerys, o peso da tragédia voltou a cair sobre os ombros do bastardo de Winterfell. A Rainha das Cinzas e seu cinzento particular, um incapaz para a farsa e a felicidade. Sem amor, sua rainha pronunciou seus últimos intuitos: “Então medo”.
Talvez o surpreendente a estas alturas seja que a khaleesi tenha virado um ícone feminista apesar de muitos de seus irritantes defeitos; o principal, sua obsessão em alcançar o trono a todo custo. E que, pelo contrário, não seja assim uma personagem feminina com o dobro da sua inteligência e astúcia: Sansa Stark. Como sua mãe, Catelyn Stark, e diferentemente de sua irmã Arya e da própria khaleesi, Sansa representa a força do bom senso, embora seja mais sexy cavalgar sobre dragões, sair nua e ilesa de uma pira de fogo e acreditar ser a proprietária e senhora de tudo. Os rumos autoritários da Mãe dos Dragões vêm de várias temporadas atrás, não é algo enfiado à força na última hora. Na sétima temporada é o próprio Tyrion quem diz a Cersei que a diferença entre a Khaleesi e ela é que a primeira teme a si mesma. Pouco mais.
A batalha final foi letal para os Lannister. Uma Cersei às lágrimas contemplava incrédula a brutalidade do ataque aéreo, consciente de que seus inocentes escudos humanos não serviam de freio à ira do inimigo. Sozinha, com sua guarda aniquilada e as torres de sua Fortaleza Vermelha desabando a seus pés, encontrou o consolo final (generosos os roteiristas com ela) de seu irmão e amante, Jamie, liberado por Tyrion em uma das sequências mais tristes do episódio. O enorme anão, abraçado a seu irmão mais velho, despedia-se entre lágrimas do único que sempre o amou: “Se não fosse por você jamais teria sobrevivido à minha infância. Você foi o único que jamais me tratou como um monstro”. Nada deu certo para Tyrion. Ele, Jon Snow e Arya são os sobreviventes de uma catarse da qual são horrorizadas testemunhas.
O pior do final de Game of Thrones é justamente isso, a necessidade de concluir uma história que nem seu próprio autor fechou e cuja espera ultrapassa todas as fronteiras e limites. Não teria sido má ideia que os criadores da série tivessem optado por uma ridícula solução interativa como no episódio Bandersnatch de Black Mirror. E que cada um se empanturre com os seus.
Faltando um capítulo para o fim da série, o argumento se encaminha para um novo trono maldito. Seja se reinar a Khaleesi, ou se assumir o trono o verdadeiro herdeiro, Jon, condenando assim o personagem à desgraça de um poder e uma vida que ele renega. A esta altura, procurar a reviravolta surpresa que contente os espectadores (se é que isso faz algum sentido) seria estapafúrdio. Guardadas as proporções, e sem querer cair em odiosas — e neste caso absurdas — comparações, Game of Thrones padece da síndrome de Apocalipse Now, a obra-prima de Coppola sobre o inferno do Vietnã, cujo final costuma suscitar um interessante debate sobre se estava ou não à gigantesca altura do resto do filme, algo a que o próprio Coppola, que o alterou e improvisou no último minuto, não era alheio. Coppola, isso sim, tinha um ás na manga, Marlon Brando, que só estava preocupado em receber o cachê e ir embora, e que se apresentou tão gordo que obrigou o diretor a rodar a sequência em meio a sombras. Seja como for, consciente de suas limitações para essa catarse final, Coppola soube tirar partido da lenda. Mas aqui não há um Brando para sentar-se no trono, qualquer trono, e manter o público quieto e calado. Quando muito Drogon, você sabe, as garras do horror, o horror…
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